Centro terapêutico em SP prendeu mulheres, torturou, forçou conversão evangélica e pediu apoio a Jair Bolsonaro
'No primeiro dia, já sofri violência física', contou uma ex-paciente do centro terapêutico Esdras. Ilustração: Pedro Gonçalves para o Intercept Brasil
Intercept Brasil
A série revela como centros terapêuticos lucram com a internação de usuários de drogas sem oferecer um tratamento adequado para a reabilitação. Em alguns casos, há agressão aos internos, tortura, dopagem e prática de intolerância religiosa.
Em 16 de janeiro deste ano, promotores do Ministério Público de São Paulo, acompanhado de agentes da Polícia Civil, foram até um centro terapêutico na cidade de Cajamar, a 29 quilômetros da capital. Eles haviam recebido denúncias anônimas pelo Disque 100. Lá, encontraram 75 pacientes internadas em situação degradante, com “alimentação escassa, assistência médica insuficiente, sem itens de higiene, sofrendo castigos físicos, tortura e ameaças”.
O MPSP identificou que no local funcionava uma “organização criminosa” com prática de crimes de tortura e cárcere privado – as pacientes não podiam sair, o ambiente era cercado por muros altos e vigiado por câmeras de segurança. Nessa batida policial, o espaço foi fechado, as mulheres retornaram para suas casas e os responsáveis foram presos em flagrante. Depois, em audiência de custódia, as prisões foram convertidas em preventivas.
O espaço é o Centro de Assistência Social e Apoio Especializado Esdras – uma comunidade terapêutica, fundada em dezembro de 2019 em Cajamar, que aceitava apenas pacientes do sexo feminino. As comunidades terapêuticas são reguladas pela Anvisa e não são consideradas serviços de saúde – o que limita internações compulsórias, e prescrição de medicamentos, focando sobretudo na convivência entre os pares como forma de reabilitação.
O centro Esdras se dedicava à “assistência psicossocial e à saúde de portadores de distúrbios psíquicos, deficiência mental e dependência química”, conforme consta no registro na Receita Federal. O próprio nome, em hebraico, faz referência àquilo que os donos diziam ser a missão do centro: ‘ajuda’, ‘auxílio’. A palavra Esdras, nome de um israelita, aparece citada mais de 30 vezes no Antigo Testamento.
Em contraste com a referência bíblica, a cabeleireira Jackeline Lopes, de 34 anos, diz que, ao se internar no Esdras, “começou meu inferno”. Em entrevista ao Intercept, ela enfatizou que queria contar sua história sem esconder sua identidade.”Quero que eles saibam quem fez a denúncia contra eles na imprensa. Quero que vejam que consegui sobreviver e reunir força para denunciar”, desabafou.
Jackeline Lopes se internou no Esdras no final de 2021, após sofrer uma tentativa de sequestro de um motorista de aplicativo em São Paulo. Isso resultou em uma depressão diagnosticada por sua psicóloga, que imediatamente recomendou a internação voluntária em uma comunidade terapêutica. A cabeleireira, então, fez uma busca no Google e encontrou o anúncio do Esdras.
“Não fazia ideia onde estava me metendo. Pelo anúncio, parecia um lugar bonito. Espero que um dia consiga me perdoar por ter feito aquela maldita pesquisa”.

No mesmo dia em que visitou o Esdras, em 20 de novembro, Jackeline Lopes foi internada. Sua mãe assinou um contrato por um período de seis meses, com possibilidade de renovação – o valor total foi de R$ 10 mil. Ainda havia cobrança de taxas extras, com medicamentos, itens de higiene, cigarro e alimentação, tudo previsto em contrato.
“No primeiro dia, já sofri violência física, que eles chamam de contenção. Eles fazem uma revista. Você tem que ficar nua e se agachar. Uma monitora, que também é uma das internas, te dá banho e eles jogam todas as suas roupas fora. Eles dão roupas deles, até as íntimas. Depois disso, eles me colocaram em um quarto e acabei dormindo”, relembrou.
“Quando acordei, tive um momento nervoso e comecei a gritar. Nisso, o coordenador chegou e disse: ‘Você vai para o quarto do meio’. Esse era o quarto do castigo. Ele me deu um copo com um monte de remédio misturado e disse que eu tinha que tomar. No dia seguinte, eu disse que queria ir embora. Ele disse que meu contrato era de seis meses. E ainda falou: ‘Você perdeu. Você é doida’. Tudo isso rindo. Aí eu disse: ‘Como assim, se eu pedi para vir?’ E ele disse que não tinha como sair, só quando completasse meu contrato”, completou Lopes.
O coordenador a quem a ex-interna se refere é, na verdade, o supervisor Kauê Dias Cercelo. Segundo Lopes, era ele “quem tomava conta de tudo”, incluindo a distribuição e dosagem dos medicamentos, a vigilância das internas, além de fazer as ameaças e provocar as agressões físicas e psicológicas que ela relata ter sofrido.
Cercelo também foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo, mas desde o fechamento do centro não foi localizado – outras monitoras que prestaram serviço no centro Esdras, e a também coordenadora Lidiane Kátia de Carvalho, também foram denunciadas. Dos responsáveis diretos pelo centro, duas pessoas estão presas: a psicóloga Talita Assunção de Paula Santana, umas das sócias do Esdras, e Marcos Gaudêncio Moglia – que, de acordo com o MPSP, usou o nome da esposa Márcia Maria de Aguiar para fazer parte da sociedade.
Marcos Moglia é citado, em depoimento dado por uma das pacientes à delegacia de Cajamar, como responsável por portar arma de fogo, tendo até apontado o armamento para uma das pacientes, fazendo xingamentos e ameaças. É dito também que, para intimidá-las, ele dizia ter atuado na secretaria de Segurança Pública, tendo contato com “policiais e guardas municipais”.
O Ministério Público de São Paulo é categórico em afirmar que Talita Santana e Marcos Moglia montaram uma “organização criminosa”, com o intuito de obter “vantagem econômica”, e os subalternos do centro, orientados pelos donos, atuavam de forma a manter o “terror interno”e a “lucratividade do negócio”.
