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Sergio Moraes/ Reuters
Por Valdete Souto Severo
O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia.
Recentemente, a fala do Ministro Gilmar Mendes, referindo-se à suposta responsabilidade dos militares pela política genocida praticada atualmente no Brasil, causou polêmica. A questão foi o uso da palavra, que evoca experiências históricas traumáticas e pavorosas, como aquela vivida no holocausto. Remete, também, a experiências próximas de nós, como a dos indígenas dizimados pelos portugueses, porque cassados, escravizados, infectados por doenças trazidas para cá e mortos. A ocupação do território nacional implicou a redução da população indígena em pelo menos 80%. Esses massacres históricos, direcionados contra populações específicas, se dão a partir de escolhas políticas que às vezes são adotadas sob a lógica da exceção, mas outras tantas vezes são colocadas em prática sob o manto da democracia. É o caso dos genocídios praticados pelos colonizadores nos países periféricos como o nosso.
Em resumo, genocídio é definido como a prática de extermínio de um conjunto de pessoas, pelas mais diversas razões, eleitas pela vontade de quem extermina. Pode ser para ocupar o território que essas pessoas habitam ou por razões étnicas, religiosas, econômicas. Mais recentemente, Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, definindo-o como a escolha estatal de matar determinados grupos de pessoas. Novamente aqui está presente o fato de que se trata de uma escolha dos dominantes. A diferença é que o conceito de necropolítica se refere especificamente ao conjunto de escolhas políticas de determinado governo, em relação a certo grupo de pessoas, de modo a escolher quem pode e quem não pode continuar vivendo.
Sob tal lógica, aqueles que tem o poder de gestão do Estado optam, deliberadamente, por versar recursos públicos, instrumentalizar a segurança pública e autorizar ação de forças repressoras, de modo a conceber como consequência “natural” e, por isso, desejada, a morte de uma parcela específica da população.
Quando olhamos para a realidade brasileira, parece legítimo questionar por que apenas agora se utiliza esses conceitos de necropolítica ou prática genocida para identificar a política adotada em nosso país. Até para que saibamos se é mesmo possível denominar genocida uma tal política, é preciso ter presente tudo o que nos trouxe até aqui.
É verdade que o Estado Social não chegou a se realizar no Brasil e que os Direitos Humanos nunca foram reconhecidos a uma parcela importante da população. É também verdade que há uma estrutura histórica que determina uma atuação estatal desde sempre comprometida com a manutenção da desigualdade social. E, em uma realidade de desigualdade abissal como a nossa, em que o mesmo grupo (que detém capital) sempre foi privilegiado em detrimento de outro, aquele formado por pessoas pobres, negras, habitantes das periferias dos grandes centros urbanos, não é difícil perceber que as políticas públicas foram determinantes para permitir a sobrevivência e implicar a morte de determinadas pessoas.
Em 2015, quando a situação no país era diversa, já havia a denúncia do longo tempo de espera, muitas vezes fatal, para o atendimento pelo SUS. Já havia, também, importante diferença na cor da população carcerária no Brasil, indicando abertamente a existência de uma política pública de criminalização de pessoas negras e pardas.
Por que, então, não lembrávamos a palavra genocídio nem nos preocupávamos em evocar o termo necropolítica para identificar a gestão pública da morte?
Certamente porque o Estado, mesmo sendo forma política do capital e, portanto, fazendo escolhas que concretamente beneficiam quem tem mais e penalizam quem nada tem, adotava políticas públicas que de algum modo compensavam a dominação e reduziam (pouco) as desigualdades. A vida era, portanto, concretamente melhor, pelo menos para parte da população.
O que passa a ocorrer no Brasil a partir de 2013 é, em parte, dialeticamente, o resultado dessa gestão política para o capital, que nunca ousou promover mudanças profundas e enfrentar chagas históricas como a do racismo e a do machismo, ambos estruturais. A escolha de conferir direitos, gerir crises, fazer concessões, mas perpetuar as bases de um sistema profundamente perverso (que exclui, produz desigualdade e miséria; estimula concentração de renda e concorrência individual) não tinha como resultar algo diverso. O capitalismo só convive com inclusão e distribuição de renda até um limite. Para além disso, quando há alguma ameaça a sua continuidade, o sistema do capital historicamente reage. E a reação, no caso do Brasil, é também uma reação às reivindicações por essas mudanças estruturais nunca feitas, promovidas especialmente pelo movimento negro, feminino e LGBTIQ+.
Trata-se da percepção, talvez ainda não completamente compreendida, de que há um esgotamento do capitalismo e, bem por isso, os movimentos de resistência se replicaram em diferentes sociedades do mundo ocidental (Primavera Árabe, Occupy, etc), no mesmo período. Essas sociedades, que vivem momentos diversos de realização das potencialidades e dos limites do capital, têm algo em comum. A maioria absoluta de sua população precisa trabalhar para sobreviver. Essa maioria de pessoas já estava, em maior ou menor medida, sem acesso às benesses do sistema: às novas tecnologias, às comodidades da vida moderna, às possibilidades de fruição de tudo o que, ao fim e ao cabo, o trabalho humano torna viável. Já conhecia o Estado bem mais em sua face repressora, do que social.
A crise econômica que a partir de 2013 torna-se mais clara e determina a necessidade de contingenciamento de gastos impõe uma escolha: seguir apostando em inclusão social e nos direitos humanos, como mecanismos de acomodação e manutenção da dominação de poucos, ou romper com esse freio e mostrar a verdadeira face do capital. Alguns países seguiram alternando políticas de austeridade e de inclusão, muitos promoveram mudanças que precarizam seus sistemas de proteção social, mas nenhum deles assumiu, com tamanha clareza, uma postura tão abertamente hostil ao que se compreende como Estado Social como o Brasil, um país que sequer tornou real o projeto de sociedade que edificou na Constituição de 1988.
O que hoje chamamos de necropolítica ou de política genocida é, portanto, o aprofundamento de algo que sempre esteve presente: a dominação, opressão e exploração. Agora, porém, o exercício da dominação não tem como efeito apenas permitir que alguns vivam o luxo construído a partir da miséria de muitos. Agora, a dominação é exercida para eliminar pessoas de modo sistemático. Eliminar porque o capital já aprendeu a se reproduzir sozinho; porque a terra está ficando pequena para tanta gente; porque já se esgotaram as possibilidades de colonização predatória; porque há também esgotamento de alguns recursos naturais; porque não há como produzir igualdade e inclusão em um sistema que se funda na concorrência e na acumulação. Portanto, as pessoas que até então, dentro da lógica do capital, eram exploradas, mas ao mesmo tempo tinham “permissão” para seguir vivendo, porque úteis ao sistema, agora são alvo de políticas públicas orientadas a fazer-lhes morrer.
No Brasil, essa alteração de rota, que não muda o que está na essência do sistema, é bem representada por escolhas políticas insustentáveis da perspectiva social ou humana.
A Lei 12.850/2013 acendeu o sinal de alerta. Como resposta ao movimento social que ocupou as ruas em junho daquele ano, a lei – publicada no dia 02 de agosto – define organizações criminosas, compreendendo como tais as “organizações terroristas”. Em 2016, ainda sob o governo de Dilma Rousseff, a Lei 13.260, de março daquele ano, conceitua “ato de terrorismo” como aquele que provoca “terror social ou generalizado”, expondo “a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Buscava-se com isso intimidar os movimentos de denúncia contra o esgotamento do sistema e contra o alijamento de parte significativa da população, das possibilidades materiais de viver com um mínimo de dignidade.
Em dezembro de 2016, já sob o governo interino de Michel Temer, a EC 95, ao congelar os gastos sociais por 20 anos, determinou concretamente a impossibilidade de manter o número de escolas, postos de saúde, hospitais, creches públicas e ações concretas para a promoção do trabalho.
A “reforma” trabalhista (Lei 13.467/2017) autorizou jornadas de 12h sem intervalo e contratações precárias; facilitou a despedida; tornou praticamente inviável a atuação sindical e modificou várias regras processuais para dificultar o acesso da classe trabalhadora à Justiça do Trabalho. A Lei 13.429, do mesmo ano, ampliou as possibilidades de terceirização, uma técnica de rebaixamento das condições de trabalho e de vida de quem depende do trabalho para sobreviver.
O Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) e toda a política pública de repressão adotada pelo atual governo e por muitos estados e municípios, constituem verdadeira declaração de guerra às populações das favelas e periferias das grandes cidades. A operação de eliminação dessas populações vem sendo realizada com tanta eficiência, que algumas escolas do Rio de Janeiro sentiram-se obrigadas a pintar seus telhados com a mensagem “Escola, não atire!”1.
A EC 103 (“reforma” da previdência) tornou praticamente impossível a obtenção de aposentadoria, além de dificultar o acesso a outros benefícios previdenciários e alterar a fórmula de cálculo, para reduzir seus valores. (Continua)