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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Mar23

Autonomia do Direito: um antídoto contra a barbárie

Talis Andrade
 
 
 
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por Jefferson de Carvalho Gomes /ConJur

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Recentemente o professor Lenio Streck nos brindou com duas importantes reflexões[2] sobre a tentativa do uso de uma roupagem jurídica para que se tente justificar todo e qualquer anseio autoritário que atente contra a democracia.

O cerne das importantes reflexões do professor caminham justamente no sentido de que todo ataque à ordem democrática, de natureza autoritária e totalitária, precede de uma pretensa maquiagem jurídica, com fins de legitimação do ilegitimável. Eis aí o motivo que tem feito com que o tema sobre o lawfare tenha crescido tanto nos últimos anos, pois é justamente a partir do sequestro semântico de conceitos jurídicos, que se tenta a todo o tempo aniquilar um pretenso inimigo — ou até mesmo o Direito — em nome de um pseudo "bem maior".

Em outro momento, neste mesmo espaço da Diário de Classe[3], tentei refletir um pouco sobre este fenômeno do lawfare. Ali, busquei tratar um pouco sobre o que seria isto — o lawfare e optei por filiar-me à concepção Streckiana acerca do conceito de lawfare[4], como "a construção fraudulenta do raciocínio jurídico para fins politicamente orientados".

A premissa de Streck sobre o lawfare é deveras importante para justamente compreender suas novas reflexões, trazidas no início deste texto. O mundo assistiu atônito aos lamentáveis episódios de depredação e tentativa de golpe de Estado, ocorridos em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. A turba ensandecida entre tantos arroubos retóricos se julgava no Direito de se apossar dos espaços destinados ao Executivo, Legislativo e Judiciário, pois partiam de uma rasa concepção de que "Supremo é o povo", para usar uma entre tantas outras tentativas retóricas de justificar o injustificável.

Esta própria premissa, já parte de um grave equívoco interpretativo do parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição da República. Mas será mesmo que este equívoco se dá pelo simples fato de toda uma coletividade ler e interpretar errado ou porque estas ideias vão sendo trabalhadas e postas ponto a ponto na cabeça da coletividade, até o ponto então que uma turba se sinta legitimada a atentar contra a democracia, afinal estariam eles amparados "juridicamente"?

Pois bem, como disse dois parágrafos acima, a primeira máxima dita amiúde pelo povo desordeiro seria a de que supremo é povo, tal concepção parte da máxima constitucional de que todo poder emana do povo, eis então o suposto ponto de legitimação que transforma o desejo reprimido em manifestação de histeria. E esta histeria somente existe, porque antes, como bem lembrou o professor Streck, ao colocar o dedo na ferida, existiu alguém, com uma representação simbólica — de jurista, por exemplo — que em algum momento disse que os absurdos praticados no dia 8 de janeiro seriam legítimos.

Outro exemplo deste sequestro semântico dos significados constitucionais é o rotineiro pedido de intervenção das Forças Armadas nos poderes legalmente constituídos, sob o falso e errôneo argumento de que o artigo 142, da Constituição autorizaria tal barbárie. Ora, a primeira parte do texto do artigo 142, já seria suficiente para rechaçar qualquer tese ou teoria golpista, mas ainda assim tenha quem diga que a Constituição atribuiu um pretenso poder moderador às Forças Armadas, quando em verdade o objetivo central desta mesma Constituição é que jamais tenhamos qualquer possibilidade de viver sob um governo militar e/ou de exceção, como experimentado de 1964 até 1984.

Esta explanação é para que possamos falar do que é mais importante e caro a nós neste momento: a preservação da autonomia do Direito, enquanto instrumento de salvaguarda da ordem democrática. Gilberto Morbach[5] explica assim a autonomia do Direito a partir da CHD, de Lenio Streck

O que significa defender a autonomia do fenômeno jurídico? Hermeneuticamente, também aqui é interessante explicar a partir de nosso tempo.Vivemos em época de profundos desacordos morais. Se há poucos consensos em sociedade, paradoxalmente, um deles é precisamente o fato de que discordamos entre nós mesmos. Somos muitos, são muitos nossos desacordos e a tendência é que isso acabe por se acirrar cada vez mais, e sociedades cada vez mais divididas e fragmentadas. Daí a importância da autonomia do direito. Daí a relação direta entre direito, império da lei e democracia. Em tempos de desacordos profundos, qualquer alternativa que não prescinda dos ideais democráticos passa, necessariamente, pela ideia de que esses desacordos não podem ser resolvidos arbitrariamente. A coordenação social precisa respeitar princípios regulatórios. Como já dizia Ortega y Gasset, onde não há um acatamento de certas posições últimas, o resultado é a barbárie. Sem uma instância que os regule, nossos desacordos tornam nossa condição análoga àquela de que falava Matthew Arnold em Dover Beach: a de ignorant armies, clashing by night on a darkling plain [exércitos ignorantes a lutar em uma planície escura].

Neste sentido, Lenio Streck[6] afirma que:

a autonomia deve ser entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis (portanto, a autonomia do direito não emerge apenas na sua perspectiva jurisprudencial, como acentua, v.g., Castanheira Neves — há algo que se coloca como condição de possibilidade ante essa perspectiva jurisprudencial: a Constituição entendida no seu todo principiológico), apontando para a Constituição como fio condutor dessa intermediação, cuja interpretação deve ser controlada hermeneuticamente, evitando-se que o sentido a ser atribuído ao seu texto e ao conjunto normativo infraconstitucional vá além ou fique aquém desse fundamento normativo.

É justamente a partir desta concepção de autonomia do Direito, que busca-se defender que jamais qualquer pessoa que tenha passado por uma faculdade de Direito, não importa qual seja a sua predileção político-ideológica seja capaz de afirmar que em algum momento o Direito é capaz de autorizar as barbáries que o país vivenciou no último dia 8 de janeiro, pois entre tantas funções nobres que a autonomia do Direito possui, talvez a mais importante seja colocar freio em nossos instintos mais selvagens e primitivos.

É dizer: existe um limite! Ou até mesmo como aprendemos quando assistimos as aulas, lemos e escutamos o professor Streck: o Direito está para corrigir a moral e não a moral que está para corrigir o Direito. Ou seja, pouco importa o que o pensa o jurista A, B ou C, o importante é o que o Direito diz ou veda sobre determinados temas, e diante de toda a história institucional e constitucional brasileira, não é difícil imaginar que não há em nenhuma letra sequer de nossa Constituição, que autorize qualquer atentado à democracia!

E mais, legitimar qualquer atentado à ordem democrática implica em grave desonra a todos que um dia juraram cumprir e obedecer a Constituição — ou será que a máxima de que quem jura mente está valendo!? Por vezes somos postos em cenários ao qual não concordamos. É normal que de quatro em quatro anos passemos por um momento de (re)avaliar os rumos do país e escolhermos entre o novo — ainda que já não seja tão novo assim — ou a manutenção de um projeto político, e aí é que está a magia do poder democrático que só se constitui com a autonomia do Direito: a certeza de que não importa qual seja o resultado, daqui a quatro anos teremos novas eleições e por conseguinte uma nova oportunidade de escolher nossos representantes.

Portanto, que se pare de ouvir a voz das ruas e passe a se ouvir a voz da Constituição, pois se um dia a voz das ruas vencessem, elas mesmo seriam caladas pela sua vitória, pois com a ruptura que pregam, já não haveria mais Constituição para defender o direito de ninguém e aí com quem reclamar? Por isso, que em tempos de carnaval, o samba pode nos levar a refletir sobre algo, pois é certo que “meninos mimados não podem reger a nação[7].

E o samba aqui é útil, justamente para dar a interdisciplinaridade que nos é cara ao Direito, como o diálogo com a arte e sobretudo com a literatura, como bem alerta a professora Luísa Giuliani Bernsts[8]

O argumento apresentado pelo professor Lenio de que "todo o golpista sempre terá um jurista para chamar de seu", parte de uma provocação literária e se constrói fitando a nossa história recente (os golpes de 64 e contra o governo de Dilma Rousseff), em que os limites interpretativos foram violados em nome de interesses políticos autoritários e/ou antiemancipatórios. Esse tipo de interpretação (inautêntica) é o que torna ilegalidades legais no Brasil. Mas, como bem explora o artigo em comento, ainda que diante de tamanhos "esforços hermenêuticos", golpes de Estado não precisam ser expressamente proibidos para serem incompatíveis com os princípios constitucionais e, portanto, com o Estado Democrático de Direito. Mesmo que alguns tentem garantir — para usar a provocação do professor Lenio — que determinada forma de quebrar ovos seja a única correta, ela só se sustentaria como tal a partir do peso das justificações invocadas na construção de seu sentido e não pelo cumprimento formal de um rito. Esse sentido é (ou deveria ser) edificado da mesma forma que as histórias são fabricadas.

Como escrevi linhas acima: por mais que eventualmente não gostemos de alguma decisão do Judiciário ou até mesmo do resultado de uma ou outra eleição, que bom que ainda temos o Direito para conter os instintos primitivos.

O Direito tem salvado a democracia nos últimos anos, e torço para que continue salvando. Tentaram por à prova o Direito, no dia 8 de janeiro, mas que bom que ele ainda resistiu, e nos salvou mais uma vez. E cabe a nós, que juramos cumprir e obedecer a Constituição, continuar colocando o sino no pescoço do gato, antes que seja tarde e o canto da sereia trague o que temos de melhor: a democracia!

 
 
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Bibliografia:

BERNSTS, Luísa Giuliani. Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/diario-classe-fabricando-nossa-melhor-historia-narrativa-literaria-direito

CARVALHO GOMES, Jefferson. Lawfare: Quando a lei (ou seu uso estratégico) aniquila o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-21/diario-classe-lawfare-quando-lei-ou-uso-estrategico-aniquila-direito;

CRIOLO. Menino Mimado. Disponível em: https://www.letras.mus.br/criolo/menino-mimado/;

MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck

STRECK, LENIO LUIZ. No Brasil, todo golpista tem um jurista pra chamar de seu. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista-tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml

_____________________. Jurista de estimação. Folha de S.Paulo. Caderno Ilustrada Ilustríssima. C8. Publicado em 12/02/2023.

_____________________. Enciclopédia do golpe - Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119.

_____________________. Autonomia do direito e decisão judicial. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/autonomia-direito-decisao-judicial/

[2] Cf. No Brasil, todo golpista tem um jurista pra chamar de seu. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista-tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml. Cf. Jurista de estimação. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada Ilustríssima. C8. Publicado em 12/02/2023.

[3] CARVALHO GOMES, Jefferson. Lawfare: Quando a lei (ou seu uso estratégico) aniquila o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-21/diario-classe-lawfare-quando-lei-ou-uso-estrategico-aniquila-direito

[4] STRECK, Lenio Luiz. Enciclopédia do golpe - Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119.

[5] MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck

[6] STRECK, Lenio Luiz. Autonomia do direito e decisão judicial. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/autonomia-direito-decisao-judicial/

[7] CRIOLO. Menino Mimado. Disponível em: https://www.letras.mus.br/criolo/menino-mimado/

[8] BERNSTS, Luísa Giuliani. Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/diario-classe-fabricando-nossa-melhor-historia-narrativa-literaria-direito

 
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21
Mar23

Uma carta para militares golpistas

Talis Andrade
Adelphi: Voando por justiça e liberdade por [Pedro Luiz Moreira Lima, Elisa Colepicolo]
 
 

por Cristina Serra

A imprensa tem noticiado movimentações de parlamentares petistas para modificar o tão propalado artigo 142 da Constituição, sobre as Forças Armadas. O objetivo seria deixar mais claro que os fardados não têm papel “moderador” sobre o poder civil.

Tal sandice de papel “moderador” só existe em delírios golpistas. Ademais, o governo não tem base sólida para aprovar emenda sobre o tema e gastaria muito capital político em negociação com um Congresso marcadamente de direita e fisiológico. A chance de piorar o artigo é maior do que a de melhorá-lo.

Mais eficaz seria investir na formação militar, que precisa ser refundada no apreço à legalidade e à democracia e na subordinação ao poder civil. Sobre isso, trago à reflexão a história do brigadeiro Rui Moreira Lima (1919-2013), contada no belíssimo livro “Adelphi!”, de seu filho, Pedro Luiz Moreira Lima, e de Elisa Colepicolo (Topbooks).

Na Segunda Guerra, jovem piloto de aviação de caça, Rui combateu os fascistas, na Itália, tendo cumprido 94 missões aéreas. Também sua atuação contra golpistas aqui no Brasil, em diferentes momentos da nossa história, o eleva ao panteão dos grandes heróis.

Rui foi muito influenciado pelo pai, Bento, juiz em Caxias, no Maranhão. Quando entrou na escola militar, em 1939, recebeu uma carta do pai, que foi seu norte por toda a vida. Eis um trecho: “O povo desarmado merece o respeito das forças armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos. Nos momentos de loucura coletiva deves ser prudente, não atentando contra a vida dos teus concidadãos. O soldado não pode ser covarde e nem fanfarrão. (…) O soldado não conspira contra as instituições pelas quais jurou fidelidade. Se o fizer, trai os seus companheiros e pode desgraçar a nação.”

A carta de Bento Moreira Lima e a biografia do brigadeiro Rui deveriam ser estudadas nas academias militares. Já seria um bom começo.

14
Fev23

A tutela militar e seus limites

Talis Andrade

 

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Os nexos, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e relações com as classes populares em democracias liberais restritas

 

por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida /A Terra É Redonda 

Dois aspectos adquirem enorme importância na atual crise política brasileira: uma forte expansão do neofascismo que até deixa saudades de quando, uns cinco anos atrás, discutimos sobre a existência de uma onda conservadora no Brasil;  o debate sobre a tutela militar quase cai na boca do povo.

Inevitável não é, mas, pelo que temos visto e vivido, é bastante provável que, especialmente no caso de uma intensificação das contradições internas à formação social brasileira e um aprofundamento da crise econômica mundial em um jogo geoestratégico complicadíssimo, este país constitua um cenário bastante favorável ao crescente entrelaçamento – e mesmo à fusão – da forte presença política dos militares com o avanço do neofascismo.

Este artigo, longe de abordar a questão em toda a sua complexidade, o que implicaria levar em conta, por exemplo, dimensões corporativas específicas das Forças Armadas, centra o foco, de modo ainda bastante genérico, nas relações, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e as classes populares em democracias liberais restritas.

 

Passado e presente da tutela militar

 

Segundo diversos estudiosos, a tutela militar se constituiu com a formação do Estado independente a partir de 1822-24 e jamais se foi. Até porque, apesar do debate, não temos um conceito suficientemente claro de tutela militar, deixo, neste momento, de discuti-la no interior de formações sociais pré-capitalistas e apenas registro uma dúvida teórica que, no Brasil atual, tem imediatas implicações políticas: a distinção qualitativa entre o Estado escravista moderno e o Estado burguês não deveria ser mais considerada ao falarmos de uma bicentenária tutela militar?

Creio que, se traçarmos esta linha de continuidade muito direta, corremos o risco de legitimar posições que, de um modo ou de outro, justificam a proeminência militar na política contemporânea com a referência a um passado mítico de um povo apático, inclusive em razão de determinações raciais, e, portanto, incapaz de se conduzir. Centro o foco no período marcado pela presença de um Estado nacional brasileiro cuja existência coincidiu com a da forma de governo republicana ao longo de 121 anos de História.

Mesmo assim, assinalo um problema: a questão da tutela militar no Brasil se escancara a céu aberto quando se trata de democracias liberais de massas, pois, em se tratando de ditaduras militares, corre-se o sério risco (não a inevitabilidade) de ficar a meio caminho do truísmo e da redundância. O que, ironicamente, não impede que, nas constituições ditatoriais brasileiras, artigos mais diretamente relacionados com o papel das Forças Armadas lhes atribuem um papel mais subalterno ao Executivo. Já as Cartas Magnas das duas democracias liberais de massas neste país, 1945-1964 e desde 1989, trazem o registro da tutela militar: artigos no.177 e 142 das Constituições de 1946 e 1988, respectivamente.

Estranho país no qual a simples aceitação da democracia é acompanhada do aviso constitucional de que as Forças Armadas estão de olho e prontas para agir. Neste texto, centro o foco em alguns aspectos das relações entre o ramo militar da burocracia do Estado brasileiro e a Presidência frente às lutas das classes populares.

 

Transição de capitalismo e lutas político-ideológicas

 

No período 1945-1964, militares atuavam em todas as frentes de disputa a respeito da política de Estado. O principal eixo da discórdia girava em torno da implementação de políticas necessárias ao desenvolvimento nacional brasileiro, o que, de tão genérico, beirava o consensual. Em termos objetivos, estava em disputa a continuidade da política de desenvolvimento capitalista industrial (dependente) implementada durante a Era Vargas (1930-45). Em torno desta é que se manifestavam interesses e variantes ideológicas contraditórios no interior da classe dominante, entre camadas da classe média e segmentos do aparelho estatal em um período marcado, do início ao fim, pela ascensão política das classes populares.

Comparados aos atuais 38 anos do regime atual, os 19 daquela democracia foram de prender o fôlego.

As contendas não se limitaram aos debates orais e escritos dentro e fora dos partidos políticos, no parlamento, na imprensa e, ao longo dos anos 1950, na intelectualizadíssima Revista do Clube Militar. Beiraram as vias de fato quando, na undécima hora, o general Lott liderou o famoso “golpe da legalidade” (11/11/1955) que assegurou a posse da dupla Kubitschek e Goulart, legitimamente eleita mas contestada pelos adversários civis (udenistas) e militares adeptos do candidato derrotado, general Távora.

Questionamento da vitória eleitoral, longe de invenção tucana, foi fortíssimo em relação a dois importantíssimos presidentes brasileiros: Vargas, em 1950, e Kubitschek em 1955, quando o general Lott deu o “golpe da legalidade”, sem falar no risco de confronto armado produzido pelo veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na esteira da renúncia de Jânio Quadros. Enfim, em todas as eleições presidenciais do período, houve sempre um militar (em 1945, dois) entre os candidatos mais votados.

Nestes breves 19 anos de vida, ocorreu formidável ascensão das lutas operárias e também, a partir de 1955, o ingresso promissor das ligas camponesas na luta política. E, no frigir dos ovos, esta ebulição sociopolítica desembocou na montagem de um capitalismo industrial dependente que deixou para traz o debate sobre a vocação agrária da economia brasileira. Neste processo, os conflitos no interior do ramo militar da burocracia de Estado foram decisivos. O que justifica o recurso à noção de tutela militar.

 

Lutas de trabalhadores e transição transada

 

A crise da ditadura militar foi marcada por uma extraordinária presença das lutas operárias e populares que até hoje deixam registros nos nomes de partidos, movimentos e entidades de representação corporativa de trabalhadores e segmentos da classe média, produção cultural, sem falar nas atividades que, perdidas na memória, requerem pesquisa. Houve momentos em que pessoas de classe média, ao encherem o carro de compras no supermercado, reservavam um pouco delas para doarem ao fundo de greve.

Todavia, essas lutas que encantaram boa parte do mundo não conseguiram dirigir o processo de transição. Um dos resultados da transição transada – expressão do saudoso Florestan Fernandes – é a Constituição Cidadã com este famoso artigo 142. Ela mal completou 35 dias e ocorreu forte intervenção do Exército na cidade de Volta Redonda para reprimir a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (o chamado Massacre de Volta Redonda). Cinco anos depois, a empresa foi privatizada. Tropas do Exército também atuaram contra a greve dos Petroleiros em maio de 1995 (governo FHC), com impactos importantíssimos para as lutas dos trabalhadores neste país. E, expressando a virada das relações sociais, as operações de GLO, estritamente de acordo com o famoso artigo 147, foram transmitidas de governo a governo. Ou seja, a atual democracia (restrita) brasileira nasceu com o selo da tutela militar.

 

A tutela e seus limites

 

Durante o interregno Temer, no bojo da reafirmação da hegemonia da grande finança, pari passu com as derrotas das classes populares, liquidou-se o que restava da “herança varguista” e,  em meio à crise do sistema partidário, a cena política foi inflada de agremiações reacionárias e conservadoras ligadas a setores da burguesia interna rural e urbana. E um grupo de generais passou a intervir ostensiva e simploriamente na implementação de políticas estatais, como a econômica, externa, cultural, de costumes e eleitoral.

Neste último caso, bloqueou a candidatura Lula e se envolveu diretamente na de Jair Bolsonaro. Estas políticas foram apresentadas como racionais, voltadas para a defesa da lei e da ordem e a regeneração nacional, o que implicaria profundo combate à corrupção. E, no geral, receberam apoio entusiástico do conjunto da classe dominante brasileira, amplos setores da classe média e todos os grandes meios de comunicação.

Com o mesmo apoio, então bem mais emocionado e com maior penetração nas classes populares, emergiu a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro e se configurou uma relação entre militares e política que, salvo melhor juízo, não tem precedentes na história deste país.

Estabeleceu-se um governo fascista profundamente atentatório à democracia liberal, atrelado ao financismo, voltado para a exportação de bens primários e refratário a políticas de desenvolvimento industrial e de apoio à pequena produção rural e urbana. O modo de exercício da hegemonia do capital financeiro levou à defesa objetiva, sob o nome de responsabilidade fiscal, de uma política econômica de aspectos genocidas, atentados constantes à democracia liberal, política internacional desastrada e política sanitária catastrófica, sempre com o envolvimento do referido grupo predominante no interior das Forças Armadas.

O que seria uma simples disputa eleitoral abriu a espaço para, na ausência de qualquer inimigo real ou potencial, um surto de descoordenação nos (e entre os) diversos segmentos do ramo repressivo do Estado (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal). E o centro do palco foi ocupado personagens movidos à violência cega e formulações simplistas quase sempre expressadas por meio de escasso repertório de xingamentos idiotizastes. Aguardemos as pesquisas sobre a inserção social dos que vandalizaram a Praça dos Três Poderes.

Se, mesmo nos casos clássicos, a ascensão de fascismos passou pela impregnação (e posterior comando) do aparato repressivo do Estado, a ascensão do bolsonarismo, cujo líder já foi declarado nada afeito à carreira castrense, mas é admirado pela base da tropa, sinaliza o risco de preocupante mutação da tutela militar no Brasil.

 

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
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Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

09
Jun22

General evita responder sobre golpe e defende compra de viagra e prótese peniana

Talis Andrade

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Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa, disse que o golpe militar da deposição de Jango, que criou a ditadura militar de 1964, foi um "movimento democrático"

 

Por Murillo Camarotto

O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, defendeu ontem que a aquisição de Viagra e de próteses penianas pelas Forças Armadas foi legal e visou atender demandas legítimas dos militares.

O depoimento na Comissão de Fiscalização Financeira e Seguridade da Câmara dos Deputados, provocou bate-boca entre os parlamentares sobre uma possível participação das Forças Armadas em uma ruptura institucional. Deputados de oposição questionaram o general sobre a disposição dos militares em apoiar uma tentativa golpista por parte do presidente Jair Bolsonaro, em caso de derrota na sua tentativa de reeleição.

“O resultado que for proclamado nas eleições de outubro será respeitado pelas Forças Armadas brasileiras?”, perguntou o deputado Léo de Brito (PT), causando revolta nos governistas.

“Ele está aqui para falar do Viagra", reagiu a deputada [da extrema direita] Bia Kicis (PL-DF), uma das mais ferrenhas defensoras de Bolsonaro no parlamento. “Não vão poder fazer o que pensam que vão fazer”, reforçou o delegado Éder Mauro (PL-PA), outro bolsonarista [assassino confesso]

Em outra fala, o deputado Ivan Valente (Psol-SP) fez críticas à ditadura militar e cobrou explicações de Nogueira sobre a falta de punição ao general Eduardo Pazuello, que participou de um ato político-partidário em abril de 2021, enquanto militar da ativa, o que é proibido.

O tumulto demorou a ser controlado pela mesa diretora, que após o fim das intervenções devolveu a palavra ao general. Nogueira, em um primeiro momento, se limitou a segurar um exemplar da Constituição e a ler o Artigo 142, que trata do papel das Forças Armadas na garantia dos poderes constitucionais.

“É isso que as Forças Armadas vão estar sempre em condições de fazer", resumiu ele.

Em seguida, contudo, ele chamou o golpe militar de 64 de “movimento democrático de 31 de março” e disse que o caso Pazuello “foi resolvido pelo então comandante do Exército à luz do processo legal”. À época do ocorrido, Nogueira era o comandante do Exército e, pressionado por Bolsonaro, absolveu Pazuello e decretou sigilo de 100 anos sobre o processo disciplinar interno.

Nogueira argumentou que a compra de Viagra está prevista em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para tratamento de hipertensão arterial pulmonar e esclerose sistêmica.

Sobre as próteses penianas, disse que as aquisições são feitas com base em prescrição médica, “destinando-se a suprir as demandas de uso de em pacientes acometidos de patologias cujo tratamento assim recomenda”.

Em abril deste ano, veio a público a informação de que as Forças Armadas haviam aprovado a compra de pouco mais de 35 mil comprimidos de Viagra, medicamento normalmente usado para disfunção erétil. Além das pílulas, foram adquiridas 60 unidades de próteses penianas.

“Todas as aquisições das Forças Armadas são regidas pela lisura, pela transparência, pela eficiência administrativa, pela legalidade e pela correção”, disse Nogueira aos deputados.

Apesar disso, ele preferiu não entrar nos detalhes dos contratos, alegando que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica já o teriam feito.

O SUS não distribui Viagra, nem lubrificante íntimo, nem próteses penianas para civis (Vide vídeo)ImageImage

PSOL pede convocação de ministro da Defesa após demora nas buscas de Bruno Pereira e Dom PhillipsImage

A deputada federal Vivi Reis (PSOL) apresentou nesta terça-feira (7) requerimentos nas comissões de Direitos Humanos e Minorias e de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e Amazônia da Câmara pedindo a convocação urgente do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, para que ele explique a atuação do Ministério e das Forças Armadas nas buscas ao indigenista Bruno Araújo Pereira e ao jornalista Dom Phillips.

Vivi Reis traçou um paralelo entre a rapidez na hora de comprar viagra e a morosidade nas buscas dos desaparecidos na Amazônia. Confira neste vídeo:

 
Eliane Brum
@brumelianebrum
Deputada Federal Vivi Reis questiona enfaticamente ministro da Defesa sobre a demora deliberada nas buscas por Bruno Pereira e Dom Phillips. Para Viagra tem avião… Clique aqui
 
 

A equipe desaparecida, bem como outros membros técnicos da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), vinha recebendo ameaças em campo, uma vez que a região é palco frequente de conflitos causados pelo tráfico de drogas, roubo de madeira e garimpo.

No requerimento encaminhado às comissões da Câmara, Vivi Reis lembrou que, em 2019, um servidor da FUNAI que trabalhava na frente de proteção etnoambiental do Vale do Javari foi assassinado na cidade de Tabatinga (AM).

“Mesmo diante de todo este contexto, as ações do governo brasileiro, especialmente por meio do Ministério da Defesa, são absolutamente insuficientes. O Exército brasileiro, por meio do Comando Militar da Amazônia, emitiu uma nota afirmando que, embora capaz de executar a missão de busca e salvamento necessária, apenas agiria ‘mediante acionamento por parte do Escalão Superior”, aponta um dos trechos dos requerimentos.

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28
Mai22

Entenda as etapas que compõem a estratégia golpista do governo e as chances de prosperar

Talis Andrade

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por Christian Lynch
Insight Inteligência

O sistema político de 1988 foi construído deliberadamente contra a herança autoritária do regime militar. A Constituição que lhe serve de baliza jurídica consagrou uma arquitetura institucional pautada por princípios e valores capazes de comportar governos liberais democráticos, como o de Collor de Mello e Fernando Henrique; social-democratas, como o de Lula e Dilma; e conservadores, como o de Sarney e Temer.

A crise de legitimidade do sistema representativo tornada aguda entre 2013 e 2018 tornou possível, porém, a emergência de uma direita radical, inimiga do Estado de Direito da Nova República.

FANTASMA DO GOLPE – Desde então, o fantasma do golpe tem assombrado nossa democracia. O questionamento do resultado da eleição presidencial de 2014 por Aécio Neves foi denunciado como “tentativa de golpe”; a Lava Jato, como um conjunto de sucessivos “golpes” em formas jurídicas (o “lawfare”); e o impeachment de Dilma Rousseff, como “golpe parlamentar”.

A própria eleição de Bolsonaro teria sido possível graças ao “golpe” da cassação dos direitos políticos de Lula pelo STF, intimidado pelo então comandante do Exército.

Por fim, marcado por um populismo reacionário, sustentado na exploração da desconfiança crônica da legitimidade das instituições, tendo por modelo de bom governo justamente o regime militar, o governo Bolsonaro é obviamente incompatível com o sistema constitucional de 1988. Não pode governar, portanto, senão tentando burlá-lo.

“GOLPISMO” – Desde então, o “golpismo” se tornou conceito básico do vocabulário político, verdadeira ideia-força associada ao modus operandi do novo governo. Ele faz parte da estrutura lógica de governos autoritários, que não reconhece limitações às condições de sua sobrevivência e reprodução.

Eles não são orientados pela doutrina do Estado de Direito, mas pela Razão de Estado, que preconiza a possibilidade de desrespeito à lei pelo governante em nome do valor supremo da “segurança nacional” (na verdade, a sua própria).

Da doutrina da Razão de Estado se extraem duas técnicas: a do segredo de Estado, que autoriza a supressão da publicidade dos atos governamentais pela imposição do sigilo, e o golpe de Estado, ação violenta e fulminante destinada a neutralizar os inimigos da segurança nacional (isto é, do governante).

Embora relacionados todos à arquitetura golpista do governo Bolsonaro, os termos “golpe” ou “golpismo” têm sido empregados para designar três fenômenos que têm sido confundidos, mas que cumpre distinguir para melhor compreender a cena política.

CULTURA AUTORITÁRIA – O primeiro desses significados remete às ações praticadas rotineiramente com o objetivo de implantar um programa de governo incompatível com a Constituição e enraizar uma cultura autoritária na administração e na sociedade. São “os golpes nossos de cada dia”.

Eles são praticados à luz de um legalismo autocrático que ignora os valores, princípios e precedentes jurídicos, substituindo-os por uma interpretação formalista e seletiva do texto da lei de modo a favorecer a expansão das prerrogativas presidenciais. Governa-se por decretos ilegais, na esperança de torná-los fatos consumados pela lentidão do Congresso e do Judiciário.

Aparelham-se os órgãos administrativos, com nomeação deliberada de pessoal inadequado e conivente. Vandalizam-se órgãos da educação, da cultura, da ciência, da saúde, dos direitos humanos e do meio ambiente, transformados em um misto de cabide de emprego e depósito de lixo. O sigilo é imposto a todos os atos cuja publicidade prejudique a administração. Ao mesmo tempo, neutralizam-se pela cooptação e pela intimidação as instituições encarregadas de controlar os malfeitos do governo, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas e o Poder Judiciário.

“NAS QUATRO LINHAS” – Todas esses atos são apresentados pelo legalismo autocrático como constitucionais. É o que Bolsonaro afirma quando diz “jogar dentro das quatro linhas” — ainda que com farta distribuição de catimbas, faltas, agressões e outras jogadas desleais por ele praticadas, sob o olhar complacente de um juiz por ele designado e devidamente comprado.

O segundo sentido da palavra “golpe” remete à sombra do “golpe de Estado” clássico. Dentro da arquitetura golpista, ele visa justamente a desestimular pela ameaça velada de uma ruptura democrática a resistência da sociedade civil e das instituições de controle aos “golpes nossos de cada dia”.

Este golpe se daria menos à maneira de 1964, que elevou os militares ao poder — função exercida já pela eleição de 2018 — do que à de 1968, que pelo AI-5 “legalizou” de vez a razão de Estado identificada com a oligarquia militar.

TERATOLOGIA –  Sua pedra de toque reside na interpretação teratológica do art. 142 da Constituição, que em um momento de instinto suicida teria conferido ao próprio presidente da República, na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas, um “poder moderador” que o capacitaria em caso de crise com outros poderes impor sua vontade sobre os demais, na qualidade de “supremo guardião da Constituição”.

Para tornar a ameaça mais verossímil, Bolsonaro não só incentivou manifestações por uma “intervenção militar constitucional” (sic), como tenta transmitir a impressão de que o endosso ao seu governo por alguns generais significaria adesão irrestrita das Forças Armadas à sua pessoa.

Afinal, não se desfecha um golpe de Estado sem a participação ativa dos quartéis. Daí que cole sua imagem à dos militares, participando de formaturas, oferecendo-lhes cargos em penca e convertendo o Ministério da Defesa em um “ministério da ameaça de golpe”, encarregado de suscitar “questões militares” sempre que em defesa da vontade contrariada do presidente.

NA ALÇA DE MIRA – O principal alvo do golpismo é o STF que, na condição de verdadeiro guardião da Constituição, se tornou uma pedra no sapato no projeto bolsonarista de expansão da cultura autoritária.

O terceiro sentido da palavra “golpe”, por fim, remete à insurreição como forma de resistência do povo à fraude de sua vontade soberana. Enquanto o populista moderado alega, em caso de derrota, que o povo foi enganado pelas elites, radicais como Bolsonaro vendem a tese da fraude para reforçar a tese do complô das instituições contra a vontade popular.

Daí a necessidade de deslegitimar sua eventual derrota, difundindo a desconfiança nos métodos de apuração eleitoral. A traição à vontade do povo pelas instituições — mais uma vez, o Poder Judiciário — legitimaria uma insurreição à maneira da invasão da sede do Capitólio norte-americano em janeiro de 2021.

“POVO ARMADO” -Também aqui o Ministério da Defesa tem se prestado ao papel de instrumentalizar a suposta competência técnica dos militares para dar credibilidade à possibilidade de fraude.

Mas o protagonista deste golpe não seriam os generais do Alto Comando, e sim “povo armado” por Bolsonaro pelos clubes de tiro, bem como militares de baixa patente, principalmente policiais. Este seria o povo encarregado de “resistir à opressão” em defesa de sua “liberdade”.

Estes são os três golpes possíveis de Jair Bolsonaro. Nenhum, porém, passa sem severas complicações. O primeiro, de sabotagem contínua do Estado de Direito, encontra resistências não só dentro dos poderes Legislativo e Judiciário, como no Ministério Público Federal e na própria administração.

O segundo, voltado para a eliminação da autonomia dos demais poderes por uma espécie de AI-5, não é do interesse de quase ninguém.

 

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NOVO AI-5? – O regime de exceção não é do interesse da classe política, que ficaria sob a contínua tutela de um autocrata desequilibrado. Também não é da maioria dos generais da ativa, ciosos da preservação de sua autonomia institucional e já satisfeitos com seu retorno ao jogo político, do qual não sairão tão cedo, seja quem vencer a eleição de 2022.

Mais provável é sem dúvida a tentativa de insurreição contra os resultados eleitorais, a fim de barganhar alguma forma de indulto ou anistia à cúpula bolsonarista. Mas também aqui o “golpe” tende a encontrar a oposição da própria classe política, cujas lideranças teriam questionadas suas próprias eleições em caso de alegação de fraude. A começar pelo Centrão, que espera “lavar a égua” depois de turbinado pelo orçamento secreto.

Trinta anos de rotina democrática não passam em vão. [Publicado em 28 de maio de 2022 por Tribuna da Internet]

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02
Jul20

AFINAL, QUEM É O GUARDÃO DA CONSTITUIÇÃO?

Talis Andrade

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por Caio Henrique Lopes Ramiro e Tiago Clemente Souza/ Empório do Direito 

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De algum tempo pode-se observar algumas interpretações bastante curiosas da Constituição Federal de 1988. Publicamos nesse espaço alguns dias atrás texto a respeito da polêmica interpretação do artigo 142 da Constituição da República[1], cuja hipótese é a de uma estranha recuperação da distorcida ideia e instituição de um poder moderador atribuído às forças armadas, a fim de defender uma leitura senhorial do documento constitucional, o que implica em um funcionamento tutelado das instituições. Na ocasião, retomamos a seminal hipótese de trabalho do professor Paulo Bonavides a respeito da crise constituinte no Brasil, apresentada em textos de intervenção pública nos anos de dabate da constituinte de 1988 e reunidos no livro Constituinte e Constituição. Para Bonavides é possível reconhecer a permanência de uma crise constituinte na histórica constitucional do Brasil, bem como um déficit de legitmidade em alguns documentos constituicionais, haja vista a ausência do povo e da representação de seus interesses, desse modo, de verdadeiros processos constituintes originários. O poder originário dos governados teve sua soberania bloqueada e golpeada em sua temporalidade constitucional, uma vez que continuamente foi usurpado por um simulacro de constituinte ou mesmo por golpes de Estado, com a instauração de regimes ditatoriais. Assim, Paulo Bonavides argumenta que, em regimes democráticos e sistemas políticos que funcionam normalmente, alguns valores são pressupostos e suportam o funcionamento das instituições, guiando a vida pública e a liberdade dos cidadãos, o que permite, então, reconhecer a constituição como imagem da legitimidade institucional e valor supremo que limita os poderes, não sendo apenas um mero pedaço de papel, tão familiar aos sombrios regimes de culto ao arbítrio personalista e sem participação popular, como as ditaduras.

Ainda no cenário de debates da constituinte de 1988, o professor emérito e ex-reitor da Universidade de Brasília Roberto Aguiar apresenta ao público um interessante livro cujo título é: Os militares e a constituinte: poder civil e poder militar na constituição. Aguiar desenvolve seu argumento em três movimentos, a saber: primeiro ele analisa as constituições brasileiras com foco nas mutações do conceito de Forças Armas; doravante examina a questão em termos de direito comparado para, por fim, propor um critério para leitura correta desse conceito e de seu papel na constituição. É interessante destacar que a partida do primeiro movimento se dá com um diagnóstico muito próximo ao de Bonavides, ou seja, de que há uma ausência da participação popular, ou, mesmo, uma participação muito tímida no processo constituinte; o que não pode ser compreendido como alienação ou imaturidade do povo em termos de organização política e reivindicação de direitos, mas, sim, tal ausência é determinda pela própria história constitucional do Brasil, que é marcada pela outorga de documentos constitucionais que refletem os interesses e privilégios históricos “dos grupos hegemônicos da sociedade”. Dessa maneira, Roberto Aguiar vai além e destaca que essa perspectiva de garantia de privilégios de grupos hegemônicos da sociedade brasileira ─ e não se trata aqui do reconhecimento de direitos humanos a minorias historicamente oprimidas ou mesmo de categorias profissionais e de servidores civis do Estado ─, não se limita a constituição, mas irradia sua presença a todo ordenamento jurídico brasileiro.

O ponto interessante a se observar nesse momento é o da ideia de representação, tomando em consideração o curioso manifesto dos “504 guardiões da Nação”, publicado no último dia 18 de junho. A representação se tornou, desde algum tempo, uma questão de debate para filósofos, juristas e cientistas políticos que, a despeito das distintas épocas em que desenvolveram suas reflexões, bem como as diferenças de doutrina e método, concordam a respeito da importância da problematizção de tal conceito em marcos sócio-jurídico-políticos de uma boa e justa organização da sociedade humana. Em termos conceituais, a ideia de representação se apresenta bastante difícil e, em linhas muito gerais, inspirados na hipótese de Hanna Pitkin, podemos compreendê-la aqui em sentido de sua figura jurídico-política como o esforço de tornar presente, na esfera institucional, um ausente. Essa imagem do conceito de representação ganha contornos peculiares no Brasil, uma vez que a ausência popular ─ como vimos com Bonavides e Aguiar ─, não se trata somente de uma ficção, como ocorre para pensar o funcionamento da representação parlamentar no Estado de Direito. Não obstante, destaca-se que há um diagnóstico crítico acerca da representação política, em especial no que diz respeito a sua configuração quase que exclusiva em termos bastante estreitos de defesa, justificação ou representação de interesses na esfera estatal do poder legislativo, cuja legitimiade é dada por processos eleitorais periódicos e que não dariam conta de absorver o poder de ação dos representados e que, hodiernamente, possibilita o reconhecimento de ações políticas de confronto dos representados com as pessoas que agem em nome deles. Diante do que restou dito até aqui, circunscrevemos nossa análise à questão peculiar a ser notada no Brasil, a ideia do povo ausente, e como ela se liga justamente a imagem clássica da representação popular legitimida pelo voto e a figura do guardião da constituição.

Nesse sentido, nos restam algumas indagações quanto à autolegitimidade proclamada pelo grupo “504 guardiões da nação”: os 504 guardiões representam quem? Há possibilidade de catalisar a chamada “vontade popular” por um grupo representante de uma elite castrense? Há, ao menos, uma legitimidade de representação dos interesses da minoria? Como avocam para si a legitimidade de representar o povo se não passaram pelo processo contemporâneo de atribuição de legitimidade ao poder?

Para as democracias contemporâneas não resta outro mecanismo de legitimidade do político-institucional que não os processos populares de eleição. Nesse sentido, os representantes eleitos pelo povo buscam catalisar a vontade de uma maioria, ainda que temporária e localizada. Trata-se, portanto, de um processo de legitimidade a priori, na medida em que há eleição para que os representantes possam falar por seus representados. As manifestações de propostas e planos de governo entram em disputa durante esse processo eleitoral e vencem aqueles que representam a vontade da maioria.

Quando tratamos de Cortes Constitucionais ou Supremos Tribunais, surge a questão já em alguma medida clássica da ausência de legitimidade popular para que estes possam tratar de assuntos caros e densos para qualquer comunidade, tais como o aborto, quotas raciais em universidades públicas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outras questões importantes. Entretanto, para o constitucionalismo contemporâneo, a legitimidade de referidos órgãos de cúpula se dá não necessariamente pela autoridade que lhe fora dada a priori, uma permissão prévia para decidir, mas, muito mais do que isso, uma legitimidade que é conquistada ao longo dos processos decisórios, em que cada julgador fundamenta e justifica racionalmente suas decisões, promovendo a verdadeira defesa dos direitos e garantias das minorias. Daí sua legitimidade decorrer da sua função contramajoritária, conquistada ao longo do processo de atuação.

Para autores como Reave Seagel, Robert Post, Jack Balkin entre outros que compõem a Escola de Yale e que desenvolvem importantes estudos sobre como se constrói em sociedades democráticas os sentidos da Constituição, as Cortes Constitucionais são somente um ator em meio a vários outros, que contribuem para a formação de sentidos constitucionais que perpassam pela disputa social de narrativas. Logo, o que a Constituição significa transita necessariamente por aquilo que o povo, ao longo da sua história, construiu e vem construindo mediante disputas.

Assim, a Constituição deve representar os valores nucleares estabelecidos em seu momento fundador e que foram sendo esculpidos e talhados ao longo da sua construção histórica. Dois pontos devem ser deixados em destaque neste momento, o primeiro diz respeito à manutenção, desenvolvimento e fortalecimento daqueles valores construídos e institucionalizados no momento fundador, tais como o Estado Democrático de Direito e Separação de Poderes. O segundo ponto, diz respeito à centralização da vontade popular, a importância das manifestações culturais, sociais, mediante organizações oficiais e não oficiais, para a construção do sentido constitucional. A tradução dessa vontade popular, ou seja, o processo de institucionalização daquilo que é reivindicado por movimentos sociais, pela sociedade civil organizada, por grupos oficiais ou não oficiais, poderá ocorrer pela pressão que estes oferecem aos órgãos oficiais, tais como o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, que institucionalizam ou não as reivindicações.

Diante dessa dinâmica, a questão que se coloca é se o grupo dos “504 guardiões da nação” guardam efetivamente os valores fundantes da Constituição Federal de 1988? Ou seja, eles realmente guardam a Constituição? A ameaça à cúpula do Poder Judiciário e ao Poder Legislativo por si indica uma ruptura colossal e absurda aos valores instituídos pela Magna Carta de 1988, que vislumbrando a própria limitação dos Poderes estabeleceu a sua distribuição e separação, buscando inspiração no clássico ideário de Montesquieu e dos textos dos Federalistas. Daí se vislumbra, portanto, uma contradição de forma, na exata medida em que buscam mecanismos democráticos para defender resultados antidemocráticos.

Por outro lado, o povo, como titular do poder, não será substituído por um grupo de militares e as facções de simpatizantes. Não há outra possibilidade de se expressar a vontade do povo que não pelo próprio povo, pelos movimentos sociais, pelas instituições formais e não formais. O que os “504 Guardiões da Nação” representam diz respeito tão somente à vontade e intenção de um grupo elitista e conservador, que realiza um verdadeiro jogo de palavras para buscar aparente legitimidade popular, que de popular não guarda qualquer raiz.

Assim, recuperando a proposta de Roberto Aguiar, as forças armadas brasileiras estão submetidas e devem ser compromissadas com a força normativa da Constituição da República, bem como às práticas da democracia representativa, não cabendo mais o imaginário de que as armas podem funcionar como um árbitro voluntarista ou como um distorcido poder moderador. Tal hipótese, conforme ressaltamos em outra oportunidade, recoloca o país na via de uma profissão de fé na concentração de poderes e na negação de toda herança do constitucionalismo que eclode no período das Luzes, com a defesa de um horizonte sombrio e da ideia, não de um Guardião da Constituição ou da nação, mas, sim, da hipótese de existência de uma magistratura de crise e da justificação de uma figura senhorial para a Constituição, uma herança do direito romano que ─ conforme Tito Lívio, Marcus Valerius, Titus Lartius e Marco Túlio Cícero ─, funciona como instrumento na luta política interna contra os plebeus, ou seja, nos termos de nossos dias, contra o povo. Logo, para a garantia dos privilégios das elites romanas surgia o ditador, que não encontrava barreiras jurídicas para sua atuação, em especial para agir contra aqueles cidadãos que fossem considerados como inimigos da ordem estabelecida, desse modo, as hipóteses da existência de guardiões da nação somada à leitura do artigo 142 que defende o poder moderador no limite buscam pavimentar o caminho para uma ditadura e por essa via não pretendem proteger a Constituição Federal, mas, sim, quebrar o pacto fundante de 1988.

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Notas e Referências

[1] Ver RAMIRO, Caio Henrique Lopes: https://jornalggn.com.br/artigos/entre-o-silencio-e-o-entulho-autoritario-por-caio-henrique-lopes-ramiro/

 

27
Jun20

Desandando a maionese

Talis Andrade

reuniao ministerial.jpg

 

 

III - Brasil derruba Weintraub 

por Luciano Wexell Severo/ Le Monde
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Diante das frequentes ameaças de Bolsonaro de recorrer ao Art. 142 da Constituição, interpretando-o de forma inconstitucional, o Brasil se mexe mesmo em meio à quarentena. Congresso Nacional, STF, governadores, sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais, entidades e organizações se mobilizam.

Em menos de um ano e meio de mandato, Weintraub é o décimo membro do alto-escalão a deixar o campo. Entre os que o antecederam estava Gustavo Bebianno, da Secretaria-Geral da Presidência, que havia sido coordenador da campanha presidencial. Homem-forte do governo, saiu brigado com Bolsonaro e seus filhos. Em março de 2019, morreu repentinamente. Outro peso-pesado era Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo. Ficou seis meses na função até chocar-se com Olavo de Carvalho. Houve uma segunda troca na Secretaria-Geral da Presidência, com a saída de Floriano Peixoto, que havia substituído Bebianno. Igualmente foram demitidos Gustavo Canuto, do Ministério do Desenvolvimento Regional, e Osmar Terra, do Ministério da Cidadania.

Em abril de 2020, poucas horas depois de Bolsonaro exonerar o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Mauricio Valeixo, tratando de interferir nas funções dessa instituição, Sergio Moro pediu as contas do Ministério da Justiça. Sabe-se que o chefe da Operação Lava Jato, bem treinado nos Estados Unidos, havia grampeado e divulgado ligação telefônica entre a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, prendido o principal líder político do país e alterado totalmente o resultado das eleições de 2018. Como prêmio, em um episódio vergonhoso, abandonou uma carreira de mais de vinte anos como juiz federal para comandar o Ministério e talvez, depois, seguir para o coroamento no STF. Mas este é assunto para outros escritos.

Também em abril, pouco antes, foi a vez de Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, ser demitido por defender o isolamento social e seguir as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), considerada uma instituição “comunista” pela cúpula bolsonarista. Enquanto isso, o presidente afirmava que “o meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho…”. No lugar de Mandetta, apareceu Nelson Teich, que ficou menos de um mês na função. Entrou por baixo, muito mal na foto, mas saiu por cima ao negar-se a autorizar o uso da cloroquina, como exigia o presidente.

O terceiro escolhido foi Eduardo Pazuello, há um mês “interino”. Agora o Brasil não tem comando, não tem política pública, não tem ministro de Saúde e não tem sequer dados confiáveis sobre a Covid-19. Mas, pelo menos, a cloroquina foi liberada. De acordo com a página oficial do Ministério da Saúde, o interino recebeu “diversas condecorações pelo desempenho do seu trabalho, como a de Pacificador, Mérito Tamandaré, Ordem do Mérito Aeronáutico Cavaleiro e Distintivo de Comando Dourado”. Na área da saúde, no entanto, nada consta. Deméritos que sugerem descompromisso e falta de seriedade. E que geram crescente rechaço da sociedade, mesmo com todo mundo (que pode) escondido dentro de casa.

A gota d’água para a saída de Weintraub foram os atritos com o STF. No entanto, foi a imensa mobilização social, nas ruas ou não, que o derrubou. Foram as pessoas protestando, a onda anti-fascista, as tiazinhas da merenda, os choferes das escolas, as senhoras terceirizadas que limpam o chão, as inspetoras bravas, os guardas-escolares. Foram os brasileiros, de Norte a Sul (dos dois hemisférios…), das grandes metrópoles às cidadezinhas do interior. Foram os sindicatos, as entidades, as rádios, os jornaizinhos que derrotaram a campanha da “balbúrdia”. Foi o Brasil que derrotou o “Escola Sem Partido”, o “Future-se” e a escolha arbitrária de reitores pelo MEC. O Brasil, mesmo em quarentena, venceu Weintraub. Há espaço para a luta. E vamos seguir adiante. Apareceu o Queiroz! Vamos por mais vitórias.

24
Jun20

Indeferidos os embargos de declaração do dr Bolsonaro!

Talis Andrade

 

fogos 300.jpg

 

Por Lenio Luiz Streck/ ConJur

Os fogos de artifício não são por acaso.

Leio, nas manchetes, que o Sr. Presidente, Jair Messias Bolsonaro, comenta que militares são "os verdadeiros responsáveis pela democracia" no Brasil e que "jamais aceitariam um julgamento político para destituir um presidente democraticamente eleito".

Como o histórico do Presidente não parece indicar que ele goste muito de medidas como o habeas corpus — até que um Bolsonaro precise de um, HC é coisa de comunista (ou algo do gênero) —, parece que o Sr. Presidente resolveu opor "embargos de declaração preventivos". É uma nova categoria: ataca-se a decisão que ainda nem existe.

Parece que estou brincando, mas tudo isso é muito sério. E vejam: é o resultado de anos de relativismo semântico, de humpty-dumptyismoinstitucional. Jabuti não sobe em árvore. Agimos como se as palavras não importassem. Negacionismo epistêmico. Anos e anos. O resultado: o chefe do Poder Executivo ameaça dia sim dia também a Suprema Corte na imprensa reivindicando a democracia. É a democracia sendo utilizada para atacar a democracia. Contradição performático-jurídica.

Isso tudo deve servir como um chamado à comunidade jurídica. Os fogos de artifício não são por acaso. Os ataques constantes do Presidente ao STF não são por acaso. A avacalhação hermenêutica do artigo 142 não é por acaso. Por trás de tudo isso está aquilo que venho afirmando há anos, desde o início, quando fundei a Crítica Hermenêutica do Direito há mais de duas décadas:

Senhoras e Senhores: é o Direito que segura a democracia. Não nos descuidemos disso

Esse é o grande ponto e é isso que tem sido ignorado já de há muito. É por isso que os fogos de artifício não são por acaso.

Recupero o que dizia Lord Bingham, da Suprema Corte do Reino Unido. Já falei dele aqui. Dizia ele: Você pode até discordar dos juízes. Você pode até achar que advogados são todos uns picaretas. Agora, imagine um país sem o Estado de Direito para segurar e dar conta da institucionalidade. É a barbárie. Não há democracia legítima sem Direito. Não há democracia plena sem um Judiciário forte, livre e independente.

Esse é o grande busílis, o grande meio que nunca foi reconhecido; ora tratamos o Direito como mero instrumento, ora como uma mera superestrutura, jogo de poder. Resultado: "tudo isso daí que tá aí, talquei?"

Sou um otimista metodológico. Que tudo isso sirva para que nos demos conta da importância do Direito. Que o Supremo perceba que tem um papel institucional — e falo aqui invocando S. Issacharoff — do qual nossa jovem e frágil democracia depende.

De minha parte, se o Presidente opõe "embargos preventivos", coloco-me eu aqui, preventiva e humildemente, como um amicus curiae. Sou um amigo da Corte. Inimigos, esses ela já tem demais. Precisamos de mais amici. É a hora de a comunidade jurídica, uníssona, dizer que as palavras importam, que a democracia não pode ser usada para atacar o Supremo, que o Direito é condição de possibilidade para a democracia. John Austin escreveu um livro chamado "Como fazer coisas com palavras". Por aqui, o Presidente e seus apoiadores escreveram um volume dois — a antítese: "Como destruir coisas com palavras".

Não é por nada que o Direito está sendo atacado. Os embargos preventivos não são coincidência.

Os fogos de artifício não são por acaso. Mas são só fogos de artifício. Não serão mais do que isso se a comunidade jurídica não deixar.

Amici curiae, uni-vos. Não temos nada a perder. A não ser a democracia

 

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