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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

01
Mai23

RS: Após caso de trabalho escravo, violações continuam

Talis Andrade

 

Noites em porões. Almoço na caridade. Jornadas extenuantes. Flagrante permitiu que pessoas exploradas voltassem para suas cidades, mas contingente de terceirizados e informais segue em Bento Gonçalves

 

 

por Fernanda Wenzel, daRepórter Brasil (texto), e Daniel Marenco, de Headline (fotos)

- - -

* Por razões de segurança, os nomes de alguns entrevistados foram alterados ou omitidos nesta reportagem

Um mês após o resgate de 210 trabalhadores em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, enquanto turistas agendavam tours pelas vinícolas locais e tiravam fotos fantasiados de imigrantes italianos, dezenas de trabalhadores seguiam entocados em alojamentos clandestinos da cidade.

Dormindo em porões escuros e úmidos e se alimentando graças à doação de marmitas, eles esperavam ser realocados em novas frentes de serviço ou aguardavam pagamentos atrasados para voltarem às suas cidades natais. Enquanto isso não acontece, passam o tempo conversando à sombra das árvores da praça Vico Barbieri, no centro da cidade.

São homens que compõem a frente de trabalho temporário da região, que atua conforme a safra ou a demanda industrial do momento – pode ser na apanha de frango ou na uva; na maçã ou na laranja. Alguns eram ex-funcionários de Pedro Santana, o dono da Fênix, empresa contratada pelas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton que está no centro do escândalo de exploração de trabalhadores, descoberto no final de fevereiro e ainda em investigação pela Polícia Federal (PF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Assim como os baianos resgatados na ocasião, a maioria vem de outros estados do Brasil, de forma organizada e coordenada por empresas ou indivíduos a quem eles chamam de “empreiteiros” – uma realidade que modificou as feições do trabalho na região nos últimos anos, sobretudo depois de 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) aprovou, em um curto intervalo de tempo, a reforma trabalhista e a lei que liberou a terceirização das atividades fim.

 

Enquanto aguardam um novo serviço, trabalhadores terceirizados ou informais passam os dias nas praças de Bento Gonçalves
Distribuição de marmitas feita por uma instituição de caridade local garante refeições aos homens enquanto estão desocupados

 

“Quem nos trouxe foi um empreiteiro de colheita”, explica o jovem Aquiles*, que havia chegado na manhã de 20 de março vindo de Chapecó, Santa Catarina, acompanhado da esposa. Confiantes em dias melhores e “na graça de Deus”, o casal não sabia em qual safra iria trabalhar, se na da laranja, da uva ou da maçã. Também não sabia em qual cidade nem quando começaria o serviço. Não tinham internet nem crédito no telefone. Aquiles* também tinha perdido os documentos, e por isso foi barrado na casa de passagem da prefeitura. A primeira noite na tão sonhada Bento Gonçalves foi passada ali mesmo, na praça.

A vinda de trabalhadores de regiões distantes do Brasil através de empresas terceirizadas e atravessadores é novidade em um setor em que as relações de trabalho costumavam ser baseadas nos laços familiares e de amizade. “Antes não se verificava na safra da uva esse atravessador da mão de obra, que ganha em cima do trabalho dos outros”, explica Vanius Corte, gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caxias do Sul. “Como as propriedades são menores, era comum a própria família trabalhar na colheita e um vizinho vir ajudar”.

A lei da terceirização da atividade fim caiu como uma luva no momento em que a demanda produtiva crescia ao mesmo tempo em que as famílias de agricultores reduziam o número de filhos por casal. Com a nova legislação, não só Pedro Santana direcionou sua empresa para a colheita de uva e as vinícolas – antes, ele atuava em outros segmentos – mas a região viu surgir outras firmas interessadas no novo modelo de negócio.

Editada pelo ex-presidente Michel Temer, lei da terceirização da atividade fim permitiu a contratação de trabalhadores para a colheita da uva

 

“Hoje está cheio de empresas terceirizadas, tem crescido nos últimos anos de forma assustadora”, confirma Sérgio Poletto, segundo secretário da Fetar-RS, a Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul. “Mas tem empresas que cuidam dos funcionários, seguem as recomendações. E tem essas que fazem o que fizeram com estes trabalhadores”, completa.

A facilidade na contratação desse tipo de serviço levou uma dessas companhias, a Via Rural, a se apresentar como o “Uber da colheita”: “Graças a essa lei nós podemos tocar na uva, que para o produtor rural é atividade fim”, explica o advogado Jarbas Fagundes, diretor executivo da empresa. “Antes a gente só podia fazer o café, ficar na portaria, dirigir o caminhão”, completa. Fagundes ressalva que, embora terceirize mão-de-obra, sua firma não explora trabalhadores. A Repórter Brasil encontrou apenas um processo trabalhista contra a Via Rural, de um ex-funcionário que teve um pedido de danos morais negado pela justiça.

Mas essa não é a regra. Segundo Maurício Krepsky, auditor-fiscal do trabalho e chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE, o impacto da terceirização nos casos de trabalho escravo contemporâneo registrados no Brasil foi progressivo e acabou se revelando “avassalador”. “Mesmo sem ainda haver estudos sobre isso, por experiência sabemos que grande parte dos resgates envolvem terceirizados, incluindo os dois grandes no Rio Grande do Sul neste ano, em Bento Gonçalves e Uruguaiana”, explica. “Aliás, nos maiores casos de resgate de trabalhadores em condições de escravidão moderna em 2023 havia terceirização, lícita ou ilícita, que somam mais de 500 vítimas de trabalho escravo”, complementa.

Produção em alta demandou mão-de-obra

Nem todos os trabalhadores terceirizados que chegam a Bento Gonçalves e região tem contrato formalizado com alguma empresa, como a Fênix ou a Via Rural. Há vários que chegam conduzidos por “gatos”, atravessadores ilegais que já existiam, mas que proliferaram com a reforma trabalhista, aprovada um mês após a lei de terceirização e que flexibilizou as relações de trabalho.

“A reforma trabalhista deu uma sensação para muitos empregadores de que agora pode tudo. Por outro lado, as pessoas estão topando qualquer coisa para poder trabalhar. Estas duas coisas fizeram aumentar muito a informalidade, mas muito mesmo”, observa Corte, do MTE de Caxias do Sul. “O grande monstro que ronda o campo é a informalidade”, confirma Nelson Wild, presidente da Fetar-RS.

A questão é que muita coisa havia mudado desde o final dos anos 1990 no setor vitivinícola. Depois que o governo do Rio Grande do Sul instituiu o Fundivitis – fundo que injetou dinheiro na atividade e levou à criação do Instituto Brasileiro do Vinho –, o vinho brasileiro ganhou qualidade e ficou mais conhecido. Os espumantes da serra gaúcha caíram no gosto dos consumidores e a demanda por alimentos naturais também impulsionou as vendas de suco de uva integral.

Incentivos estatais levaram a salto produtivo do setor, mas não houve planejamento para ampliar mão-de-obra na mesma proporção

 

“Nossas colheitas saltaram de 500 milhões para quase 800 milhões de quilos nos últimos dez anos”, afirma Helio Marchioro, diretor-executivo da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul, a Fecovinho. Mas o setor subestimou o gargalo da mão de obra: “Ninguém levou muito em conta isso. Estava todo mundo preocupado com a produção da parreira, o preço da uva, a vinificação, o mercado… Mas como eu faço para produzir tudo isso?”.

De início, quando havia necessidade de mais braços, a regra era que o agricultor abrigasse os trabalhadores vindos de fora na própria casa, oferecendo também a alimentação – tudo muito informal.

“No momento de ir embora, eles ainda levam de presente caixas de uva, garrafas de vinho e salames”, observa Cedenir Postal, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar de Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Pinto Bandeira e Santa Tereza. Uma realidade que ainda subsiste, mas é cada vez mais rara diante dos riscos jurídicos de um contrato sem nenhuma garantia legal.

A adoção de tecnologia na aplicação de agrotóxicos e outros insumos também permitiu a concentração de áreas de parreira cada vez maiores nas mãos de famílias reduzidas, e cujos filhos não querem permanecer no campo. “Está ficando gente velha nas propriedades, casais de 50, 60 anos, às vezes com apenas um filho, e plantando mais uva”, resume Luis Carlos Rupp, professor de viticultura do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves.

Para piorar, as mudanças climáticas tornaram o período de colheita mais imprevisível – depois que a uva chega no ponto, precisa ser colhida em cerca de dez dias, sob o risco de sair dos padrões exigidos pelas indústrias.

Foi assim que Santana percebeu na safra de uva uma oportunidade de ampliar os lucros. Passou a oferecer aos pequenos agricultores um pacote completo, que incluía transporte, alimentação e alojamento dos trabalhadores. “Ele dizia que a gente não precisaria se preocupar com nada”, confirma José*, um produtor rural que contratou o serviço de Santana na safra passada. “Eles traziam o trabalhador de manhã, serviam a comida no almoço e depois buscavam pra levar embora”, relata.

“Talvez essa empresa tenha entrado com tanta força no mercado porque apresentou algo que parecia uma vantagem competitiva, fornecendo a mão de obra e ainda se encarregando da estadia, alimentação e transporte”, avalia Paulo Roberto Wünsch, professor de sociologia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves. “Imagina uma mulher com 60 anos de idade tendo que fazer café da manhã, almoço e jantar para um monte de trabalhadores por dez dias. Isso era um suador para estas famílias”, concorda Rupp.

Os professores Wunsch (E) e Rupp (D) concordam que mudanças socioeconômicas na região contribuíram para mudanças nas relações de trabalho na região

 

Mas as investigações da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho e Emprego revelam que as estratégias de Pedro Santana para lucrar mais incluíam jornadas exaustivas, condições degradantes e servidão por dívida – três características de trabalho análogo à escravidão previstas no Código Penal brasileiro. A reportagem ouviu depoimentos que corroboram os achados das autoridades, que ainda estão trabalhando no caso.

Jornadas de trabalho de 20 horas

São 4 horas da manhã, e você acorda por bem ou por mal – neste caso, com choques elétricos. Embarca em uma van, onde ganha meio copo de café preto e um pacote de bolachas Maria. Antes das 5:30, já está embaixo do parreiral colhendo uva. O almoço é engolido ali mesmo, sob o sol. Depois, ainda é preciso carregar as caixas de uva para cima do caminhão. 

Você está de pé há nove horas, mas o expediente ainda não chegou nem na metade.

Da propriedade rural, a van te leva para uma das três vinícolas clientes da Fênix: Garibaldi, Aurora ou Salton. Ali, começa uma nova jornada que só vai terminar perto da meia-noite, e que inclui o descarregamento das caixas vindas das propriedades rurais e a limpeza da prensa de uva. Vinte horas de trabalho depois, você volta pro alojamento para dormir por quatro horas, antes de começar tudo de novo.

Vinícolas que se beneficiavam do trabalho escravo, como a Garibaldi, Aurora (foto) e Salton, assinaram termo de ajustamento de conduta para prevenir novos casos

 

Assim como o “pacote completo” oferecido ao produtor rural, incluindo transporte, alojamento e alimentação do trabalhador, Pedro Santana instituiu a seus homens jornadas de 20 horas, segundo relatos ouvidos pela reportagem – o que levava alguns homens a dormir de pé sob as parreiras ou em cima de caminhões. Com isso, dizem os entrevistados, lucrava duas vezes em cima de um mesmo trabalhador: através de um contrato com a vinícola e outro com o produtor rural.

No final do mês, era comum estes trabalhadores não receberem nenhum centavo. Pelo contrário: muitas vezes, eles que acabavam devendo para os patrões, graças a um esquema que envolvia multas por faltar ao trabalho ou por envolvimento em brigas e atrasos no pagamento dos salários – o que deixava os trabalhadores dependentes de vales e empréstimos a juros exorbitantes fornecidos por Fábio Daros, parceiro de Santana no negócio e dono do alojamento onde aconteciam agressões com armas de choque, spray de pimenta e balas de borracha

“Esses vales eram fornecidos a juros extorsivos, que em alguns casos chegava a 100%”, afirma o delegado da Polícia Federal em Caxias do Sul, Adriano Medeiros do Amaral. “Eles pegavam empréstimo com o dono da pousada [Fábio Daros], e depois o valor era descontado em folha pela Fênix [Pedro Santana], o que mostra que eles atuavam em conjunto”, completa.

Trabalhadores eram submetidos a jornadas intermináveis, mas ainda assim, muitas vezes não recebiam salário no final do mês

 

Em nota, a defesa de Fábio Daros informou que a pousada não tinha qualquer envolvimento nas questões trabalhistas e relativas à intermediação de mão de obra. “A pousada possuía situação de funcionamento regular perante os órgãos municipais e jamais chegou ao seu conhecimento os fatos narrados pelos trabalhadores”, informou a advogada de Daros. A íntegrapode ser lida aqui.

A defesa de Pedro Santana preferiu não responder aos questionamentos da reportagem: “Não iremos nos manifestar perante o vosso canal, face a afiliação com o site Headline, que possui viés político e, consequentemente, não visa a informação do leitor, mas sim criar uma narrativa que atenda aos seus ideais”, justificou o advogado Augusto Giacomini Werner. A Repórter Brasil esclarece que todos os fatos narrados neste texto foram apurados por jornalistas profissionais guiados pelo interesse público e passaram por verificação. O espaço permanece aberto para a manifestação de Pedro Santana e de seus advogados.

Como mostrou o Headline, além das vinícolas, Santana fornecia mão de obra para a safra de uva e para a produção de frango da Brazilian Food, a BRF, e era comum os mesmos homens atuarem nas duas atividades – uva e frango – a depender da demanda dos empregadores. Segundo a PF, há indícios de que todos eles estavam submetidos ao mesmo esquema de vales e descontos na folha.

Trabalhadores ouvidos pela reportagem relataram que as condições da jornada no frango eram ainda piores do que na uva. Nesse caso, o  pesadelo era o “batidão”, em que os funcionários ficavam três dias trabalhando ininterruptamente, indo de granja em granja para apanhar frangos e levá-los para a BRF.

Na avaliação do Ministério do Trabalho e Emprego, entretanto, as condições de trabalho eram diferentes nos dois casos. “Estas pessoas que vêm pra apanha de frango não têm uma atividade sazonal, mas trabalham continuamente, então a relação é diferente. Eles tinham pagamento de salários e muitos não ficavam no alojamento, e sim em moradias que eles mesmos alugavam”, afirma Corte.

Dono de alojamento onde estavam os resgatados é apontado pela polícia como parceiro de empresário que contratava trabalhadores

 

“Isso não quer dizer que as condições de trabalho fossem ideais, e há inquérito em tramitação para apuração da situação específica dos trabalhadores da apanha do frango”, acrescenta Ana Lúcia Stumpf González, coordenadora da unidade do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em Caxias do Sul, que concedeu entrevista por e-mail (íntegra aqui). O órgão é responsável por buscar a responsabilização de toda a cadeia produtiva após a operação de resgate.

Por não terem sido considerados vítimas de trabalho escravo, vários funcionários de Santana não tiveram direito à indenização de quase R$ 10 mil pagos pelas vinícolas após assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT e acabaram permanecendo em Bento Gonçalves. Alguns querem voltar para a Bahia, mas não têm dinheiro para a passagem. “Eu não me adaptei no Sul. Vim trabalhar na uva, acabei no frango, e ia embora depois da safra. Bateu esse revertério aí, ficaram com nosso dinheiro e eu fiquei sem condição de ir embora”, diz Dirceu*, um trabalhador que perdeu o ônibus oferecido no dia do resgate. Ele também alega que Pedro Santana ainda não pagou o que lhe deve. 

Outros querem continuar tentando a vida no Rio Grande do Sul – com sorte, desta vez em um trabalho digno. “Depois que eu saí da Fênix, eu passei dias só dormindo e me alimentando. Agora que estou começando a me recuperar”, conta Hamilton*.

Convenção coletiva pode ser acordo histórico

Pouca coisa parece ter mudado depois do resgate dos trabalhadores – cujo número foi atualizado para 210 pelo Ministério Público do Trabalho, com a inclusão de três pessoas que não estavam no local no momento em que ocorreu a ação, mas faziam parte do grupo.

Mesmo oficialmente interditado, o alojamento de Fábio Daros, no bairro Borgo, segue em funcionamento – não se sabe se os trabalhadores estão prestando serviços para as empresas de Santana ou apenas permanecem ali por não terem para onde ir. O imóvel até chegou a ser desocupado no dia 20 de março, mas só por algumas horas, antes da visita do ministro do Trabalho, Luiz Marinho: ele tirou uma foto na frente do galpão, falou rapidamente com jornalistas, e foi embora. Dali a pouco, um grupo de cerca de 50 trabalhadores voltou ao local. “Foi uma cena de cinema que montaram para o ministro”, relatou um morador do bairro que prefere não se identificar.

Reportagem flagrou pessoas entrando e saindo do alojamento, embora em sua porta haja uma placa de interdição afixada

 

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar aproveitou o escândalo e a visita do ministro para pedir mais “flexibilização” nas contratações e “uma visão mais sensível” para a realidade do setor. “A gente não quer fazer algo fora da lei, mas tem que ser algo viável para os pequenos agricultores. Os custos são altos, as propriedades são pequenas e muitos produtores esperam mais de um ano para receber o pagamento da safra”, justifica Postal, que entregou um ofício ao ministro.

Para o lado das indústrias, há inclusive vitórias. O governo federal, que havia suspendido a participação de Aurora, Garibaldi e Salton em eventos e negociações internacionais capitaneados pela Agência Brasileira de Exportações e Investimentos (Apex), voltou atrás na decisão de excluir as vinícolas das rodadas de negócio. Vinhos e sucos de uva das três marcas também seguem nas prateleiras nas principais redes de supermercados, incluindo aqueles que assumiram compromissos públicos contra o trabalho escravo.

Sindicato espera costurar acordo com a patronal que permitiria assinatura de primeira convenção coletiva da história nas regiões de Bento Gonçalves e Caxias do Sul

 

Na capital do estado, empresários brindaram com vinhos e espumantes da Salton, Garibaldi e Aurora, em ato de desagravo às três empresas. Para os donos do dinheiro, o assunto é página virada, como decretou o editorial do maior grupo de comunicação do estado.

Aos trabalhadores terceirizados da agricultura resta a esperança de que, ao menos, o escândalo sirva para garantir direitos. “A região da serra é bem problemática. Há uma resistência por parte dos próprios sindicatos com relação ao assalariado rural”, explica Sérgio Poletto, segundo secretário da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul.

Mas a categoria está decidida a pressionar e suas reivindicações ganharam força: depois da repercussão do caso de trabalho escravo, a Fetar conseguiu retomar negociações que estavam travadas há anos para a assinatura de convenções coletivas de trabalho que podem mudar a vida dos assalariados em nove cidades da região, incluindo Bento Gonçalves e Caxias do Sul, onde nunca houve acordo coletivo.

15
Mar23

As cidades devastadas pela fúria bolsonarista

Talis Andrade
 
 
 
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O poder de destruição da extrema direita implode as cidades, suas marcas e suas almas

 

por Moisés Mendes

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O bolsonarismo raiz é um fenômeno paroquial, que se disseminou virtualmente pela ação de tios e tias do zap de pequenas e médias cidades e virou modo de vida.

A vidinha da província, mobilizada pelas milícias digitais de Bolsonaro, multiplica extremismos, mentiras e ódios disfarçados de posições e atitudes pretensamente moralistas e religiosas.

O efeito é devastador contra as próprias comunidades. Um exemplo recente. Bento Gonçalves, a cidade dos vinhos na Serra gaúcha, era até agora apenas um lugar ultraconservador com índole bolsonarista. É há uma semana uma cidade que tem bolsonaristas e escravistas.

Três empresas do centro da região da uva, Aurora, Salton e Garibaldi, foram flagradas como contratantes de trabalho escravo de mais de 200 nordestinos, num sistema que o eufemismo chama hoje de análogo à escravidão.

Não são bodegas. São grandes grupos com fama fora do país, são grifes internacionais. Desfrutavam de um serviço sujo terceirizado gerido por gatos de fora da região.

Não há surpresa. O escravismo é coerente com as discriminações e os ódios propagados pelo bolsonarismo. Também o escravizado do século 21 é visto como um ser inferior, e mais ainda se for baiano.

Mas o bolsonarismo não poupa nem os seres superiores com os quais discorda. Em maio do ano passado, líderes de Bento Gonçalves mandaram dizer ao ministro Luiz Fux que não aparecesse por lá para uma palestra.

Fux deveria ir a Bento em junho a convite da Câmara da Indústria, Comércio e Serviços (CIC). A reação de grandes empresários bolsonaristas acionou ataques ao ministro nas redes sociais.

A CIC tornou público que não seria seguro manter a palestra em sua sede, considerada desprotegida, e transferiu o evento para o prédio da OAB.

A mais poderosa entidade empresarial da cidade avisava ao presidente do Supremo que sua segurança estava em risco. Fux desistiu da viagem. O tema da conferência era Risco Brasil e segurança jurídica.

Foi desfeito o roteiro de um faroeste com desfecho previsível. Fux seria cercado, se conseguisse passar pelo pórtico da cidade, representado por um gigantesco barril de vinho. E assim o caso foi encerrado.

Ninguém mais fala do episódio, como ninguém quer saber o que resultou na polícia, no Ministério Público ou na Justiça do cerco de manés ao ministro Luis Roberto Barroso na famosa praia de Porto Belo, em Santa Catarina.

Barroso jantava com a família e amigos num restaurante, no dia 3 de novembro, quando uma turba cercou o prédio.

O grupo do ministro teve de abandonar o restaurante. Barroso se refugiou na casa onde estavam hospedados.

O local também foi cercado. Os agressores gritavam e ameaçavam. Às 4h da madrugada do dia 4, sob escolta policial, a família abandonou a casa e a região da enseada de Porto Belo.

O fim de semana na praia havia sido interrompido por bandidos em fúria. Não se sabe até hoje das medidas legais e formais contra quem ameaçou Fux em Bento Gonçalves e Barroso em Porto Belo, até porque as pautas foram abandonadas pela grande imprensa.

E a vida segue. As paróquias têm regras e sistemas institucionais próprios de proteção aos seus delinquentes furiosos e poderosos.

É como funcionava a Chicago dos gângsteres e como funcionam as regiões dominadas por milicianos. Fux não entrou em Bento e Barroso foi corrido de Porto Belo.

Um era o presidente do Supremo e o outro será o próximo a ocupar o comando da mais alta Corte do país, hoje com a ministra Rosa Weber.

Os personagens que afrontaram os ministros são de apenas dois dos muitos redutos interioranos tomados pelo bolsonarismo. 

O Sul tem centenas dessas trincheiras, muitas transformadas em fortalezas impenetráveis durante a ocupação de quartéis por manés e patriotas.

Cidades gaúchas que agridem ‘esquerdopatas’ (e fazem listas de boicote a empresas e profissionais) têm as suas Gangues do Relho.

Pequenas e médias cidades foram dominadas por forças que não existiram nem na ditadura. Os agressores mais destemidos subiram na hierarquia do fascismo e se transformaram em terroristas, no 8 de janeiro em Brasília.

O bolsonarismo exacerba a índole de suas lideranças e das bases de manés e patriotas e acaba expondo Bento, Porto Belo, Itajaí, Sorocaba como bolsões incontroláveis.

Ao extremismo, soma-se agora, no caso de Bento, a chaga do escravismo. O bolsonarismo que avançou em todas as áreas, em quatro anos, deixa sequelas destruidoras.

No segundo turno do ano passado, Bolsonaro teve 75,8% dos votos em Bento e 74,29% em Porto Belo.

Em Itajaí, Santa Catarina, onde se formou um dos maiores acampamentos pelo golpe, Bolsonaro venceu com 72,96%.

Mais do que hegemonia, a extrema direita pretende ou pretendia ter controles absolutos. Grupos organizados, com forte base popular, se apropriaram das comunidades.

A escravidão é parte desse contexto. A elite branca, tomada pelo sentimento de superioridade política, econômica e moral, impõe as leis locais do bolsonarismo.

Vinha dando certo, mas não dá mais. A Bento Gonçalves dos vinhos e espumantes não sai das manchetes. Quantos escravistas estavam nos grupos de tios do zap que enxotaram Luiz Fux?

O poder de destruição da extrema direita implode as cidades, suas marcas e suas almas.

 
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01
Mar23

Trabalho escravo: patronato culpa programas sociais por falta de mão de obra na colheita da uva

Talis Andrade
 
 
Mais de 200 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão atuando na colheita da uva em Bento Gonçalves. Foto: Divulgação/PRF
Mais de 200 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão atuando na colheita da uva em Bento Gonçalves. Foto: Divulgação/PRF

 

Escravocrata Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves diz que uma parcela da população não trabalha devido a um "sistema assistencialista" prejudicial à sociedade

 

A falta de mão de obra barata (quase de graça), para trabalhar na colheita da uva tem sido a principal justificativa das vinícolas da serra gaúcha e de produtores locais para a contratação de trabalhadores vindos de fora do Rio Grande do Sul. A situação levou ao resgate de mais de 200 pessoas atuando em condições análogas à escravidão contratadas pela empresa Oliveira & Santana, terceirizada que presta serviços às vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, além de produtores locais.

Leia mais:

Trabalho escravo em Bento: ‘Eles esperavam que eu ficasse vigiando e entregasse nomes’

Máquina de choque e spray de pimenta são encontrados em alojamento em Bento Gonçalves

Desde que o caso foi descoberto numa ação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal, a Prefeitura de Bento Gonçalves e entidades do setor vitivinícola e do turismo da região se manifestaram tratando o caso como “episódio pontual” e responsabilizando diretamente a empresa prestadora de serviços.

Uma dessas entidades, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG), foi além e responsabilizou os programas assistenciais pela falta de mão de obra.

“Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”, afirmou, em nota publicada no último sábado (25).

No pronunciamento, a entidade, embora cobre que as autoridades competentes cumpram seu papel e punam os responsáveis por “tais práticas inaceitáveis”, se adianta em isentar as vinícolas que contratavam o serviço da empresa Oliveira & Santana.

“É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação. São, todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados”, afirma  o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG).

A legislação, todavia, é cristalina ao exigir que as empresas conheçam e fiscalizem as condições dos trabalhadores terceirizados contratados por um prestador de serviços.

A audiência entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi está marcada paraas 14h desta quarta-feira (1). O objetivo do órgão é relatar o caso, apresentar o que foi apurado nas investigações e requisitar informações sobre os contratos. O MPT vai discutir questões relativas à responsabilidade das empresas tomadoras como parte da cadeia de produção vinífera e ouvir os representantes das empresas.

 

Indenizações 

 

Antes, ainda nesta terça-feira (28), o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem audiência com o empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana, proprietário da empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, responsável pela contratação dos trabalhadores resgatados – ele também era o proprietário da empresa Oliveira & Santana, a qual mantinha contratos com as vinícolas.

A audiência deve discutir a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta aditivo ao acordo emergencial firmado no fim de semana. Nele, o MPT pretende propor obrigações a fim de prevenir novas ocorrências, sob pena de multas. O órgão planeja discutir  também a aplicação de multa por um TAC anterior que a empresa mantinha com o MPT, com obrigações de boas práticas de contratação e a negociação do pagamento de indenizações por danos morais individuais aos trabalhadores resgatados.

Ao longo da segunda-feira (27), a empresa prestadora de serviços realizou a maior parte dos pagamentos aos trabalhadores resgatados. Por acordo expresso no TAC emergencial firmado na sexta-feira (24), a empresa pagou a cada um dos trabalhadores R$ 500,00 em espécie, além do retorno de 194 dos resgatados para a Bahia, em quatro ônibus fretados. O restante das verbas, calculado em aproximadamente R$ 1 milhão, deve ser transferido por meio de operações bancárias.

Nesta quarta-feira (22), a Polícia Rodoviária Federal desencadeou uma operação em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego e a Polícia Federal para combater o trabalho análogo à escravidão na região de Bento Gonçalves. Em torno de 150 homens foram flagradas em condições degradantes. Três trabalhadores procuraram os policiais na Unidade Operacional da PRF em Caxias do Sul e informaram que tinham acabado de fugir de um alojamento em que eram mantidos contra sua vontade. A PRF acionou o MTE e a PF para deslocar ao endereço indicado e confirmar a informação dos trabalhadores. As equipes foram até o local que seria utilizado como alojamento pelos homens e os Auditores do Trabalho constataram que havia em torno de 150 homens em situação análoga à escravidão. Além disso, os trabalhadores relataram diversas situações que passavam, tais como atrasos nos pagamentos dos salários, violência física, longas jornadas de trabalho e alimentos estragados. Também disseram que eram coagidos a permanecer no local sob pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho. Esses homens, a maioria proveniente da Bahia, eram recrutados nos seus estados de origem para trabalhar no Rio Grande do Sul. Ao chegar no local, encontravam uma situação diferente das prometidas pelos recrutadores. O responsável pelo empresa, que mantém esses trabalhadores nestas condições, foi preso e encaminhado para a Polícia Federal em Caxias do Sul. Ele tem 45 anos de idade e é natural de Valente/BA. A empresa possui contratos com diversas vinícolas da região. O MTE irá analisar individualmente os direitos trabalhistas de cada trabalhador para a buscar a devida compensação.

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