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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

01
Set23

Para desfazer o “arquivo morto” da História

Talis Andrade
Cena do filme “Corte seco”, de Renato Tapajós

 

Relato de visitas ao Doi-Codi, centro de torturas de SP na ditadura. A criança vê a mãe torturada e a política como barbárie. O menino já adulto, volta. A delegacia está sob escavação histórica. Pensa: democracia é revirar passado e presente

 

Por Edson Teles, no Blog da Boitempo

Durante o mês de agosto foi efetivado no país um trabalho praticamente inédito de arqueologia forense. Refiro-me às escavações e análises forenses das paredes de duas edificações onde funcionou o Doi-Codi, cuja sigla abreviava o tenebroso nome “Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna”.

O Doi-Codi foi a instituição que sucedeu, em São Paulo, a Oban, Operação Bandeirante, centro clandestino de tortura. Com a criação do Doi-Codi, em 1970, o Exército brasileiro oficializou a estrutura de tortura, assassinato e desaparecimento de opositores (e de qualquer outro que os agentes da repressão estatal quisessem). Era coordenado por oficiais do Exército e contava com bandidos das três forças, além de policiais civis e militares.

Suas ações eram alocadas e corroboradas pelo Estado, contando com a conivência de juízes e outros órgãos, e com a ação de ocultação de vítimas via estrutura do Instituto Médico Legal e de parte de seus legistas que produziam laudos falsos; algumas delegacias que corroboravam as versões falsificadas; estrutura cemiterial para o enterramento visando diminuir o registro ou a publicização das mortes. Participaram ainda a grande mídia, como o jornal Folha de S. Paulo1, que mantinha agentes da Ditadura em suas redações e davam ampla cobertura para as narrativas inventadas pelos Doi’s, como eram conhecidos.

A Ditadura montou Doi’s nas principais capitais do país. Mas, em São Paulo, funcionou o principal deles, sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em ação sob o comando direto desse torturador, eu e minha família fomos presos e encaminhados para o Doi-Codi, em 28 de dezembro de 1972. Contei essa história em diversas ocasiões. Hoje, escrevo para trazer um outro aspecto e dizer algo sobre o modo como produzimos memória sobre momentos históricos de violência. Seja a memória sobre os anos de Ditadura, seja a de outros momentos terríveis de nossa história.

Neste mês de agosto de 2023, pela primeira vez, tive a oportunidade de adentrar com minha mãe, Amelinha Teles, bem como minha irmã, Janaína Teles, nas edificações do centro de tortura. Nos anos 1970, estivemos lá presos, juntamente com César Teles, meu pai, Criméia de Almeida, minha tia, e Carlos Nicolau Danielli, amigo da família. Transitamos nos dois prédios dos fundos e vimos um pouco do belíssimo e importante trabalho de escavação da história realizado por equipes da Unifesp, Unicamp e UFMG. Pudemos ouvir e acompanhar escavações de piso e do pátio, assim como a raspagem das paredes.

Amelinha foi nos contando sobre a cela onde ficava detida, o banheiro no qual tinha de tomar banho ou fazer suas necessidades sob a constante vigia de seus algozes e a sala onde ocorriam as torturas. Tudo isso no prédio de três pisos, o qual é ladeado pela casa onde à época ficavam os agentes em descanso. No pátio consigo me lembrar do cantinho em que eu e a minha irmã passávamos boa parte do dia. Por vezes, o Ustra, posteriormente promovido a coronel pelos trabalhos de violações de direitos cometidos no período, nos conduzia às salas de tortura de outra edificação, a qual não passa hoje por qualquer trabalho de recuperação de sua história.

Trata-se do prédio que abre o espaço Doi-Codi para quem chega pela rua Tutóia e que, hoje, abriga a 36ª Delegacia de Polícia. Nos anos 1970, a delegacia já estava lá, mas tomava um espaço menor. Boa parte do imóvel era dedicado ao centro de tortura. Lá havia 6 celas (na sexta delas minha mãe passou boa parte de seus 45 dias de sequestro, assim como o meu pai e tantos outros). Eu e minha irmã éramos levados para a sala de tortura da atual delegacia para vermos nossos pais machucados. Ustra utilizava da nossa presença para ameaçar nossos pais. No mesmo espaço, Carlos Nicolau Danielli foi assassinado pela equipe do coronel Ustra.

Nesta recente visita, entrei com a Amelinha e chegamos, por meio de um estreito corredor, a uma pequena sala de aproximadamente 2 por 4 metros. À porta uma placa continha a inscrição “Arquivo”. Dentro, um monte daquelas pastas-caixa de papelão guardando velhos e amarelados papéis em estantes de metal (provavelmente boletins de ocorrência anteriores à informatização).

Arquivo morto. Amelinha então nos conta que ali ela testemunhou os últimos suspiros de Danielli. Já todo machucado, sem roupa, largado em um dos cantos. “Marechal”, um dos torturadores, a levou ao local provavelmente para ver o que lhe poderia acontecer. Depois de alguns dias, o “Capitão Ubirajara” (policial civil Aparecido Calandra) mostrou a ela a manchete do jornal diário que anunciava a morte de Danielli em tiroteio com a polícia.

Legítima defesa. Em uma diligência policial, o “terrorista” sacou uma arma e atirou contra os agentes de segurança. No revide, o mesmo veio a óbito. Mentira. E segue a história da violência de Estado. Da “guerra ao terror” à “guerra às drogas”, seguem os autos de resistência e de defesa da ordem.

Segundo diversos testemunhos daquele mesmo “arquivo morto” deve ter saído sem vida o líder estudantil Alexandre Vannucchi. Nas páginas do dia 23 de março de 1973, o jornal Folha de S. Paulo anunciou sua morte por atropelamento. Dois anos antes, Luiz Eduardo Merlino também teria o mesmo fim, provavelmente passando por aquela mesma sala. A versão dos jornais foi de suicídio.

Nos anos 2000, o coronel Ustra foi condenado por torturar a família Teles e pela morte do Merlino.

Hoje, mais de 50 anos da invenção macabra do Exército brasileiro, ao mesmo passo em que se escava a história daquele local, dando materialidade a pequenos objetos e fragmentos de eventos passados, se mantém parte importante daquele centro de torturas como uma delegacia de polícia.

O prédio principal não passa por qualquer trabalho forense e não consta como parte de um eventual lugar de memória. O país segue violando nosso direito à memória, à verdade e à justiça.

Por que não tirar dali a delegacia e criar um centro de trabalhos forenses sobre graves violações de direitos humanos, como as que se verificaram nestes meses de julho e agosto nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia? Por que não promover uma instituição aos moldes do sério trabalho de arqueologia forense ali realizado, coordenado pelas instituições universitárias, autônomas das polícias e do Estado?

Parece-me que uma das estruturas fundamentais de impedimento de uma democracia mais abrangente e efetiva é a violência de Estado. Ela impõe a diversos segmentos da população a precarização de seus territórios e seus corpos. É justamente essa violência que classifica e hierarquiza a vida e estabelece quais são descartáveis.

Se queremos evitar outra ditadura, um outro 8 de janeiro, a extrema desigualdade, temos de começar por abrir, entender e desfazer o “arquivo morto” de nossas histórias.

03
Jul23

A Amazônia e seus povos têm história – e por isso a floresta se tornou o que é

Talis Andrade

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A arqueologia nos mostra que o passado da região é marcado por enorme diversidade cultural e tecnológica, ao contrário do que as ideologias contemporâneas de espoliação da natureza infiltraram no senso comum

por EDUARDO NEVES

O Brasil tem sua história baseada em duas grandes tragédias: o extermínio dos povos indígenas e a escravidão de povos africanos. A escravidão africana durou mais de três séculos e foi tão importante como negócio que, um ano após seu fim, ocorreu o fim da monarquia. O extermínio dos povos indígenas começou junto com a colonização portuguesa e continua ininterrupto até o presente. Ambas as tragédias resultam direta ou indiretamente da imposição da ideia de que as terras hoje ocupadas pelo Brasil sao espaços para a produção ou exploração em larga escala de bens para a exportação: de início o pau-brasil, depois o açúcar, o ouro, o café, a borracha e, agora, o gado, a soja, o minério de ferro e a energia elétrica, para enumerar alguns. A escravidão africana proveu os braços para o trabalho nessas empreitadas. O extermínio indígena também cumpriu essa função e ainda serviu para liberar áreas para o estabelecimento desses projetos.

A lógica da exploração colonial nos trópicos, que não se extinguiu com o fim da colonização europeia, tem como base a especialização, seja através do cultivo ou manejo de uma única espécie de planta ou animal em grandes áreas, seja através da exploração de um único recurso, como os minérios. Para que isso ocorra, matas, rios e povos têm que ser destruídos. Essa lógica é especialmente perversa nas regiões tropicais porque elas são lugares caracterizados justamente por serem o oposto: espaços de enorme diversidade biológica e abundância. O mais dramático, no caso da Amazônia, é que sua destruição apaga não apenas um rico patrimônio natural, mas também a memória, preservada nas paisagens, dos povos que a ocupam há milhares de anos.

O Brasil e o mundo ainda enxergam a Amazônia como uma região remota, exótica, carente de desenvolvimento, à espera de planos mirabolantes que a salvem da destruição iminente. Essa visão está baseada em muitas premissas equivocadas, e talvez a maior de todas seja que a Amazônia tenha que prestar algum serviço – ambiental, econômico e social – que possa justificar sua proteção. Outro erro que embasa essa visão falseada vem do desconhecimento da história antiga milenar dos povos indígenas que habitam a floresta: é ainda comum pensar que, tal como outras regiões tropicais do planeta, a Amazônia foi sempre esparsamente ocupada porque os povos que ali viveram tiveram que se adaptar a condições ambientais extremas e limitantes.

Nas últimas décadas, a arqueologia vem demolindo tais ideias ao demonstrar como representam mais perspectivas políticas contemporâneas que propriamente o que se conhece sobre a história antiga da região. O emprego da expressão “história antiga” não é ocasional: o uso do conceito de “pré-história” para as Américas traz consigo a noção de que os povos da floresta seriam sujeitos sem história e que teria cabido aos invasores europeus, além da transmissão de doenças, a introdução da história em nosso continente.

A grande lição que a arqueologia tem nos ensinado é que a história antiga da Amazônia é marcada pela produção de diversidade. À época da chegada dos europeus à América do Sul, havia nos Andes um império com enorme extensão geográfica, estruturado a partir de longas estradas, apoiado na tributação da produção agrícola, comandado por uma burocracia consolidada por meio de famílias de nobres chefiadas por um líder supremo, o Inca. A ausência de formas políticas equivalentes à do Império Inca em outras partes do continente, sobretudo nas regiões tropicais que compõem hoje o Brasil, levou cientistas a propor hipóteses que explicariam esse fato com base em argumentos de escassez: a ideia de que algo teria faltado em ambientes tropicais – solos férteis, proteína animal, climas amenos – para, em última análise, justificar a ausência do Estado por essas plagas.

Tal pessimismo com a condição tropical do Brasil, e consequentemente com os supostos limites que dela resultariam para a emergência de formas de vida consideradas “civilizadas”, tem sido há décadas objeto de reflexão por pensadores nacionais, muitos dos quais viam com ceticismo nosso destino como país tropical e mestiço. Além do racismo que embute, essa visão é fundamentada numa falsa premissa que foi destruída pela arqueologia: está hoje estabelecido que os povos indígenas e outros povos da floresta que ocupam nosso país há séculos contribuíram para compor os ricos, complexos e diversos ecossistemas que herdamos no presente.

Dentre os indicadores dessa incrível diversidade, talvez o mais forte seja o das línguas indígenas. Em torno de 170 línguas são faladas atualmente no Brasil. Mas, se considerarmos todos os países amazônicos, há cerca de 300 línguas, reunidas em mais ou menos 50 famílias ou grupos. A Amazônia foi também um importante centro de produção de agrobiodiversidade. Plantas até hoje consumidas em todo o planeta, como a mandioca e o cacau, foram cultivadas inicialmente na floresta amazônica. A partir de 5.500 anos atrás, na região do atual estado de Rondônia, os povos locais começaram a produzir solos escuros e férteis conhecidos como “terras pretas”. A partir de 2.500 anos, tais solos foram se disseminando por outras regiões e agora cobrem distintas áreas da bacia Amazônica, incluindo talvez 2% do bioma. Terras pretas são um legado importantíssimo dos povos indígenas do passado porque são utilizadas atualmente para o cultivo, assegurando a sobrevivência de milhares de pessoas.

Também a partir de 2.500 anos, disseminou-se pela Amazônia um processo de construção de estruturas como aterros, estradas, valas, montículos, embora manifestações mais antigas dessas práticas possam ser vistas ao longo do litoral do Pará, do baixo Amazonas e do rio Guaporé. A produção dessas estruturas indica, juntamente com as terras pretas, o estabelecimento de populações sedentárias, algumas das quais vivendo em grandes assentamentos que poderíamos chamar de cidades. Tais povos produziram maravilhosos objetos de cerâmica e pedra, como nos casos da ilha de Marajó e Santarém, guardados em museus do Brasil e no exterior.

Calcula-se que de 8 milhões a 10 milhões de pessoas tenham vivido na bacia amazônica à época da invasão dos europeus. Muitas delas pereceram nos séculos iniciais da colonização, devido à propagação de doenças, à guerra e à escravidão. Quando os primeiros cientistas começaram a viajar pela Amazônia, no século 18, encontraram a região esvaziada e seus antigos assentamentos cobertos por florestas. A ausência de estruturas de pedra contribuiu para a falsa ideia de ausência consolidada ao longo dos tempos.

A Amazônia e seus povos, portanto, têm história. Sem os povos da floresta, a Amazônia não seria o que é hoje e certamente também não o será no futuro.

 

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