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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

04
Abr23

'Misturar política e Justiça é catastrófico', diz novo juiz da 13ª Vara de Curitiba

Talis Andrade

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Ressignificar o legado de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e companhia é a missão do juiz Eduardo Appio

Por Rafa Santos /ConJur

Um dos pilares da crise democrática que se abateu no Brasil nos últimos anos e da criminalização da política, a "lava jato" também pode ser lida como sinônimo de atropelo ao devido processo legal e estandarte do populismo judicial pela comunidade jurídica. A atuação dos antigos membros da autointitulada força-tarefa foi tão sui generis que o decano do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, chegou a afirmar que o modus operandi do consórcio "envergonha os sistemas totalitários, que não tiveram tanta criatividade".

Ressignificar o legado de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e companhia é a missão do juiz Eduardo Appio que assumiu a titularidade da 13ª Vara Federal de Curitiba em 8 de fevereiro. Ele ocupou a vaga deixada por Luiz Antônio Bonat, que em junho do ano passado foi eleito desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (PR, SC e RS).

Crítico notório das práticas lavajatistas do passado, Appio pretende imprimir um modo legalista na condução dos processos remanescentes. "É fácil ser crítico e é diferente estar na linha de frente. Agora, ainda assim, a essência, os pilares são os mesmos, e as críticas são as mesmas que endossei no passado e endosso ainda hoje, já que sou um garantista, no sentido de que as prisões são a última instância do Direito Penal, são o último recurso que o juiz deve utilizar", afirmou à ConJur, ao reiterar as suas posições públicas. 

Appio tem sido alvo da ala da "lava jato" que deixou o Ministério Público e o Judiciário para fazer política sem a toga e as garantias funcionais, mas assegura que não irá se deixar levar por pressões de qualquer espécie. 

"Exerço as minhas funções com a tranquilidade de quem tem quase 30 anos dentro do fórum, a experiência necessária e a paz de espírito. As pressões não vão funcionar, venham de onde vierem", garante. 

 

Rafa Santos entrevista Eduardo Appio

 
ConJur - Entrevista: Eduardo Appio, juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba
 
 

ConJur — O senhor já tem um balanço do trabalho que herdou da 13ª Vara?

Eduardo Appio — São 237 processos penais, sendo 71 sigilosos. E a quase totalidade desses processos está relacionado à "lava-jato", porque aqui é juízo federal. Tem dois juízes por vara, o substituto e o juiz federal titular. Os processos da "lava-jato" são exclusivos do juíz federal titular, que na época foi o Sergio Moro e que eu herdei. Alguns poucos desses 237 casos se referem a outros processos penais de outras matérias, como, por exemplo, dois júris que nós temos para fazer ainda nesse ano de 2023. 

 

ConJur — Existem ainda inquéritos abertos dos anos de 2014 a 2020 que não se transformaram em denúncias?

Eduardo Appio — O que eu sei é que nós temos um grande número de delações que foram fechadas no período entre 2014 e 2018 e estamos cumprindo, estamos fiscalizando essas delações. Estamos também cobrando a Justiça Eleitoral dos estados para que os processos que foram declinados pela Justiça Federal e remetidos aqui da 13ª Vara, envolvendo políticos ou não, sejam tocados adiante, sejam movimentados, e as pessoas sejam eventualmente responsabilizadas, se for o caso. E estamos tocando as audiências em um ritmo quase diário. Hoje mesmo tivemos uma audiência importante à tarde, dois delatores importantes.  

Quase que diariamente estou fazendo audiências que envolvem muitos detalhes técnicos de crimes financeiros, operações com o exterior, dólar, Suíça, tudo isso. Então exige muita atenção. Há um desgaste maior até para entender o contexto como um todo do que uma audiência comum, de um roubo ou furto, alguma coisa assim, então exige muita atenção do juiz.

 

ConJur — O senhor sempre foi crítico dos abusos da “lava jato”. A impressão que o senhor tinha sobre a condução dos processos nas gestões anteriores mudou de alguma maneira, a partir do momento em que o senhor assumiu a vara?

Eduardo Appio — É mais fácil ser crítico do que estar dentro do furacão, sem dúvida alguma. Então, quando você está em um ritmo diário de muitas audiências, de decisões a todo momento envolvendo ou a liberação de bens de valor, ou a prisão de alguém ou a soltura de alguém, isso de alguma forma acaba mudando, sim, a percepção. É fácil ser crítico, e é diferente estar na linha de frente. Agora, ainda assim, a essência, os pilares são os mesmos, e as críticas são as mesmas que endossei no passado e endosso ainda hoje, já que sou um garantista, no sentido de que as prisões são a última instância do Direito Penal, são o último recurso que o juiz deve utilizar.

Então, os pilares [das críticas] são os mesmos. Estado de Direito, ampla defesa, contraditório, devido processo, tudo isso eu continuo defendendo, sim, todos os dias. Mas é claro que hoje evito publicar artigos ou entrar em grandes debates polêmicos sobre esses temas, já que alguns deles estão sob a nossa jurisdição. Agora, o Supremo tem feito esse trabalho com maestria nos últimos quatro anos pelo menos, readequando a força e o impacto da presença do coercitivo do Estado. Destaco os casos das chamadas conduções coercitivas, que são uma espécie de prisão na prática, que não tinham uma previsão clara nas leis e que o Supremo Tribunal Federal disse que são incompatíveis com a Constituição. 

Em relação ao Judiciário, as minhas críticas a determinados métodos, especialmente para obter confissões, sempre foram públicas, nunca foram às escondidas. Nunca tive receio nenhum, até porque sempre trabalhei como professor universitário também. Nunca tive problema nenhum em me expressar, é meu direito como cidadão me expressar, especialmente nesses momentos limítrofes onde até mesmo uma invasão ao Supremo Tribunal Federal foi levada a efeito dois meses atrás. Nós chegamos a situações limite onde aqueles que têm voz, aqueles que participam do debate acadêmico a vida inteira receberam quase um chamado moral para que se manifestem.

Eu nunca poderia silenciar diante de determinadas condutas que eu julguei que poderiam levar o Brasil para algum tipo de ditadura. Tem uma foto aqui na minha frente do [ex-premiê inglês Winston] Churchill inclusive, na parede do meu gabinete. Nós queremos um Estado transparente, queremos também um Ministério Público totalmente imparcial, republicano. E o Judiciário também, como tem sido a tradição: imparcial e republicano.

 

ConJur — O que fazer com as descobertas da “vaza jato” quanto aos movimentos combinados da polícia, MP e o antigo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba? É  preciso criar mecanismos para evitar que esse tipo de relação possa ocorrer novamente?

Eduardo Appio — Sim. Porque a ideia de forças-tarefa, de especialização, de concentração dos processos em um único juízo sempre vai passar por esse risco, por essa tentação, de tomar a força-tarefa como um todo orgânico. O sistema não foi pensado desta maneira.

Os procuradores têm, por força da Constituição Federal, a missão de fiscalizar a atividade externa da polícia. Quando se cria uma força-tarefa, é quase que natural se criar um corpo orgânico que funciona com uma lógica e uma independência próprias. 

Então, esse modelo de força-tarefa tem que ser repensado no Brasil. É importante ter especialização, mas nós podemos ter uma força-tarefa no Ministério Público, uma força-tarefa dentro da polícia ou dentro da Receita Federal, e o juiz evidentemente que não se envolve nessas questões. Estamos ainda no aguardo sobre qual será o modelo no futuro nessa questão do juiz das garantias. Porque o juiz das garantias foi concebido com a ideia de que o juiz que se envolve muito na produção de provas, na decretação de prisões, na quebra de sigilo, depois não vai ser o mesmo que vai julgar a causa criminal ao final. Como um mecanismo para garantir que não haja algum aprisionamento do juiz por força das paixões ou interesses, intencionais ou não. Todo o modelo brasileiro está em processo de mutação. 

 

ConJur — Essa questão foi enviada pelo jurista Lenio Streck. O que o senhor acredita ser o fator principal para que o MP tenha dado essa guinada não garantista? Teria sido o fator "lava jato" ou é o ensino jurídico? O que fazer para termos um sistema de Justiça que não seja lotérico?

Eduardo Appio — A mudança tem que se operar já nos primeiros anos no ensino jurídico, sem dúvida. Depois de um auge do movimento constitucionalista, do movimento do Direito Constitucional pós-1988, em que nós tivemos aí toda uma geração brilhante de novos constitucionalistas, entre eles Lenio Streck, depois de um determinado momento, com o empoderamento tanto do Ministério Público como do próprio Judiciário, nós tivemos algum tipo de erosão desse constitucionalismo de garantias e passamos a buscar um constitucionalismo de resultados. E a Constituição não prevê isso. O princípio da eficiência da Justiça fala da área administrativa do Judiciário, não de um princípio de eficiência em matéria criminal.

Então, o objetivo não é alcançar, buscar ou ir atrás de um maior número de condenações, de prisões e de bens apreendidos. O sistema de Justiça é um sistema para o exercício racional, republicano e técnico do uso do poder do Estado contra o cidadão. O Estado tem muito poder. Hoje mais do que nunca, com a questão de monitoramentos de natureza eletrônica, como do WhatsApp e e-mails. Então temos que todos os dias criar mecanismos de contenção dessa força hegemônica do Estado e também, por que não, dos próprios particulares, visando evitar um Estado totalitário.

Hoje mesmo, por exemplo, é preciso entender as posições que ocupam grandes empresas, do porte do Google e da Apple. São empresas que lidam com dados, inteligência artificial e detêm um poder que torna impossível não pensarmos, em um futuro muito próximo, na chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais contra entes privados. Eu penso que essa educação jurídica toda vai ter que mudar. O entendimento que o estudante tem desse valor, muito intrínseco à democracia, que é o direito à privacidade, precisa ser aprofundado. 

 

ConJur — Como equilibrar esse papel de professor e operador do Direito com as vedações da Lei Orgânica da Magistratura?

Eduardo Appio — Eu tenho cumprido rigorosamente todas as vedações. Não dou acesso aos processos que estão sob minha jurisdição em curso, não exerço nenhum tipo de atividade político-partidária. Estou atento, levo com seriedade e respeito totalmente os limites impostos pela Loman. Mas nenhuma lei, nem mesmo a Constituição, regula ou restringe a liberdade de expressão de cada um de nós como cidadãos comuns. Eu, como juiz, tenho direito, como qualquer outra pessoa, a ter os meus pensamentos, a exercer a minha liberdade de expressão. É quase um dever moral, porque também sou professor de Direito Constitucional, em um momento peculiar do Brasil no qual a própria democracia foi sendo colocada sob pressão, pressão popular. 

 

ConJur — No artigo "Dez medidas de transparência para o Judiciário”, o senhor afirma que o ativismo judicial deve ser reservado para momentos absolutamente excepcionais e sempre a favor de minorias não representadas no Parlamento. Nessa ótica, o que ocorreu nos últimos anos no Brasil pode ser lido como populismo judicial?

Eduardo Appio — A minha tese de doutorado é uma crítica ao populismo judicial e uma defesa da autocontenção em políticas públicas. A via adequada para esse debate é a via política de senadores e deputados eleitos, de cargos do Executivo eleitos a cada quatro anos. Essa é a via adequada para esses debates, inclusive para o debate moral. Aqueles que pretendem utilizar o Judiciário como um instrumento para realizar ou divulgar uma pauta moral, uma pauta peculiar ou uma pauta econômica, estão no local errado. Essas pessoas têm que migrar para a área política. Alguns dos personagens devem migrar do Judiciário e do Ministério Público para a política, como o próprio Deltan Dallagnol, que hoje é deputado, e o próprio Sergio Moro, que é senador. 

Então, o campo próprio para esse tipo de debate sempre foi e sempre será o Congresso Nacional. Dentro do Judiciário, os critérios têm que ser técnicos e apartidários. O sistema jurídico trabalha com critérios técnicos, com axiomas, com máximas de Direito, com a jurisprudência, com tratamento isonômico, e assim raramente vai confrontar os limites da moral. O discurso moral é o discurso que deve ser veiculado pela religião, pelo campo político, pelo jornalismo ou pelas faculdades de Filosofia. Mas, dentro do Direito, a moral tem um papel bastante limitado. Não que o Direito seja imoral, mas o Direito tem uma lógica própria. O que é da política é para a política, e o que é de Direito deve ser tratado pelo Judiciário. Se você mistura esses dois ingredientes, o resultado é catastrófico.

 

ConJur — Como o senhor acredita que deva ser a relação com a imprensa em casos midiáticos, como os tocados pela "lava jato"?

Eduardo Appio — A mais transparente possível. É por isso que nós estamos dando transparência total desde o início dos trabalhos, mostrando que a "lava jato" não morreu, que ela pode e vai ter uma sobrevivência, uma sobrevida. Nós hoje sofremos muitas pressões, claro, e acho que existem pressões das mais diferentes orientações e origens, no sentido de que muita coisa seja arquivada, varrida para debaixo do tapete, esquecida ou prescrita. Mas temos recebido sempre o apoio incondicional do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no sentido de tocarmos esses processos adiante, não deixar a “lava jato” morrer. 

E isso também tem sido a tônica dos órgãos mais importantes do Judiciário, inclusive do Conselho Nacional de Justiça. Então exerço as minhas funções com a tranquilidade de quem tem quase 30 anos dentro do fórum, a experiência necessária, a tranquilidade e a paz de espírito, e as pressões não vão funcionar, venham de onde vierem.

 

ConJur — O senhor em uma entrevista falou que não será o coveiro da “lava jato”. O que o senhor quis dizer com isso? 

Eduardo Appio — Eu sempre acreditei na “lava jato” desde o início, porque no início formou uma operação muito republicana, algo revolucionário, algo que mudou a percepção das pessoas de que ricos e pobres eram tratados diferentemente pela Justiça. 

Boa parte dos processos foram enviados para a Justiça Eleitoral. E esses processos vão ser conduzidos com a tranquilidade e independência necessária, e se vierem a combinar com condenações, na Justiça Eleitoral isso vai implicar, possivelmente, a inelegibilidade de muitas pessoas no futuro. Então não acredito que vai acabar em pizza.

No âmbito da Justiça Federal, alguns processos foram encaminhados também para outras unidades da federação, por conta da decisão do Supremo sobre a questão da competência territorial e matérias envolvendo a Petrobras aqui na 13ª Vara Federal de Curitiba. Então também os processos estão seguindo seu curso regular. Eu estou dando a máxima velocidade possível aos processos da vara. Vamos fazer o possível e o impossível para evitar prescrições que gerem sentimento de impunidade.

Então, no que depender de mim, estarei trabalhando sempre com independência funcional e livre de pressões. A lei atingirá a todos de igual forma. Ninguém vai ser protegido, ninguém vai ser privilegiado. Se tiver que haver punição no futuro, vai atingir de forma idêntica pessoas de diferentes partidos, orientações ideológicas ou setores do empresariado. Todos vão ser tratados da mesma forma.

15
Jul22

A imprensa que insiste na polarização é cúmplice na barbárie

Talis Andrade

hand holding pistol

Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Getty Images

 

 

Mesmo após anos de evidências e fatos, como o assassinato de Marcelo Arruda, jornalistas e veículos ainda investem em uma polarização que nunca existiu

 

23
Jun22

Juíza ignora a lei para aplicar questão moral numa vítima de 10 anos

Talis Andrade

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por Georges Abboud, Anaclara Valentim e Maira Scavuzzi /ConJur

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Recentemente, o Intercept Brasil veiculou reportagem escandalizadora[1]: Joana Ribeiro Zimmer, juíza atuante na comarca de Tijucas (SC), constrangeu criança de 11 anos — que, aos 10, fora vítima de estupro — a desistir de proceder à interrupção voluntária da gravidez, da qual, nos termos da lei, poderia livremente se socorrer, pois a gestação, não bastasse oferecer-lhe risco à vida, resultou de violência sexual inquestionável.

Não se trata de discutir, de lege ferenda, a descriminalização do aborto, polêmica que, decerto, ainda é, no Brasil, objeto de desacordo; cuida-se de situação para a qual a sociedade (certamente após debate intenso) convencionou, já por ocasião da edição do Código Penal vigente (texto publicado em dezembro de 1940), permitir o aborto legal.

A bem da verdade, há de se reconhecer que, tivesse escolhido aplicar a lei, a juíza teria solvido a questão facilmente: "Autorizo o abortamento conforme solicitado pela representante legal da criança (e pela própria criança), porque é direito legalmente previsto. Próximo caso". Contudo, Zimmer, aventurando-se numa vergonhosa empreitada moral — que, enquanto ocupante de cargo público e responsável pelo exercício da jurisdição, não era seu papel iniciar —, dirigiu um verdadeiro show de horrores, quando muito, remotamente apoiada em simulacros de argumentos jurídicos, que ou bem configuravam tentativa dolosa de fabricar justificativas para obstar o abortamento legal ou bem evidenciavam desconhecimento sobre assuntos que um estudante de graduação dominaria.[2]

Pior: agiu auxiliada pela promotoria, cuja função é fiscalizar a aplicação da lei (sim, a mesma lei que, in casu, possibilita o abortamento) e agir para proteger os interesses da criança vulnerável (que, mesmo pressionada por figura de autoridade, corajosamente afirmou que não desejava ter a criança, que não queria vê-la nascer[3]).

Não é a primeira vez que acusamos os males do ativismo, prática consistente na substituição da constitucionalidade e da legalidade vigentes por critérios subjetivos (e.g. moral pessoal), sempre perniciosa à democracia (porque reduz a nada os produtos do debate democrático, isto é, a lei e a Constituição) e ao Estado de Direito (porque compromete a segurança jurídica). A postura de Joana Zimmer é exemplo pedagógico de ativismo: quis buscar o que, segundo os valores que lhes são caros, considerava certo, e, para tanto, desprezou a lei; em lugar de dizer o direito, disse a moral. A moral, à exemplo da política, da economia, da religião, muito embora seja considerada pelo legislador quando da produção do direito, não pode influenciar o juiz que o aplica. O direito, por exigência do Estado democrático, deve ser autônomo relativamente à moral.

Por isso, independentemente das reservas morais que o agente público possa ter relativamente ao conteúdo da lei, deve aplicá-la, dando adequado curso à função que desempenha. Juízes não são guias espirituais e nem bastiões do correto e do justo. Quando procurados, devem aplicar o direito democraticamente produzido — de novo e sempre: juris-dicção é dizer o direito (o direito!) — e não o código ético que baliza suas escolhas pessoais.

Não obstante, a audiência soou como isto: uma grande lição de moral, uma orientação sobre a atitude honrosa a ser tomada, pela mãe e pela criança, diante da tragédia que as assolava (Sofra mais um pouco. Aguente duas, três semanas. Sacrifique-se. Sua dor será a alegria de um casal. Salve a vida do feto — ou alguém negará que é exatamente essa a mensagem que se extrai da inquirição da magistrada?[4]).

Mais que isso: a audiência em questão tornou-se sessão de barbárie e ignorância, por meio da qual juíza e promotora, não raro utilizando-se de informações médicas equivocadas, investiam contra a infante e a mãe para dobrá-las emocionalmente, imputando-lhes sentimento de culpa por querer exercer o direito que a lei lhe dá ("O teu bebê já tá completo. Ele já é um ser humano. Consegue entender isso?"[5]; "Em vez de deixar ele morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ele morrer agonizando, porque é isso que acontece"[6]; "Quanto mais ele fica na tua barriga, mais saudável ele fica, né? Mas, tirando ele cedo, ele fica assim...bastante tempo no hospital"[7]; "Quanto ao bebezinho, você entendeu que se a gente fizer a interrupção o bebê nasce e a gente tem que esperar esse bebê morrer? A senhora conseguiu entender isso? Que é uma crueldade imensa. O neném nasce e fica chorando até morrer"[8]).

Em resumo, dentre tantas demonstrações de falta de humanidade e ilegalidades praticadas no caso em comento, o que salta aos olhos é, primeiramente, o fato de que os agentes públicos se olvidaram de que seu papel não é o de defender interesses, crenças ou valores morais pessoais, mas o de atuarem para garantir a aplicação e efetividade dos direitos daqueles que os buscaram respaldados na Lei.

E a Lei decerto está ao lado da criança e da mãe que intentaram obter, pelas vias judiciais, o direito ao abortamento.

A esse respeito, faz-se necessário destacar que o ECA (Lei nº 8.069/90) garante à criança a absoluta prioridade na efetivação dos direitos constitucionalmente considerados como fundamentais[9], dentre esses a saúde física e psíquica.

Os danos à saúde da gestante vítima de violência já foram objeto de análise dos Poderes Legislativo e Judiciário e, no fim, o legislador considerou-os causa suficientemente relevante para a permissão do aborto (trata-se do chamado aborto humanitário, previso no CP 128, II). Nem poderia ser diferente. Não é preciso maior desforço para perceber que, não bastasse ter sua dignidade sexual atingida quando da perpetração da violência em si, a vítima, ao ter que passar 09 (nove) meses gestando o fruto do estupro, revive constantemente o trauma. Trata-se de um impacto profundo e danoso à sua saúde mental e emocional.

Quando se trata de uma criança, o prejuízo aumenta exponencialmente. Não por acaso a legislação penal vigente tem como presumida a violência de um ato sexual ou libidinoso praticado contra menor de 14 anos[10]: o entendimento do legislador é de que, nessa faixa etária, o indivíduo, por fatores biológicos e psíquicos, não possui desenvolvimento mental completo para consentir, que dirá para levar à termo gestação decorrente do estupro![11]

A verdade é que, mesmo que não pendesse de dúvida a validade do consentimento e nem houvesse risco à psique da vítima, persistiriam os impactos nocivos da gestação na saúde física da infante.

Se a gestação já é, por si só, um processo arriscado, nas pessoas de baixa idade, os perigos se multiplicam.[12] A taxa de mortalidade em gestações, partos e puerpérios experimentados por menores de 15 anos é cinco vezes maior que o normal.[13]

Para além disso, a gestação em pessoas de 10 a 14 anos acarreta, ainda, distocia óssea, que é a falha na evolução do parto, uma vez que a pelve da gestante não está completamente desenvolvida.  Ou seja, dados médicos e científicos comprovam que levar a gestação a termo, em casos como o ora comentado, põe sob ameaça a vida da gestante. Por isso é que, acertadamente, permite-se o aborto, também com fundamento no CP 128, I (é o chamado aborto necessário).

Os dados retro põem em destaque a estupidez deste caso. Nem de uma gestante adulta pode-se exigir que prossiga com a gravidez diante do risco de óbito. Como, então, poderíamos considerar seria minimamente adequado — legal, ética e moralmente — aconselhar e pressionar uma criança de 11 anos — sem capacidade decisional de acordo com a doutrina, lei e jurisprudencial nacional — a seguir com algo altamente letal ou prejudicial à sua saúde e desenvolvimento?!

Por fim, é impossível ignorar que o fato comentado traz à baila a necessidade de uma reflexão que ultrapassa os limites do Direito. A audiência traz à lume a força da violência de gênero institucionalizada: o Estado protege o feto — que supostamente será adotado mais tarde (porque nossas casas de acolhimentos de menores não estão cheias, não há um perfil idealizado pelos candidatos a adotantes, geralmente atrás de crianças brancas, e as adoções tardias acontecem à torto e a direito, com o perdão da ironia) — mas não a infante-gestante estuprada.

Cuida-se da verdadeira concretização do estado de imanência[14], já citado por Simone de Beauvoir como lugar histórico e cultural ocupado pela mulher na sociedade, restrito ao universo doméstico: a atuação do feminino em afazeres domésticos de caráter repetitivo no decorrer dos séculos, sempre atrelados aos cuidados do lar e dos filhos, não produz algo que possa ser monetizado no mundo; os homens, ao contrário, produzem, inventam, criam e modificam o mundo exterior, fazendo dele um novo lugar, transcendendo a condição animalesca original. O Judiciário tentou, pois, reconduzir ao seu devido lugar a "menina-mãe" (rectius, a vítima, pois criança alguma pode ser convocada ao papel de mãe) — o lugar de mera incubadora —, numa espécie de realização perversa da ficção distópica criada por Margaret Atwood ("O Conto da Aia"), na qual mulheres, estupradas sob a chancela do Estado, eram forçadas a dar à luz bebês que seriam entregues para casais desejosos (tragédia para umas, felicidades para outros, diria a juíza Zimmer?[15]).

Como se vê, esse movimento inconsciente de manutenção da mulher como sujeito naturalmente inadequado é reproduzido amplamente na sociedade e vem sendo objeto de estudos e resistência. Entretanto, quando se trata mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência, o tema adquire significativa relevância: a nova violência (dessa vez praticada pelo Estado), colocam-nas em posição de vulnerabilidade inequívoca e acentuada, içando-as à categoria de um não-sujeito ou daquilo que Butler[16] chama de corpo abjeto. Butler parte da premissa de que algumas vidas não são consideradas epistemologicamente como propriamente vivas, de modo que é impossível desempenhá-las ou perdê-las no sentido da palavra[17]. Trata-se de condição de precariedade a que são subjugadas certas não-vidas e que advém de uma construção social de seletividade decorrente de relações de poder. Explicamos.

Na transição histórica do exercício do poder de punir pelo Poder Soberano para a implementação do Poder Disciplinar utilizado na sociedade moderna industrial, trocou-se a decisão acerca de quem "se deixa viver ou quem deverá morrer” por “quem pode viver e quem se deixará morrer". A escolha é feita a partir da potencialidade produtiva do indivíduo, significando que o poder de punir agora não atua mais sobre a manutenção da existência de um indivíduo, mas sobre as molduras que servirão para a apreensão da vida em sentido pleno, segundo uma ótica social e política. Não mais se atrela a vida ao conceito puro de corpo biológico. O Estado é que determina quem é vida e quem é não-vida, quem é digno de proteção, garantia de direitos etc., e a quem cabe apenas a indiferença. A eleição de quem deve ser relegado à precariedade — ou seja, daqueles que se tronarão os corpos abjetos — acontece por meio da submissão dos sujeitos às normas e articulações sociais que induzem ao reconhecimento de um "ser vivo" ou de um "corpo abjeto"[18].

A condução do caso pela juíza Zimmer (com participação da promotoria) deu azo à abjetificação da vítima; tornou-a um não sujeito de direitos, indigno de proteção por parte do Poder Público — a infante foi despida de valor em si e instrumentalizada para uma finalidade única, que é viabilizar o feto, este sim merecedor do cuidado estatal. A despeito da legalidade e da igualdade, a criança não pôde exercer de maneira livre e desembaraçada aquilo que a lei assegura.

Ao fim, o ativismo da magistrada coisificou uma criança negra. Não bastasse nascer e crescer numa sociedade caracterizada pelo racismo estrutural, o nosso sistema de justiça conseguiu duplicar a violência a que está sujeita. Após o estupro, o ativismo moralista da juíza Joana Ribeiro Zimmer completou o ciclo de reificação da vítima.

O direito, então, perde a batalha para a moral. O espólio da guerra — um feto forçadamente introduzido e mantido num útero infantil, que rasgará, física e emocionalmente, o corpo hospedeiro, impondo-lhe dano incalculável e irreversível, antes mesmo de que possa tragar o primeiro sopro de ar, para então, talvez gozar de vida extrauterina. Protege-se, contra legem, a vida possível, e a vida certa (a que já existe), à qual o direito in abstracto tutela, in concreto, que se dane!

Leitores comentam caso do aborto da criança estuprada no ES - 18/08/2020 -  Painel do Leitor - Folha

[1] https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/

[2] A título de exemplo, veja-se que a juíza afirma que a interrupção da gestação após a 22ª semana seria autorização para cometimento de crime de homicídio. Contudo, sabe-se que, quando a vida é intrauterina, só pode se cogitar de crime de aborto. E, no caso sob comento, a lei é expressa ao afirmar que crime não há, dada as circunstâncias relacionadas à gestação. Dito de outro modo: aborto necessário (para salvar a vida da gestante) e aborto humanitário (para interromper gravidez decorrente de estupro) não são crimes e podem ser realizados sem limite temporal (se a lei não coloca, o juiz não pode criar, e isso também um estudante de graduação saberia). Ao aborto realizado nessas circunstâncias falta o elemento constituinte para ser crime (ou antijuridicidade ou culpabilidade, a depender da doutrina que se adota), conforme se aprende nos estágios iniciais do estudo de direito penal.

[3] Min. 2:33 do vídeo disponibilizado pelo Intercept.

[4] Ver principalmente min. 3:34 a 4:05.

[5] Fala da promotora aos min. 4:32

[6] Fala da promotora aos min. 4:57. 

[7] Fala da juíza aos min. 6:10.

[8] Fala da juíza aos min. 7:33.

[9] Artigos 3º e 4º, da Lei 8.069/90 – disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm e acessado em 21/06/2022.

[10] Artigo 217 – A, do Código Penal - disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm e acessado em 21/06/2022.

[11] A esse respeito, veja-se que a incidência de transtornos mentais e/ou psíquicos, como depressão, é maior durante a gestação e no puerpério dentre as crianças e adolescentes.

[12] A título de exemplo, gestação em pessoas de baixa idade tem a maior possibilidade de desenvolvimento de pré-eclâmpsia, ocorrência de desordem nutricionais, desenvolvimento de diabetes gestacional, maior incidência de infecções urinárias, anemia, ocorrência de desproporção feto-pélvica (o feto é maior que a pelve materna), partos prematuros e recém-nascidos de baixo peso (JÚNIOR, FERNANDO CESAR DE OLIVEIRA.  Intercorrências clínicas e obstétricas na gestante adolescente. Gravidez e adolescência. Rio de Janeiro: Revinter, 2009).

[13] JÚNIOR, FERNANDO CESAR DE OLIVEIRA.  Intercorrências clínicas e obstétricas na gestante adolescente. Gravidez e adolescência. Rio de Janeiro: Revinter, 2009.

[14] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, pág. 102.

[15] Aos min. 8:14, a juíza diz para a mãe o seguinte: “essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal. A gente pode transformar essa tragédia”.

[16] BUTLER, Judith. Quadro de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018.

[17] BUTLER, Judith. Quadro de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018, pág. 13.

[18] BUTLER, Judith, Quadro de guerra: quando a vida é passível de luto? Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018., pág. 19.

Anitta e Laryssa Bottino compartilham charge criticando grupos antiaborto -  Revista Marie Claire | Celebridades

17
Fev22

Tiro, porrada e bomba! O inferno do debate político nacional

Talis Andrade

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O ex-comentarista da Jovem Pan Adrilles Jorge 

 

por Wilson Gomes /Cult

Esta foi uma semana ruim para o radicalismo político na esfera pública. O mercado de Opiniões e Comportamentos Políticos Desagradáveis, Radicais, Levianos e Feitos para Lacrar, que vinha em alta desde 2013, teve um revés. Mas é claro que isso não vai alterar o seu modo de funcionamento, e na semana que vem voltará à programação original para melhor servir à sua ampla e ativa clientela.

Já faz tempo que a esfera pública política vem funcionando sob o imperativo da lacração e da necessidade cotidiana de alimentar uma guerra cultural com fogo e fúria. Tudo motivado pelas recompensas em forma de amor digital e em “monetização” – sim, likes pagam boletos – que são reservadas apenas a quem apresentar as posições mais extremadas e da forma mais afrontosa possível. É preciso “causar”.

A necessidade por tretas e radicalismo se generalizou. O BBB22, por exemplo, é considerado a edição mais chata da franquia em muitos anos pela falta das “problematizações” e barracos entre tribos identitárias que foram abundantes no ano passado. Da mesma forma, os ambientes de produção e distribuição de informação foram pelo mesmo caminho. Os jornais de referência, os produtos noticiosos hiperpartidários, os sites de notícia e o público que discute política nas plataformas digitais, todos gostam mesmo é de radicalismo, pé no peito, polêmica pela polêmica, não de quem hesita, faz distinção, argumenta e fala baixo. Basta que se vejam as métricas de seguidores, visualizações, engajamento e faturamento para se comprovar este ponto de vista.

Com esse padrão em vigor, como ficar chocando com a espiral ascendente de brutalidade, provocações, cancelamentos e ódio que infestam a vida pública brasileira?

 

A inovação “disruptiva” do mercado de razões

 

Os melhores atores no provimento desse tipo política são, naturalmente, os grupos mais novos e inovadores no ramo da militância (militância não, desculpe, agora se chama “ativismo”) e do comentário político. Penso sobretudo na nova extrema-direita, que já nasceu digital, na nebulosa hiperliberal que emergiu no Brasil desde o início da década passada (Ancaps, liberteens, libertários e assemelhados) e nos identitários de esquerda. Todos, ao meu ver, fornecendo padrões de militância e comentário político “inovadores” baseados em três lemas: a) ou tem treta ou tem tédio; b) quem não radicaliza não é notado; c) ou você é um floquinho de neve, cheio de frescuras e flopa, ou você pisa no dedão de alguém e bomba.

Muita gente teve uma ascensão meteórica, de nadinha para influencer bombado, em alguns anos. Nem todos tratavam de política institucional, mas lembrem-se que estamos na mais plena materialização da ideia de que tudo é política, do pessoal e íntimo até as causas mais universais e abstratas. Além disso, o jogo político passou a ser o principal entretenimento brasileiro desde 2013, ganhando da fofoca e da ficção. Era normal que mesmo quem se ocupava inicialmente de outras coisas convertesse para a política o seu arsenal de gracejos, performances e opinião.

O resultado é o que estamos vendo. Só isso explica fenômenos como o fato de o Flow Podcast ou ou PoadPah terem se tornado arenas centrais irrecusáveis para candidatos presidenciais. Só isso explica pessoas como Caio Coppolla e Adrilles Jorge se tornaram comentaristas de política na Jovem Pan. Ou como Kim Kataguiri, Fernando Holiday e outros fundadores de startups antipetistas, além de uma lista enorme de youtubers antipetistas ou libertarianistas, terem conseguido mandatos populares nos últimos ciclos eleitorais. Ou a ascensão de figuras como Rodrigo Constantino, Jones Manoel e Allan dos Santos, que transformaram o provimento de opinião política controversa, extremada e provocadora em sua atividade e fonte de remuneração principal.

Não chegaram aonde estão por uma inteligência notável ou por uma formação sólida e consistente, mas porque entenderam o momento, as demandas da nova clientela consumidora de informação política e conseguiram projetar um produto que atende tais demandas: inovador, provocador, controverso, lacrador e chocante.

E há ofertas para todos os gostos. Se você é um stalinista ou acabou de sair da Guerra Fria, nem por isso deixará de ter um podcast, um canal no YouToube, um programa de rádio ou audiovisual para mastigar e interpretar o mundo conforme as suas expectativas. Se você é um identitário de esquerda, um evangélico conservador ou um hiperliberal, idem, sempre haverá alguém para oferecer uma interpretação radical, “disruptiva” e provocadora do mundo conforme os seus desejos.

Disso tudo resulta uma esfera pública política polarizada, devotada à provocação e ao reforço de pontos de vistas radicalizados, parciais e, geralmente, furiosos. Ora, quem semeia tretas e radicalismo, como pode esperar colher moderação e disposição para construir cooperativamente alternativas políticas?

 

Semeando conflitos para colher engajamento

 

E foi o que vimos esta semana, mais uma vez. Embora, nos casos em tela, o radicalismo tenha custado caro a quase todos os radicais.

No sábado (5/2), um vereador do PT de Curitiba liderou uma multidão de manifestantes políticos num protesto contra o assassinato de um congolês no Rio. A inovação consistiu em fazer este protesto dentro de um templo religioso católico, que, segundo a Arquidiocese local, foi agressivamente invadido. Os fiéis podem esperar, o identitarismo tem as suas urgências e não pode esperar.

Isso tudo enquanto a direita conservadora está justamente escolhendo os temas para a sua estratégia de semear o pânico moral contra a esquerda. No exato momento em que começava a circular em suas redes de WhatsApp os temas “os petistas querem acabar com as igrejas” e “eles são cristofóbicos”, a esquerda vai lá e fornece personagens e imagens. A ideia de que “estamos sitiados e oprimidos pelo Mal” precisava de vídeos, não precisa mais: o movimento negro identitário acabou de fornecer-lhes material até outubro.

Isso impede a vitória de Lula? Provavelmente não. Mas basta um ato estúpido como esse para dar mais 3 vereadores, 5 deputados estaduais e 2 federais ao PP, PL ou Republicanos. Jogada genial. A centro-esquerda provavelmente reconquistará a presidência da República na eleição de outubro, mas não a presidência da Câmara nem a maioria nas casas legislativas. Quem quer que venha a ser o futuro presidente do Brasil vai ter que negociar qualquer coisa com as bancadas da Bíblia e do Boi, que, afinal de contas, continuarão mandando nesse país. Em outras palavras, o bolsonarismo poderá perder a hegemonia em outubro, mas o identitarismo evangélico ultraconservador consolidará o seu predomínio. Com a ajuda dos radicais do petismo.

Não bastasse isso, começou a circular no submundo da extrema-direita uma campanha de uma rede de academias de ginásticas em que se diz “todas as pessoas brancas reproduzem racismo”. A direita bolsonarista, claro, fez a festa, reiterando que se você é branco, cis e hétero não tem nada a ganhar votando numa esquerda que esfrega na sua cara “você é um racista, reconheça os seus pecados que temos uma penitência aqui para você pagar”. Independentemente de você efetivamente ser racista ou não. Mais uma vez a militância-de-problematização dos identitários de esquerda alimenta a militância-de-treta dos identitários de direita. Tem sido assim há muitos anos.

Uma campanha como essa, que distribui culpas e exige penitência, tem pouquíssima capacidade de mudar atitudes e comportamentos fora da bolha dos progressistas. Este é um dos grandes problemas das táticas “de problematização” identitária de esquerda. Eles estão tão acostumados a pisar nos pés dos progressistas e a contar com um rio perene de remorsos e complacência da esquerda que não sabe falar para um auditório universal. Então, é tiro no pé a toda hora.

 

O ancap e o nazismo

 

Na última segunda (7/2), os libertarianistas de direita começaram o seu momento de meter os pés pelas mãos. Os âncoras do Flow Podcast, Bruno Monteiro Aiub (vulgo Monark) e Igor Coelho, conversavam com os deputados Tabata Amaral e Kim Kataguiri, quando o próprio Monark defendeu com veemência que um partido nazista ou antijudaico deveria ter o direito de existir no Brasil. Posição confortavelmente em circulação nos ambientes hiperliberais, em que todos os desejos e caprichos devem ser desembestados (liberdade como um absoluto) e a vida social tem que ser darwinismo duro e puro (liberalismo austríaco). Só que desta vez foi notado. Kim Kataguiri assentia e, indagado sobre se concorda com a criminalização de partidos nazistas na Alemanha, disse que não. Tabata Amaral, por sua vez, expressou com firmeza uma posição contrária à opinião dominante na mesa.

Bem, o fato foi considerado chocante e intolerável e a condenação veio de todos os lados, forte, rápida e intensa.

O Flow Podcast, de propriedade dos dois âncoras mencionados, começou a perder patrocinadores e o próprio Monark, um dos mais populares influenciadores digitais do público jovem, foi afastado do programa que criou, depois de explicar que não pensava realmente assim e dizer que estava bêbado quando disse o que disse. Kim Kataguiri declarou que se equivocou na resposta, que estava pensando em outra coisa e se distraiu. Ambos pediram sentidas desculpas e juraram ser antinazistas desde criancinhas.ImageImage

 

As coisas nem chegaram a esfriar e já no dia seguinte circulava a imagem de Adrilles Jorge, comentarista de política da Jovem Pan, rádio que é a voz do bolsonarismo no noticiário brasileiro, fazendo a reconhecida “saudação nazista” no encerramento de um programa jornalístico. Foi um gesto nítido, acompanhado de um sorriso de galhofa e um olhar para o lado buscando cumplicidade, enquanto o âncora do programa deixava escapar, estupefato, que considerava aquele gracejo “surreal”. O liberteen radical não conhece limite.Image

Ou seja, um dia depois de um par de radicais do darwinismo social defender a liberdade de ser nazista, um imbecil, que se considera poeta, que foi chamado de “inteligentíssimo, cultíssimo” por Bial e elevado a comentarista político pela Jovem Pan, saúda o Führer na frente das câmeras como se tudo na vida fosse apenas brincadeira e provocação. Até o nazismo.

A revolta e a retaliação vieram em seguida, inclusive com Guilherme Boulos declarando em tweet, depois apagado, que quem faz um gesto desses mereceria o mesmo tratamento que os comunistas deram aos nazistas ao ocupar Berlim. Fuzilamento ou forca, deduzo.

Sim, parece que todos os envolvidos nessa rodada de radicalismo e provocações foram ou serão punidos, de uma forma ou de outra. Acontece que as circunstâncias não mudarão por causa disso. Pensemos no caso desse modelo de debate político promovido pela CNN Brasil ou pela Jovem Pan, determinado a explorar a polarização política e estimular o conflito entre as posições. O que pode derivar daí? Da próxima vez provavelmente vai aparecer alguém vestindo de uniforme da SA ou SS na bancada, que se despedirá do público ao brado de “Sieg, Heil!”

Adrilles não foi fuzilado, mas foi demitido. Monark também. Kim se retratou, como raramente o faz, apesar de useiro e vezeiro nesse tipo de desafio e combate. Isso, contudo, nada muda. Afinal, são só peões no projeto de incendiar a discussão política brasileira. Será muito fácil encontrar outros, de todos os lados do espectro político, pois a oferta de radicais e provocadores no mercado da opinião política no Brasil é abundante. O que falta aqui são pessoas dispostas a argumentar, dar razões das premissas que adota, e dar opiniões baseadas em estudo e em evidências.

A própria Tabata Amaral, a única voz argumentativa dentre os personagens do turbilhão da semana, foi extremamente criticada pela esquerda. Para uns, ela deveria ter-se recusado a conversar com nazistas, para outros deveria ter dado voz de prisão aos presentes. Em ambas as queixas, a demanda explícita é de que não argumentasse, não oferecesse razões de forma pública e explicações das premissas que adota. As pessoas não querem argumentos, querem atitude, tomada de posição, repúdio e justiçamento. O método predileto do participante da esfera política hoje, para resolver diferenças de opinião, envolve basicamente isso: chamar a polícia ou acionar a autoridade, levantar-se e ir embora ou insultar o adversário, sobretudo quando ele ultrapassar a linha da nossa tolerância moral.

Cancelar é preciso, argumentar não é preciso.

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02
Dez21

Trilogia em quadrinhos une ficção científica, terror e diversão para levar mensagem de resistência e ativismo negro

Talis Andrade

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Geuvar Oliveira o entrevistado do Clube da Esquerda neste dia 5 domingo 

 

por Jornal Opção

Rei, alegre, criativo, volátil… As reticências são a melhor expressão da variedade de significados do nome de origem africana MugambiIntensa e versátil também é a obra de história em quadrinhos (HQs), totalmente tocantinense, que leva o mesmo nome e que agora chega ao seu final. A trilogia, caracterizada como de ficção científica e terror, teve seus dois primeiros volumes lançados em 2010 e 2016, e o terceiro em setembro último.

De autoria do quadrinista Geuvar Oliveira, o terceiro capítulo de Mugambi conta a trajetória de um jovem, que veio do futuro para realizar a missão de evitar que um vírus mortal dizime a humanidade.

Em 96 páginas, com o tom regionalista característico dos quadrinhos de Geuvar, a história se passa em três tempos: passado, presente e futuro na Amazônia, tendo como locais de referência Palmas e a Ilha do Bananal.

O protagonista é ilustrado por um personagem negro, maioria no povo brasileiro, diferentemente, porém, dos heróis das histórias nacionais em quadrinhos.

A proposta de Geuvar, com Mugambi, é uma mensagem de empoderamento e ativismo.

Trazemos o negro para o centro das discussões e junto todos os problemas que devem ser discutidos à exaustão, para que haja melhora nas relações internas do país”, declara o artista.Site de quadrinhos

A HQ poderá ser adquirida diretamente pela rede social @gcomicsEditora (Instagram) ou nas lojas especializadas em Palmas. Além disso, 15% dos exemplares da HQ serão destinados para bibliotecas públicas, com o objetivo de fomentar a literatura e cultura na juventude.

Projeto

A organização das publicações dos quadrinhos de Geuvar Oliveira é de responsabilidade da produtora cultural Antônia Iédes Mendes da Silva, também proponente do projeto. E patrocínio do Prêmio Emergência Cultural, via Lei Aldir Blanc, do Governo do Estado do Tocantins, com apoio do Governo Federal – Ministério do Turismo – Secretaria Especial da Cultura, Fundo Nacional de Cultura.

O primeiro volume foi lançado no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte (MG), em 2015. Já o segundo volume, com recurso do edital Promic, em 2016.

O autor

Geuvar Oliveira, natural do Maranhão, mora no Tocantins desde 1997. É graduado em Letras pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), e em Teatro pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Sua primeira história em quadrinhos, publicada no ano em que chegou ao mais novo Estado do Brasil, a revista Gira, foi baseada na quantidade de girassóis que havia em Palmas. Também é conhecido pela criação das aventuras da Liga do Cerrado, formada pelos super-heróis Homem Suvaco, Maria Paulada, Jeitosa, Homem Pochete, Homem Pichilinga, Senhor Gambiarra e Caryocal.  Geuvar é autor da HQ Viagem ao Centro da Gramática.

Entrevista neste dia 5

A cena política do Brasil dos nossos dias pode parecer confusa, complexa e até esquizofrênica. Movimentos e articulações que não guardam qualquer aspecto de coerência e tanto as personagens como os atores são para lá de controvertidos. A propósito, não é um disparate visualizar todos os acontecimentos como atos de uma peça teatral, de muito mau gosto, diga-se. Melhor, teatro de fantoches.

O convidado do #ClubeDaEsquerda é o cartunista, ilustrador e autor de HQ Geuvar Oliveira, que carrega um traço bem característico em suas charges e não dá desconto na objetividade de seus desenhos: ilustra as jogadas que estariam por detrás, nos bastidores, com riqueza de detalhes e vasta paleta de cores.

 

08
Dez20

Assassinato de Marielle Franco completa 1.000 dias sem solução enquanto suas herdeiras políticas entram na mira

Talis Andrade

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Mulheres que assumiram a luta da vereadora negra e ativista assassinada no Rio sofrem graves ameaças. “Tenho que ser escoltada até a padaria”, diz a deputada federal Talíria Petrone, que teve de deixar o Estado

por Naiara Galarraga Gortázar /El País/Combate Racismo Ambiental

Quando Marielle Franco foi assassinada, há mil dias nesta terça-feira, poucos brasileiros fora do Rio de Janeiro conheciam essa vereadora negra, forjada no ativismo social, de favela, bissexual e mãe. O crime fez dela um símbolo da esquerda brasileira e uma inspiração para outras mulheres de origem semelhante que entraram na política. Seu desembarque no Congresso, Assembleias e Câmaras Municipais rompeu tabus e revirou águas enlameadas. Muitas delas são sistematicamente ameaçadas nas redes, mas alguns casos são mais graves, como o da deputada federal Talíria Petrone, de 35 anos. “Tenho que ser escoltada até a padaria”, disse ela nesta segunda-feira ao telefone de seu refúgio secreto.

Esta política e amiga de Marielle teve que deixar seu Estado, o Rio de Janeiro, e vive protegida pela polícia da Câmara dos Deputados. “Desde que comecei minha vida parlamentar convivo com ameaças.” Uma denúncia de que havia um plano para executá-la a forçou a fazer sua segunda mudança, por segurança. Dessa vez, teve que se mudar para outro Estado. “É um grave ataque à democracia”, enfatiza a deputada. Petrone, que se tornou mãe há seis meses, teve que pedir proteção ao Congresso porque no Rio só lhe ofereciam escolta em eventos oficiais. Dos Estados Unidos, 22 congressistas do Partido Democrata criticaram em uma carta o Governo Bolsonaro “por sua incapacidade ou pouca disposição de garantir a segurança dos legisladores eleitos”.

Embora dois ex-policiais militares suspeitos de perpetrar o assassinato de Marielle estejam na prisão, eles ainda não foram julgados e o caso continua rodeado de incógnitas. A violência política é comum no Brasil. Linchamentos misóginos em rede são abundantes, mas também há assassinatos, com frequência longe das capitais, com pouca repercussão na mídia. Só até agora neste ano 90 políticos foram mortos violentamente, segundo a contagem do professor Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio. As causas são diversas.

Na Amazônia costuma ser por conflitos de terras ou relacionados à exploração ilegal de recursos. No Rio é frequentemente obra de grupos paramilitares, de gangues de policiais que passaram para o lado do crime organizado. São as milícias, que nasceram para oferecer segurança contra os traficantes de drogas e conquistaram território velozmente. No Rio, dominam mais território do que o narcotráfico assentado nas favelas.

O diretor da Open Society para a América Latina, Pedro Abramovay, destaca em uma videoconferência as ligações desses grupos paramilitares suspeitos de matar Marielle e de ameaçar agora Petrone com o presidente Jair Bolsonaro e sua família. “O Palácio do Planalto está ocupado por pessoas com vínculos estreitos com grupos paramilitares. Há uma visão quase positiva desses grupos. Como se aquela violência fosse natural, reflexo de uma sociedade violenta, ignorando que os assassinatos políticos são mais graves para a democracia.” O homem acusado de puxar o gatilho morava no mesmo condomínio do presidente Bolsonaro. E seu filho Flávio Bolsonaro, senador, empregou duas parentes de um obscuro ex-policial que foi interrogado pelo crime contra Marielle e levou seus segredos para a sepultura.

Abramovay acrescenta que essas gangues paramilitares perseguiam um segundo objetivo ao matar Marielle. Enviaram uma mensagem a qualquer pessoa que se sentisse tentada a seguir seus passos. A hostilidade, que surge de diversas frentes, se multiplicou à medida que mulheres negras ou de minorias, como as trans, ganharam eleições e visibilidade em muitos cantos do país. São aumentos tímidos porque as vereadoras detêm apenas 16% das cadeiras municipais.

Abramovay enquadra as ameaças às mulheres na discriminação racial profundamente arraigada, mais do que na polarização atual. “É o racismo estrutural que existe na política brasileira, que não aceita que essas mulheres possam estar em posições de poder. Não importa se entram pela esquerda ou pela direita.” Várias vereadoras recém-eleitas em novembro denunciaram ameaças racistas, incluindo duas estreantes de esquerda em duas das cidades mais brancas do Brasil, Curitiba e Joinville, e uma direitista em Bauru.

Petrone lembra que a violência política acompanha o Brasil desde a sua fundação, “desde o genocídio dos povos indígenas, à escravidão, ao coronelismo, à ditadura …”. Para a deputada do PSOL, “o bolsonarismo e o Governo Bolsonaro são a expressão da velha elite raivosa, temerosa do avanço do povo” em direção ao poder. Esse fenômeno é personificado, entre outros, pelas herdeiras de Marielle Franco, essas políticas que se parecem muito mais com o Brasil real do que com os órgãos de representação da soberania popular. Uma das novas vereadoras é a viúva de Marielle, a arquiteta Mônica Benicio. Ambas cresceram na Maré, uma favela carioca.

Abramovay explica que a Open Fundation se aliou às fundações Ford, Kellogg e ao instituto brasileiro Ibirapitanga para investir dez milhões de dólares (51 milhões de reais) nos próximos cinco anos na formação de mulheres negras em organizações de ativismo social.

Quem mandou matar Marielle, e por quê? É a pergunta que reverbera no Brasil desde que dois ex-policiais foram presos por matar a vereadora. Seu assassinato, em 14 de março de 2018, tinha a assinatura de profissionais. O atirador disparou de um carro em movimento contra o automóvel de Marielle quando este fazia uma curva no centro do Rio. O motorista, Anderson Gomes, morreu com ela, sua assessora de imprensa sobreviveu.

Pouca coisa relevante emergiu oficialmente das investigações desde o golpe de efeito de anunciar a prisão dos dois suspeitos no primeiro aniversário. Anielle Franco, irmã da vítima, explica por telefone que “a investigação continua. Estamos indo para o terceiro investigador-chefe. Mas, por ora, sem resultados nem novidade. Ainda tramita em segredo de Justiça, por isso, o que sabemos é o que vemos na imprensa”, acrescenta a também presidenta do Instituto Marielle Franco, criado para perpetuar o seu legado político.

14
Nov20

"Pureza" leva a escravidão contemporânea do Brasil às telas

Talis Andrade

Cena do filme Pureza

Filme "Pureza" já recebeu diversos prêmios

 

Mais de 130 anos após abolição, exploração criminosa de mão de obra perdura no país, do garimpo às casas de família. Baseado em fatos reais, filme de Renato Barbieri visa sensibilizar para o drama da moderna escravidão

 

por Ines Eisele /DW

Início dos anos 90, numa cidadezinha do Maranhão: buscando uma vida melhor, Abel, de origem humilde, parte para os garimpos da Amazônia. Por meses a fio, sua mãe, Pureza, fica esperando um sinal de vida: em vão.

Por fim, decide seguir a trilha do filho, emprega-se como cozinheira numa enorme fazenda, acreditando que ele se encontre lá. O que ela presencia é um mundo de sujeição e trabalho escravo desumano, com que nunca sonhara. E a mãe desesperada se transforma em ativista.

Essa revoltante história, que Renato Barbieri conta em pouco mais de uma hora e meia em Pureza, se baseia em fatos reais. Ao declarar o fim da escravatura, em 1888, o Brasil "foi o último país a fazer a abolição, e foi uma abolição muito malfeita, incompleta", lembra o cineasta brasileiro de 62 anos. Assim, "no dia seguinte da abolição começou a escravidão contemporânea, que segue até os dias de hoje".

Em 2018, a organização pelos direitos humanos Walk Free Foundation calculava existirem no Brasil 369 mil cidadãos vivendo em condições de escravidão. No ano seguinte, só em inspeções pelo Ministério do Trabalho, mais de mil indivíduos foram libertados. A manchete mais recente sobre o assunto acaba de chegar: no início de novembro, 39 trabalhadores alojados em cabanas abertas foram resgatados de um garimpo ilegal no Pará.

É também graças a gente como a verdadeira Pureza Lopes Loyola que hoje em dia pelo menos há controles estatais, frisa Barbieri. "As denúncias dela e de outras testemunhas foram o combustível necessário para criar essas políticas, essas leis [contra o trabalho escravo]. Deu muita força para a ação abolicionista."

A feia cara da escravidão contemporânea

É fato que, desde a abolição da escravatura, não existe relação legalmente reconhecida de posse de um ser humano (branco) sobre um outro (negro). No entanto, dependências econômicas vieram tomar o lugar das correntes.

De acordo com a Walk Free Foundation, uma característica definidora da escravidão contemporânea é alguém "estar incapacitado de evitar ou abandonar situações de exploração, devido a ameaças, violência, coerção, engano ou abuso de poder". No Brasil, escravidão é definida no nível jurídico por componentes como mão de obra forçada, trabalho para pagamento de dívidas, condições humilhantes ou jornadas abusivas.

No país latino-americano de maior população e extensão, tais condições existem sobretudo na agricultura, segundo a historiadora Julia Harnoncourt, que em 2018 publicou em livro os resultados de suas pesquisas.

"Nessa época havia o maior número de casos conhecidos de trabalho escravo nas fazendas de gado, mais precisamente na preparação dos pastos, o que muitas vezes nada mais é do que o desmatamento de florestas tropicais. O cultivo da soja e da cana-de-açúcar igualmente contribuem, anteriormente também a indústria metalúrgica."

Embora em números significativamente menores, nas cidades também há relações trabalhistas não livres, por exemplo na construção civil ou na indústria têxtil. Essa forma de mão de obra escravizada afeta mais frequentemente os imigrantes.

Círculo vicioso da pobreza

"No total, a maior parte dos atingidos são homens", explica Harnoncourt, atualmente fazendo o pós-doutorado na Universidade de Luxemburgo. "Existe, sim, uma área em que atuam principalmente mulheres, mas ela é de muito difícil acesso: os trabalhos domésticos. Escuta-se com frequência que no Norte do Brasil meninas indígenas são atraídas para casas abastadas com a promessa de poderem ir à escola e ganhar dinheiro. E aí não escapam mais, pois não têm meios e não conhecem ninguém."

Os trabalhadores no campo são vítimas de truques semelhantes: também eles ouvem no início que podem ganhar bom dinheiro sob condições justas. Ao chegar às fazendas dos latifundiários, em geral se desiludem: de repente exige-se que paguem a posteriori os custos da viagem, ferramentas, roupa de trabalho e alojamento, a preços exorbitantes.

Como no filme de Barbieri, os empregadores até lhes confiscam os documentos, se possuem algum, dificultando ainda mais uma fuga. Mesmo se conseguem escapar, ou se são liberados após alguns meses ou anos, por falta de perspectivas muitos acabam voltando a assumir atividades semelhantes.

Em Pureza, os capatazes patrulham e humilham os trabalhadores forçados das piores maneiras possíveis, chegando à violência física e até à morte. Segundo o diretor, esses elementos não são exageros para tornar a narrativa mais dramática: tudo é baseado em depoimentos de vítimas.

Documentário Servidão

Desde o primeiro encontro de Barbieri com a verdadeira Pureza até a conclusão do filme transcorreram 12 anos. Embora em parte ditado por dificuldades de financiamento, esse tempo relativamente longo também permitiu ao cineasta se aprofundar ainda mais na temática.

"Vi que eu tinha uma pesquisa muito grande, e que Pureza ia consumir só um pedacinho dela. Nessa minha pesquisa conheci vários abolicionistas, achei eles incríveis, a indignação que eles têm com a humilhação humana, queria colocar isso num documentário."

Lançado em 2019, Servidão traça uma linha dos tempos da escravidão "de verdade" até o aqui e agora, revelando aos espectadores como "a mentalidade escravagista está entranhada na sociedade brasileira, em todos os setores", diz Barbieri.

Também Julia Harnoncourt registra essa relação, mas ressalvando que "o que vemos agora seguramente não é só um efeito da escravidão": "É preciso também se perguntar até que ponto o capitalismo global incentiva tais relações trabalhistas. Afinal, vemos também trabalho não livre em países onde antes não havia escravos, pelo menos não na mesma proporção que no Brasil."

Ativista Pureza Lopes Loyola em locação rural

Pureza Lopes Loyola, a ativista na vida real

 

Ativismo premiado

Depois de 1995, por algum tempo a política brasileira assumiu a bandeira do combate à exploração análoga à escravidão, sobretudo sob o governo Lula.

Contudo, com Michel Temer e depois com Jair Bolsonaro, houve repetidas tentativas de abrandar a lei antiescravidão e dificultar os controles estatais. A influência dos latifundiários na política brasileira sempre foi grande, porém o clima político mudou ainda mais a seu favor.

"A gente está vivendo um retrocesso", está convencido Renato Barbieri. Ao que lhe consta, "não tinha um filme de longa-metragem sobre o escravo contemporâneo rural, um documentário de longa-metragem também não": "Então esses filmes têm a função de sensibilizar principalmente a classe média brasileira para o grande drama crimininoso do trabalho escravo contemporâneo que é praticado ainda."

Pureza já participou de diversos festivais de cinema e ganhou vários prêmios, entre outros melhor fotografia e melhor atriz principal (Dira Paes) no Brazilian Film Festival of New York. Em meados de novembro, a Academia Brasileira de Cinema deve decidir se o filme representará o país na competição pelo Oscar.

Também a Pureza da vida real já ganhou uma distinção importante: em 1997 foi homenageada com o Prêmio Antiescravidão da Anti-Slavery International, a mais antiga organização de direitos humanos do mundo.

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