O avanço inesperado de Milei e o esvaziamento da vida política
por Camila Koenigstein
O fenômeno que marca o avanço dos partidos de ultradireita em diversos países chegou à Argentina. Embora exista uma tendência a vinculá-lo à crise econômica que o país atravessa há décadas – intensificada nos últimos anos com a polarização entre macrismo e kirchinerismo (la grieta), que gerou um cenário de forte hostilidade política entre grupos de oposição –, não podemos deixar de pensar que tal momento é reflexo de um movimento que vem ganhando força em diversas partes do globo, o que insere o país em um contexto mais amplo de mudanças políticas, sociais e no âmbito das mentalidades.
A precarização da vida laboral, a frustração do corpo social, o rechaço dos jovens ao cenário político atual e as desilusões oriundas da pobreza que hoje assola 39,2% da população possibilitaram o surgimento de novas subjetividades que formaram um caldo de cultivo de ideias que para muitos pertenciam ao passado.
Os mais jovens identificam em Milei a rebeldia que quase sempre está presente na juventude, porém, diferentemente de outros momentos, esse setor fez emergir um forte antipopulismo, e o próprio conceito de democracia e liberdade foi interpretado como o reino da individualidade plena, ou seja, o neoliberalismo na sua maior expressão.
No entanto, como afirma Hannah Arendt, em O que é política?:
Caso ocorra a abolição do político, obteríamos uma forma despótica de dominação ampliada e até monstruosa, surgindo um abismo entre dominadores e dominados que não possibilitaria sequer rebeliões, muito menos que dominados controlassem de alguma maneira dominadores. A dominação burocrática, a dominação através do anonimato das oficinas não é menos déspota porque ninguém a exerce. Ao contrário, é ainda mais temível, pois não há ninguém que possa falar com este ninguém nem protestar ante ele.
A postura absoluta contra o Estado defendida por Javier Milei mostra uma face déspota, que é facilmente manipulada através de frases de efeito e gritos de liberdade. Mas a ausência do Estado como mediador das relações de poder expõe os mais frágeis a uma situação de extrema vulnerabilidade. Os cortes em programas sociais, as alterações nas leis trabalhistas e sua defesa do minarquismo colocam em jogo tudo o que foi construído em termos de direitos humanos até o presente momento no país.
Assim como ocorreu no Brasil e alguns países europeus, a Argentina se depara agora com a ascensão de um candidato que desde 2016 vem construindo um discurso antissistêmico e hipercapitalista, muitas vezes de difícil compreensão pela falta de coerência, mas que encontrou no corpo social ressonância.
Muito mais do que a personificação do cansaço social, Javier Milei encarna a figura do pai que resolverá tudo utilizando o autoritarismo autorizado pelos seus eleitores. Esse pai que organiza tudo também tira dos indivíduos suas responsabilidades, afinal o pai cuida, protege, age conforme seus valores e desejos sem consultar os filhos.
A premissa kantiana que anunciava que o estado de dependência oriunda da menoridade (falta de esclarecimento e racionalidade) gera de alguma forma uma satisfação no sujeito, já que ele não faz uso de conceitos éticos para decidir o curso dos problemas sociais, expõe a falta de contato dos jovens com o passado e com os temas vinculados à vida política, uma característica importante quando observamos o esvaziamento da vida social e política na atualidade.
O discurso de Milei desperta certo “comodismo” ao culpabilizar os que dependem de ajuda social pela situação do país hoje, assim como todos os que compõem o quadro político atual. Os bodes expiatórios servem como justificativa rápida para problemas complexos, um mecanismo exitoso quando pensamos na manipulação das massas. Nesse sentido, também podemos utilizar Kant e seu livro Sobre a paz perpétua para entendermos a importância das leis e da moral como condutores da vida em sociedade. Para o autor, não é a economia que deve direcionar a sociedade, já que ela não faz parte da razão. Parafraseando Byung-Chul Han em Capitalismo e impulso de morte, a política teria que se submeter de novo à moralidade e seus valores, tais como a solidariedade, a justiça e a dignidade humana. Para tanto seria necessário frear o “poder do dinheiro” e a hegemonia do capital. Longe desses princípios, vemos a ascensão da irracionalidade de um homem que defende a venda de órgãos como uma prática a ser normalizada, uma mera transação comercial, usando o conceito de liberdade individual de forma rasa, negando o valor da ética e da moral na política, exaltando o capital e a individualidade como as únicas saídas para a crise instalada na sociedade argentina.