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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Jan21

As imagens históricas do Recife

Talis Andrade

dic. urariano.jpg

Dicionário Amoroso do Recife.jpg

 

por Urariano Mota

Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem.

Nesta semana, li que em São Paulo existe o projeto Fotografia Paulistana, que reúne registros históricos da cidade a partir de 1920. No momento, já dispõem de mais de 400 fotos.

Li, parei, e fiquei a me perguntar: quantas imagens históricas existiriam do Recife? E nessa pergunta, quantitativa, notei logo que seria o mesmo que penetrar numa nuvem pensando que nuvem é algodão e se pega. É impossível determinar um número de fotos históricas da “noiva da revolução”, como a chamava o poeta Carlos Pena Filho. Depois, mais sério que a quantidade, me perguntei: o que seriam mesmo as tais imagens históricas? O critério de antiguidade seria a qualidade histórica? 

Então, primeiro acordei para o fato de que a história não é um resumo do que ficou no passado. Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Isso é histórico, isso tem valor para cravar num álbum da história do Recife? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem. 

Então penso em sair da dificuldade elegendo o que vem antes, depois o recente, mas que nos remeta a uma meditação sobre as nossas vidas no Recife. E que a foto mais nova, agora tão frágil e fugaz, ganhará o seu valor se não lhe escrevemos uma legenda, uma breve moldura da sua importância social? E nesse caso, a pesquisa histórica é uma pesquisa de sensibilidade, daquilo que está além do filme mais sensível, ou da última foto saída de um celular. É uma pesquisa que vai aos lugares e pessoas mais comuns, tidas como desimportantes. Sabem aquela prática de colecionar fichinha, tampa de garrafa, ou juntar flâmulas, guia de exposição, convites de casamento, para um dia quem sabe talvez por hipótese ter alguma utilidade? É parecido, ainda que esse termine por ser um caminho meio às cegas, à beira da mania. 

Então eu penso que as fotos históricas do Recife vêm de tudo que toque o nosso coração. Do antes, depois, agora e adiante. Quero dizer, para ser mais claro, além da foto do zepelin sobre a cidade em 1930

foto

era bom agregar os versos à beira do cômico de Ascenso Ferreira: 

“– Parece uma baleia se movendo no mar!
– Parece um navio avoando nos ares!
– Credo, isso é invento do cão!
– Ó coisa bonita danada!
– Viva seu Zé Pelin!
– Vivôôô!
Deutschland über alles!
Chopp!
Chopp!
Chopp!
– Atracou!”  

Ou da Ponte Duarte Coelho em 1950

foto1

E mais Gregório Bezerra ferido, preso e altivo no quartel do exército em 1964 

foto 3

Ou a volta de Miguel Arraes no grande comício com a anistia em 1979 

foto 4

Afeto e memória do frevo histórico

foto 5

Até chegar mais perto da cidadania com o cinema Império em Água Fria, nos anos 50, 1958 

foto 6

Mas quero e devo dizer, sem interrupção: as fotos, por mais sentimentais, amadas e queridas, não revelam o raio X da alma. Elas são momentos objetivos, físicos de um instante, ainda que nelas a pessoa faça uma pose. Quero dizer, elas não trazem gravadas, impressas o coração do fotografado ou de quem vê a fotografia. Nas fotos chamadas por convenção de históricas, pela distância do tempo o seu valor é político ou documental. Mas nós, como ficamos? Onde estamos perdidos nesse mar de datas e rostos antigos? Em que lugar da foto está o momento de carinho ou tremor da nossa voz? 

Então o que é objetivo vira subjetivo, como na foto do cinema Império em Água Fria. Nela vejo a imagem de costas da minha mãe, falecida naquele ano de 1958. E para cada um de nós a foto objetiva recebe uma certa subjetividade, uma tradução da sua imagem. No zepelim no alto, podemos ser um dos meninos parados, em pleno encanto do objeto pesado cruzando o céu. E nos perguntamos, “por que não lembro desse dia do zepelim?” , e para nosso espanto somos informados de que a sua aparição no Recife foi antes do nosso nascimento. Já na fotografia da Ponte Duarte Coelho retomamos o Recife da infância, quando em pé no banco do ônibus víamos o rio Capibaribe. Hoje aberto, ao sol da manhã, ele é um rio que nos dá bom dia. Da ponte Duarte Coelho à Princesa Isabel, e desta a se estender até a ponte do Limoeiro, há uma vista de esperança. 

Já na imagem do frevo da mulher, é tudo revelação da primeira vez do desejo na multidão. É mais que uma foto, é um flagrante da carne sob o frevo. Então vem a foto de Gregório Bezerra, os anos de terror da ditadura, um Recife rebelde no momento do golpe militar. Ele, na imagem, é o comunista que gostaríamos de ser, se a felicidade e a sorte fossem nossas companheiras. E na volta de Arraes, no comício do bairro de Santo Amaro, eu estou na multidão, como um dos rostos contentes que no anonimato é protagonista. Todos ali somos protonotários, diria Manuel Bandeira. Mas assim é para todos? Não e sim. Não, porque as histórias pessoais e sentimentos não são idênticos - podemos até dizer, ninguém atravessa o mesmo rio Capibaribe. Sim, porque todos refletimos o que vemos, como indivíduos que somos da humanidade. Cada um na sua tradução faz o subjetivo da objetividade.

Então eu penso que as fotos históricas ideais deveriam ser um grande álbum onde as legendas fossem os comentários dos moradores da cidade. Elas se tornariam então fotos traduzidas em palavras para o sentimento. E não só, as falas das pessoas seriam informação histórica que daria movimento e corpo à imagem. As fotos históricas seriam mais que um cinema falado. Uma democracia plena do coração de toda a gente. Nesse grande álbum caberia a foto de um princesinha do carnaval 

com este comentário de um recifense:

princesa menina.jpg

“Uma negra princesinha ficou na memória porque não era uma imagem. É uma pessoa. Uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha na memória era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer”. 

Entre as fotos históricas, enfim, caberia com louvor esta de José Marques de Santana, em 27 de janeiro de 2021. Aos 86 anos de idade, ele assim  expressou a emoção por receber a vacina: 

foto 8

Das mais antigas à mais recente, imagens para as fotos históricas do Recife. 

 

22
Jun20

Urariano Mota: Felicíssimo Oratório das Águas

Talis Andrade

gustavo.jpg

 

 

A maioria das pessoas o vê apenas como um editor, mas Gustavo Felicíssimo vive e procura viver no mundo material da poesia

 

30
Mai18

ASCENSO E MANO TEODÓSIO NO PARAÍSO

Talis Andrade

ascendo.jpg

 

1

Em uma pequena casa uma rua humilde

o corpo de Ascenso

sobrava na cama de solteiro

armada na sala de estar

para esconder das visitas

a pobreza

do quarto de dormir

 

O corpo de Ascenso

a morte veio buscar

A morte veio devagar

triturando-lhe o coração

O coração de poeta

parte fraca

covardia machucar

 

O coração de poeta

desmanchado coração

derretido coração

pelas morenas de cabelos de trança

trançados amores os corpos trementes

enroscados no verde dos canaviais

gemendo lamentos de almas penadas

desencarnadas almas

dos quilombos destruídos

a ferro e fogo e berro

por Bernardo Vieira de Melo

 

2

Mano lembrava Ascenso

o corpo gigante desajeitado

esbarrando nas mesas

e amigos

Mano lembrava Ascenso

no sorriso de menino

no abraço apertado

e imenso

 

De Mano e Ascenso a luta

em diferentes fronts e

confrontos

 

Ascenso imaginárias escaramuças

cantadas nos folhetos populares

duelos de repentistas

brigas de feira e amor

emboscada de macacos

fuga de cangaceiros

enganadora busca

do Tempo de Antes

quando o trem corria

danado pra Catende

 

Mano o sofrimento

por compreender

querer levar aos escravos

a esperança

pelos campos de catequese dos camponeses

aos estudantes o ensinamento

da guerrilha de Che

nos aparelhos clandestinos

 

3

No fígado devorado pelas águias de asas azuladas

os adivinhos buscavam decifrar números nomes

revelados pelos presos no terror

no delírio dos corpos dilacerados

 

Estava Mano deitado no áspero chão

as mãos os pés amarrados

o jovem corpo nu

bonito de ver

apesar dos hematomas

 

apareceu a potestade maior

gritando

para os subordinados

eram uns frouxos

deixassem ele sozinho

que tirava o serviço

 

Expulsos os comparsas

fechou a porta da câmara escura

a pesada porta de bronze

que tudo veda e esconde

 

Serpenteando no chão frio cinzento 

a potestade foi se aproximando

silenciosamente se aproximando

se achegando

e chegando mansamente

abocanhou o pênis de Mano

e mamou

mamou

e babou

como um frágil

inocente

bezerrinho

 

4

Mano conseguia fugir para os mais distantes recantos

correndo solto pelas ruas pelos campos

Vinham ao seu encontro os vultos de mulheres

que amou pelos verdes canaviais verdes gramados

brancas dunas macios leitos leitosas luas

Mano se transportava enlevado pelas estrelas

fachos que iluminam a noite e os bares de Olinda

 

Estava Mano deitado

os olhos vendados

as mãos os pés amarrados

os pensamentos na lonjura

na tontura

os músculos se retesaram

com o frio toque

o bote profissional

da cobra verde

 

Os músculos se retesaram

como acontecia na sessão de choques

os fios elétricos riscando com fogo a pele

Pela vez primeira Mano sentiu medo

O medo de ser castrado escureceu os olhos

 

Secos poços os olhos

As mãos

em carne viva

cavassem na rocha

os poços das lágrimas

As mãos reconquistassem a força

para quebrar as correntes

da verde cana caiana

 

Nas vascas da morte

o corpo desvencilhar-se da rede

dos reacionários

A rede de invisíveis e visíveis malhas

A rede dos terciários

que imobiliza os corpos

e enreda as almas

 

Deitado em leito de plumas

deitado em areias prateadas

despojado no cimento esponjoso

desmaiado no chão molhado

Mano ia e voltava do paraíso

Mano desfalecia e acordava

para beber uma cerveja

no inferno 

 

5

Chegado o novo tempo

pactuado na anistia

gradual geral irrestrita

Mano sentiu-se deslocado isolado

no arraial da fama camaleônica

dos antigos camaradas

a dividir o poder

com os inimigos

 

No mudado tempo

Mano nada pediu

Não pousou de herói

não virou mito

não encenou o papel

de sobrevivente

Quis simplesmente o tento de ser

o Mano de sempre

 

6

Mano fazia política

por amor

um grande amor

à marginalizada gente

que ele liderava

nas barricadas e comícios

 

Mano fazia política

como Ascenso fazia poesia

      por desvairada paixão

       mal de raiz

 

Mano se misturava com o povo

com ternura de flor

pureza de irmão

A inocência de quem tem

dos poetas e dos santos

a pobreza o coração

 

 

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