Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

12
Jan23

Tradição de impunidade desde redemocratização levou ao caos de Brasília, diz historiadora francesa

Talis Andrade
 
Brasil inicia buscas por responsáveis de invasão a sedes dos Três Poderes
Brasil inicia buscas por responsáveis de invasão a sedes dos Três Poderes AP - Eraldo Peres

Para contextualizar e entender o ataque de militantes radicais bolsonaristas à Praça dos Três Poderes nesse domingo (8), a historiadora francesa Juliette Dumont, professora do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade Sorbonne Nouvelle de Paris, volta ao fim da Ditadura Militar. Ela ressalta a Lei da Anistia, essa “tradição de impunidade”, “esse pecado original da redemocratização”.

Segundo Juliette Dumont, a invasão de Brasília mostra “que essa impunidade leva ao caos e a uma anomia”.

A comparação com o ataque ao Capitólio por militantes trumpistas é pertinente, mas ao contrário dos Estados Unidos, no Brasil houve “leniência” das forças de segurança, diz a professora do IHEAL. A exemplo de vários intelectuais e políticos brasileiros, a historiadora francesa pede que, desta vez, não haja anistia e que os responsáveis por esse ataque anunciado à democracia brasileira sejam punidos, com rigor.

“A questão é saber se o novo governo Lula vai poder realmente ter uma margem de manobra”, questiona a especialista em história do Brasil.

 

RFI: Qual é a sua reação após a invasão de militantes radicais bolsonaristas contra a Praça dos Três Poderes, em Brasília?

Juliette Dumont: É uma dupla reação. Primeiro o espanto diante de cenas totalmente alucinantes e, ao mesmo tempo, a sensação de que isso era muito previsível. Faz meses que, como historiadora, comentarista do que está acontecendo no Brasil, eu e meus colegas dizemos que um cenário como o do ataque ao Capitólio, nos Estados Unidos, era possível. Tudo o que aconteceu desde o dia 12 de dezembro, com a diplomação de Lula e as violências por parte de bolsonaristas em Brasília, que não foram punidas pela Polícia Militar, a tentativa de atentado no aeroporto de Brasília, a movimentação dos bolsonaristas em direção da capital, os acampamentos diante dos quartéis do Exército, tudo isso mostrava uma agitação muito forte.

Além disso, sabíamos, com as eleições e a margem muito curta com o que o Lula ganhou, as eleições também no Congresso e nos governos estaduais, que o bolsonarismo estava bem instalado. Então, claro, não foi uma surpresa, mas uma consternação. Uma tristeza imensa também de ver tamanho ataque às instituições da República brasileira como as destruições feitas ao patrimônio brasileiro, obras de artes, prédios de arquitetos famosos. Consternação, tristeza e também certa angústia com os dias e os meses que virão.

 

Quais são as responsabilidades do ex-presidente Bolsonaro e de outras personalidades por esse crime anunciado contra a democracia?

JD: Faz mais de um ano que o Jair Bolsonaro anunciava como presidente que se ele não ganhasse as eleições, ele iria contestar o resultado; que se ele não ganhasse, era prova de fraude. Essa retórica ele manteve quase o tempo todo, até o segundo turno das eleições. Esse discurso, que também foi respaldado por outros políticos, outros responsáveis nas redes sociais, criou realmente a crença nos militantes bolsonaristas de que as eleições foram fraudadas, assim como o Trump fez nos Estados Unidos. A primeira responsabilidade é sim de Jair Bolsonaro que, como presidente, nunca legitimou as instituições democráticas. Mas também penso no procurador-geral da República, Augusto Aras, que também tem uma responsabilidade forte porque, como procurador-geral, nunca tomou as providências necessárias contra as violências por parte dos bolsonaristas. Responsabilidade também de personalidades como Sérgio Moro, agora senador da República, que no início dessa tarde de domingo, ainda dizia que o novo governo estava mais preocupado em fazer repressão aos oponentes que a governar. Dizendo repressão aos oponentes, ele coloca essas manifestações, esses acampamentos e essa truculência, como normais, como democráticas.

A segunda responsabilidade, a meu ver, é essa leniência, uma palavra que volta muito (a ser usada) desde ontem. O fato de considerar que ataques à democracia, que seja nas redes sociais, na rua ou no Congresso, por parte de políticos, é uma coisa que banaliza totalmente os ataques à democracia. Há a responsabilidade da Polícia Militar, do governo do Distrito Federal, do secretário da Segurança Pública do governo do Distrito Federal. Ou houve negligência ou houve cumplicidade. Os vídeos de policiais militares que fazem selfies e não impedem os manifestantes, ou melhor, os terroristas, de entrar na Praça dos Três Poderes são muito reveladores do problema que existe com a Polícia Militar no Brasil. E é um problema que não é de hoje. Não é simplesmente o resultado de quatro anos de bolsonarismo, mas de uma impunidade que data desde a redemocratização e a falta de processos de condenação das ações da Polícia Militar durante a ditadura militar. Então é toda uma cultura também democrática, que não existe entre a maioria dos policiais militares, que também está em jogo aqui.

Quando muitas personalidades dizem que não deve ter anistia e que o Brasil tem de parar com essa tradição da anistia, eu acho muito justo, muito importante, porque tem uma tradição sim, de anistia, de impunidade. O que mostra a invasão de Brasília ontem é que essa impunidade leva ao caos e a uma anomia. Não se pode falar de um golpe de Estado. Não é uma ação muito bem organizada para tomar o poder, mas uma estratégia de caos e de acabar com a legitimação dos poderes e das instituições da democracia brasileira.

A historiadora Juliette Dumont
A historiadora Juliette Dumont RFI

 

Com essa estratégia de caos, se apostava numa ação do Exército Brasileiro. Como você analisa a posição do Exército Brasileiro nesse momento?

JD: Uma posição muito ambígua. Primeiro, porque há acampamentos em frente a prédios do Exército desde o segundo turno, sabemos muito bem que muitas personalidades, muitas pessoas do exército se beneficiaram dos quatro anos de bolsonarismo e que alguns pregavam uma intervenção do Exército, que agiram contra a democracia e o jogo das instituições. Então tem uma investigação que tem de ser feita e responsabilidades também têm de ser identificadas no Exército. O silêncio dos principais responsáveis do Exército desde ontem revela essa ambiguidade. Então eu acho que vai ter que observar de maneira muito fina o que vai acontecer e como o governo, o Executivo, mas também o Legislativo e o Poder Judiciário podem agir com o Exército, mas também contra o Exército. E o que vemos é a dificuldade do novo governo, que só tem uma semana, de não se confrontar de maneira direta tanto ao Exército como os acampamentos de bolsonaristas, com medo de que isso seja visto como revanchismo ou com o medo que isso possa gerar uma tentativa de desestabilização por parte de certas pessoas do Exército face ao novo governo.

 

Você lembrou a invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021. Essa comparação com a invasão ontem em Brasília continua pertinente?

JD: Sim, mesmo se há diferenças importantes, continua pertinente. Primeiro porque o próprio Jair Bolsonaro, quando houve a invasão do Capitólio, parabenizou o Trump e os que invadiram o Capitólio dizendo que era o povo que estava se expressando para retomar seus direitos. Ele nunca escondeu que se ele perdesse um cenário como a invasão do Capitólio, seria possível. E vemos isso. E vemos também os manifestantes, vândalos, terroristas que estão com uma “raiva de destruição”. As cenas que assistimos ontem foi isso, as de destruição de todos os símbolos.

Agora as diferenças. Primeiro que no Capitólio, as forças de segurança de segurança realmente resistiram. Não houve essa benevolência, essa leniência, das forças de segurança que observamos com a Polícia Militar do governo do Distrito Federal. Nos Estados Unidos, só foi o Capitólio que foi que foi atacado e não os três poderes ao mesmo tempo. E, para voltar nesse papel da Polícia Militar e o que há de diferente com os Estados Unidos, é realmente essa história da segurança pública no Brasil desde a redemocratização. Esse pecado original da redemocratização, de não ter apurado o funcionamento e a cultura da Polícia Militar e de instituições do Estado que reprimem e violentam o próprio povo. Então isso, a meu ver, é uma diferença muito grande entre o que aconteceu nos Estados Unidos e o que aconteceu ontem no Brasil.

 

Você falou que está preocupada, inquieta com o futuro. Quais os desdobramentos você vê dessa crise brasileira?

JD: A questão é saber se o novo governo vai poder realmente ter uma margem de manobra. Já falei da questão do Exército. Como é que o Exército vai ou não vai cumprir as diretivas do novo governo do presidente Lula? Assistimos ontem a uma união sagrada dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. Quanto tempo essa união sagrada vai perdurar? Sabemos que o Congresso, tanto o Senado como a Câmara dos Deputados, hoje tem uma maioria de deputados de direita, de extrema direita, ligada ao bolsonarismo. Como esses deputados e senadores vão se empenhar para realmente defender e fortalecer a democracia? Como esses deputados e senadores vão contribuir para reconstruir as instituições do Estado brasileiro que realmente foram muito enfraquecidas durante esses quatro anos do Bolsonaro?

Outra questão também é a questão da mídia, da grande mídia, que teve um papel importante desde 2013 e, sobretudo, a partir de 2016 e do impeachment contra Dilma Rousseff. Eu lembro de uma capa da Veja,  em novembro de 2017, com uma foto do Lula e do Bolsonaro dizendo “os políticos que nos assombram”. Esse paralelo feito sempre entre extrema direita e esquerda, de criminalização da esquerda, é o discurso que permanece tanto nas palavras, por exemplo, do Jair Bolsonaro no Twitter ontem, ou do Silas Malafaia, ou de alguém como o Sérgio Moro, mas também na grande mídia, dizendo bom, houve ataques de bolsonaristas, mas, por exemplo, o MST tem práticas de vandalismo, de ocupação, etc... Eu assisti as lives da Folha, da GloboNews, da CNN Brasil, e o que me chamou a atenção foi o fato de os jornalistas passarem rapidamente a chamar as pessoas que invadiram a Praça dos Três Poderes de terroristas e vândalos. Eu realmente espero que esse choque seja forte o suficiente para parar com essa narrativa equidistante entre extrema direita e esquerda, que é uma banalização de uma certa maneira da retórica da extrema direita.

Outra coisa vai ser a como os inquéritos, os julgamentos, as prisões que o presidente Lula prometeu, que o Flávio Dino também prometeu, que o Arthur Lira chamou de necessários, o Alexandre de Moraes também, como isso vai ser possível num estado que realmente está enfraquecido e num estado onde os partidários do Bolsonaro ainda são muito numerosos? E como o Lula vai conciliar o seu discurso de unidade e de pacificação da sociedade brasileira com uma necessária resposta muito firme e punitiva diante do que aconteceu? Os atos que aconteceram são muito graves. Cabe ao presidente Lula, ao seu governo, mas também aos outros poderes, manterem essa linha muito firme de não perdoar e não fazer a anistia tanto contra as pessoas que estavam na Praça dos Três Poderes como os responsáveis pela invasão. Responsáveis tanto intelectuais, vamos dizer, políticos, como as pessoas que financiaram a possibilidade dessa invasão.

11
Set22

Evangélicos abençoam Lula em encontro histórico e pedem a Deus sua eleição

Talis Andrade
Lula com evangélicos: Ninguém deve usar o nome de Deus em vão - VermelhoNo Rio, evangélicos abraçam Lula e pedem volta do ex-presidente | Partido  dos TrabalhadoresCristão vota, sim, no PT': o tom do encontro de Lula com evangélicos no Rio  - CartaCapital

 

por Laura Capriglione e Beatriz Pecinato /Jornalistas Livres

- - -

SÃO GONÇALO (RJ) – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encontrou-se nesta sexta-feira (9) com lideranças evangélicas da Baixada Fluminense. Foi um encontro feliz, realizado em um centro cultural de Nova Iguaçu, “a cidade com maior proporção de habitantes evangélicos do mundo”, como asseverou um pastor durante o evento. Em vez da demonização, de que Lula e o PT são vítimas nos discursos de mega-igrejas como a Universal do bispo Edir Macedo, houve louvores, orações e muitas homenagens ao ex-presidente. “Quem quer Lula presidente diz amém!”, conclamou o pastor batista Oliver Goiano, ao que a plateia lotada respondeu com um glorioso “Amém!”

Depois de iniciada a campanha eleitoral, este foi o primeiro encontro de Lula com líderes evangélicos e ele fez questão de dizer que, em seus dois governos, jamais fechou uma igreja sequer, ao contrário do que acusam os “pastores” mentirosos Marcos Feliciano e Silas Malafaia, bolsonaristas de carteirinha. E Lula falou a verdade. Diante dos evangélicos, Lula defendeu um Estado laico: “Aprendi que o Estado não deve ter religião, não deve ter igreja, mas deve garantir o funcionamento e a liberdade de muitas igrejas. Foi aplaudido.

O apóstolo Marcelo Coelho Cunha iniciou sua fala afirmando que a história de que evangélicos não apoiam a candidatura de Lula é mentira, e faz parte do conjunto de falácias de Bolsonaro. O pastor Sérgio Duzilek, presidente da Convenção Batista Carioca foi além: “O melhor tempo para igreja brasileira que essa terra viu foi o tempo do governo do presidente Lula. E não é porque os pastores estavam bem, porque as Igrejas podiam pregar livremente o evangelho, mas porque o governo promoveu justiça social nesse país. O nosso povo, o povo que pastoreamos, era um povo feliz, era um povo que tinha laje e churrasquinho. Hoje o povo fica embaixo de outras lajes. A mendicância agride o senhor Deus. Nós estamos apoiando a sua volta à presidência. Esse país não aguenta mais quatro anos com esse nefasto presidente (Bolsonaro). O povo não merece mais quatro anos de sofrimento com esse presidente que só faz ludibriar e governar para essa elite que nada tem a oferecer para essa nação.”

 

 "Lula foi injustiçado pelo alto clero" 

 

Sérgio Duzilek completou: “O senhor (refere-se a Lula) não foi só alvo da injustiça do judiciário brasileiro. O senhor tem sido alvo do clero brasileiro, e eu me envergonho por isso, presidente. Porque você não merece, e não merecia, continuar passando por essa injustiça.”

O encontro aconteceu em um centro cultural porque Lula e os pastores quiseram deixar claríssimo que os templos e as igrejas precisam ser respeitados, a fim de reafirmar que são locais de comunhão dos cristãos, independentemente da opção política. Bem diferente do que fez Jair Bolsonaro, quando causou escândalo ao comparecer, com a primeira dama, Michelle, ao culto realizado no dia 7 de agosto, na Igreja Batista Lagoinha, liderada pelo pastor-presidente Márcio Valadão. O culto virou comício bolsonarista e indignou milhares de fiéis com a profanação do templo!

“Vamos hoje desconstruir a mentira de que cristão não vota no PT. Uma mentira jamais se sustentará quando as ações são mentirosas. Provérbios 29:2 diz que quando um governo é justo o povo se alegra, mas quando o governo não é justo o povo geme. E o que nós temos visto no governo Bolsonaro é o povo sofrer, o povo gemer de fome, de falta de empregos e tudo mais”, afirmou o pastor Alair Lima, da 1a Igreja Batista em Jardim Alcântara. E ele completou: “O período em que o povo evangélico mais teve a sua alegria, foi no período em que Lula foi presidente do Brasil”.

O tema da fome apareceu também em outros discursos, como o do pastor Ariovaldo Ramos: “Os adversários de Deus (ele refere-se a Bolsonaro) assumiram o controle dessa nação, mas isso vai ter fim agora. Em nome de Jesus! Eles mentiram. Eles usaram em vão o nome de nosso senhor e salvador Jesus Cristo. Eles zombaram da cruz, inventaram mentiras, disseram inverdades terríveis. Mas isso vai ter fim no dia 2 de outubro. Isso isso vai acabar. Eles levaram o nosso povo à fome, à miséria, à angústia, destruíram a educação, a soberania nacional, acabaram com emprego, mas isso vai ter fim”.

A Missionária Ana Paula Santana também discursou, dizendo que acredita ser Lula um escolhido do Senhor. Segundo ela, “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor, o Senhor que constitui todas as autoridades na face da Terra. E eu sei que o Lula é um escolhido do Senhor”.

O encontro encerrou-se com os pastores e as missionárias orando em torno de Lula, impondo suas mãos sobre a cabeça do ex-presidente diante de todos os fiéis ali reunidos. Vários choravam, emocionados. Lucia Amparo da Silva, técnica de enfermagem de 47 anos, agradecia, levantando suas mãos para os céus: “Essa é a verdade sobre Lula; não temos de nos envergonhar pela gratidão que sentimos pela obra de Lula. Bolsonaro mentiu muito ao povo cristão, falando em nome da verdade. Mas agora eu sei a verdade, e a verdade nos libertará!”

13
Mar22

A armadilha da insignificância

Talis Andrade

SciELO - Brasil - O conservadorismo moderno: esboço para uma aproximação O  conservadorismo moderno: esboço para uma aproximação

 

por Gustavo Krause

- - -

“Estou aqui de passagem – alerta Caetano – sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Seja como for, o Homem é o único animal que tem consciência de sua própria finitude, fonte de angústia que se manifesta de várias formas.

Não abandona, porém, a luta inglória pela sobrevivência e, neste sentido, ensina o filósofo francês Luc Ferry: “Apender a viver, aprender a não mais temer em vão as diferentes faces da morte, ou, simplesmente superar a banalidade da vida cotidiana, o tédio e o tempo que passa”.

Trata-se de um sério desafio, especialmente, quando as trombetas da guerra não cessam de anunciar a nossa fragilidade existencial.

Inconformado, o ser humano segue a busca improvável da imortalidade. No alvorecer do século XXI, pensadores transumanistas, bioconservadores e bioprogressistas desbravam novos horizontes ao manejar a NBIC (Nanotecnologia, Biologia, Informática, Ciências Cognitivas – Inteligência Artificial e Ciências do Cérebro).

Polêmico, Alexandre Laurent, autor de A morte da morte (Barueri: Manole, 2018) argumenta com o crescimento expressivo da longevidade (200 anos no fim do século XXI) para afirmar: “A morte é um problema a resolver e não uma realidade imposta”.

À afirmação que o homem híbrido ou o pós-humano são possibilidades, prefiro, as dúvidas de Harari, expressas na obra Homo Deus: uma breve história do amanhã (Ed. SCHWARTZ. São Paulo, 2016): “1. Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas processamento de dados? 2. O que é mais valioso – a inteligência ou a consciência? O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando os algoritmos não conscientes, mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós mesmos?”

Atualmente, a Humanidade enfrenta quatro persistentes ameaças: fome, pestes, guerras e aquecimento global. “Pela primeira vez na história – escreve Harari – morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças contagiosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos”.

Aí percebemos a armadilha da insignificância. O ser humano perde relevância em distintas situações; a luta pela vida em tensão doentia; a luta contra a guerra, vítima, por atacado, da tecnologia do assassinato.

Neste cenário, o poder despótico manipula pessoas em massa. Na sequência das vertiginosas mudanças, serão usadas como chips do Dataísmo – a religião dos dados, uma configuração de poder com efeito explosivo em que algoritmos eletrônicos decifrem e superem os algoritmos bioquímicos.

28
Out21

A angústia, o nada e o sentido da vida em Heidegger, por Michel Aires de Souza Dias

Talis Andrade

vida-simples-sentido-da-vida.png

 

 

O ser humano é um ser imperfeito, aberto e inacabado. Foi lançado ao mundo sem o seu consentimento ou querer. Sua existência é determinada pelas contingências da vida e pelas circunstâncias históricas e sociais.  Ele é também um ser marcado pelas adversidades e por uma certa quantidade de sofrimentos: dor, injustiça, medo, insegurança, fracassos, lutas, catástrofes, envelhecimento, doenças e morte.  Desse modo, a existência humana não é plena e feliz. Cada qual age no mundo superando ou não as dificuldades e obstáculos que a existência lhes impõe. Nesse sentido, a vida humana é marcada pela angústia.

A angústia é uma característica fundamental da existência humana. Quando o homem desperta para a consciência da vida, percebe que ela não tem sentido ou uma finalidade.  É na angústia que percebemos o nada como essa sombra que paira sobre todas as coisas. O nada que tudo aniquila está por sobre e além de nós.  Na angústia todas as coisas se nivelam. Tudo se torna efêmero, tudo se torna igual. O mundo perde sua cor. Tudo caminha para seu ocaso. Tudo caminha para seu fim e decadência.  Na angústia, percebemos que somos um ser para morte. É a morte que retira todo o sentido da vida. Como afirma Heidegger, “o mundo surge diante do homem aniquilando todas as coisas particulares que o rodeiam e, portanto, apontando para o nada” (HEIDDEGER Apud CHAUÍ, 1996. p. 9).

Heidegger dedicou todos os seus esforços a investigar o sentido do ser. Para isso ele começou analisando o próprio homem, uma vez que o homem é o único ente privilegiado que pode ter acesso ao ser, de abarcá-lo em sua totalidade. Esse ente ele denominou de Ser-ai (Dasein), como um ente que existe, está-ai. Dasein é o homem que existe na realidade cotidiana.  Esse Ser-ai é um ser no mundo, é inseparável do mundo. Nesse sentido, o homem é o único ente que pode compreender o traço constitutivo de seu ser no mundo. A totalidade do ser da existência humana, segundo Heidegger, nós a experimentamos na angústia: “A angústia não é então somente um fenômeno psicológico e ôntico, isto é, que se refere somente a um ente ou algo dado, e sim sua dimensão é ontológica, pois nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo” (WERLE, 2003, p. 104-5)

Mesmo sendo um sentimento raro, fugaz, é na angústia que o ser se desvela em sua plenitude. Experimentamos a angústia quando nos sentimos farto das coisas, tudo se torna igual, tudo perde sentido. O que caracteriza essa experiência é “a fuga do ente em sua totalidade”. O ente nos escapa. Quando o ente foge, nesse instante, apreendemos o nada.  É a experiência de vazio, nos sentimos estranhos.  Todas as coisas e nós mesmos afundamos numa indiferença. A angústia “emudece”, nos “corta a palavra”, pois não há nada em que nos apoiar. O ente não mais está lá.  Só nos resta o vazio que sentimos. Quando uma pessoa se encontra angustiada e perguntamos o que sente; ela geralmente diz: “não é nada não”, “não há nada, vai passar”. Essas duas expressões mostram que o indivíduo não entende o que o angustia, não sabe o que se passa.  É o nada que nos assedia. Não há palavras para expressar o nada que sentimos. O nada não pode ser definido.  Heidegger afirma de forma contundente: “diante do que e por que nós nos angustiamos era ‘propriamente’  – nada.  Efetivamente: o nada mesmo – enquanto tal – estava aí” (HEIDEGGER, 1996, p.57).

Para Heidegger, “o nada é a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-ai humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente a essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada é o véu do ser. Ele se manifesta em nossa existência mostrando que tudo se aniquila diante do nada. Mostra-nos que somos um ser para a morte. A existência não tem um sentido, não tem um valor, não tem uma finalidade: “O nada, posto que está acima de um ente determinado, é assim o próprio véu do ser que se revela em nossa existência por meio da angústia. O ser tem em comum com o nada o fato de não se esgotar em nenhum ente determinado e não poder ser nunca definido; tanto o ser como o nada determinam o todo de nossa existência, somente ao homem se põe a questão: “por que existe o ente e não antes o nada? […] Toda nossa existência de repente perde sentido diante do nada”. (WERLE, 2003, p. 109). A angústia, portanto, não é o medo da morte, mas é a percepção mais profunda de nossa finitude. Somos o único ser na face da terra capaz de reconhecer que existimos para morrer. É essa percepção aniquiladora que nos orienta para o cuidado, para a preocupação com nossa existência.

O homem não tem uma natureza determinada a priori, não existe uma natureza humana pronta e acabado. Ele é um ser inacabado, sempre aberto ao futuro. É na angústia, portanto, que ele percebe essa indeterminação, esse nada, esse vazio que é a existência. É nesse vazio que o homem encontra a si mesmo.   A natureza humana é essa abertura para as coisas, é esse vazio que busca ser alguma coisa. O homem é, portanto, projeto.  A necessidade de viver é uma necessidade de preencher esse vazio, de projetar-se no futuro.  É o anseio de ser o que não somos, é o anseio de continuar sendo. O homem só pode transcender se for capaz de projetar-se.  Assim, ele sempre busca um sentido para sua vida: “A angústia contém na sua unidade emocional, sentimental, essas duas notas ontológicas características; de um lado, a afirmação do anseio de ser, e de outro lado, a radical temeridade diante do nada. O nada amedronta ao homem; e então a angústia de poder não ser o atenaza, e sobre ela se levanta a preocupação, e sobre a preocupação a ação para ser, para continuar sendo, para existir (MORENTE, 1980, p.316).

O sentido da vida, portanto, é algo que tem que ser criado. O homem deve dar uma direção a ela. Não existem verdades absolutas, não existe um critério, um dogma ou um Deus que possa nos guiar. A nossa vida é essa abertura ao mundo: “Do existir é próprio, por um lado, a facticidade, por outro, a abertura […] o estar essencialmente aberto para as coisas” (MARIAS, 2004, p.480). Nesse sentido, somos livres. A liberdade está inscrita na própria natureza humana. Se houvesse uma natureza humana pronta e acabada não existiria liberdade. A liberdade só existe porque o homem é esse ser inacabado, aberto à transcendência. O ser humano é esse nada, livre para ser alguma coisa: “Suspendendo-se dentro do nada o ser aí sempre está além do ente em sua totalidade. Este estar além do ente designamos a transcendência. Se o Ser-ai, nas raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e isto expressamos agora dizendo: se o Ser-ai não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto, também não consigo mesmo. Sem a originária revelação do nada não há ser-si-mesmo, nem liberdade. (HEIDEGGER, 1996, p. 41).

 O homem é condicionado por suas condições geográficas, históricas, sociais e econômicas. Ele percebe o mundo como submissão, como facticidade, uma vez que é determinado pelas contingências e circunstâncias da vida. Contudo, o homem não é apenas facticidade, mas é também transcendência. Ele sempre busca algo além de suas circunstâncias, algo além de si mesmo. Ele busca no devir sua realização. O que todo ser humano busca é a felicidade aqui na terra.  A vida autêntica surge, portanto, quando somos capazes de dar sentido a nossa vida, preenchendo o nada que nós próprios somos. A vida não tem um sentido. A vida é um eterno vazio. Somos nós que devemos preenchê-la, norteá-la.  O sentido para a vida será dado por nossas escolhas. Através de nossas escolhas vamos preenchendo esse nada que somos, vamos criando uma biografia, uma história, um sentido para nossa vida: “A angústia é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia a dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda” (CHAUÍ, 1996 p.8-9).

 Contudo, alguns homens fogem da angústia, procuram preencher seu vazio de modo impessoal, vivem uma vida inautêntica. Eles buscam preencher seu vazio na banalidade da vida cotidiana. A impessoalidade torna a vida mais segura e monótona.  Fazer o que os outros fazem torna a vida mais fácil.  Nos dias atuais muitos preenchem seu vazio em divertimentos e no consumo. Os indivíduos buscam ainda cargos, poder, dinheiro, sexo para fugir da angústia e da responsabilidade por sua vida. O mal de tudo isso é que buscam as agitações da vida como se a posse das coisas que buscam devesse torná-los verdadeiramente felizes. O problema é que não os tornam, nunca estão satisfeitos com nada. A grande consequência disso é que abandonam seu projeto essencial. As preocupações da vida constantemente os distraem e o perturbam: “O ser-humano, em sua vida cotidiana, seria promiscuamente público e reduziria sua vida à vida com os outros e para os outros, alienando-se totalmente da principal tarefa que seria o tornar-se si mesmo” (CHAUÍ, 1996 p.8).

Bibliografia

CHAUÍ, Marilena. Heidegger, vida e obra.  In: Prefácio.  Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

HEIDEGGER, M. Que é metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996

MARÍAS, J. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MORENTE, Manuel G. Fundamentos da filosofia: lições preliminares. 8 edição. São Paulo: Mestre Jou, 1980.

WERLE, Marco A. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Revista Transformação vol.26 no.1 Marília  2003.  Disponível em < https://www.scielo.br/j/trans/a/JLXMqcxLdXLsBdmwKwFbTHg/?lang=pt>  em 01.03.2014.

 

06
Mai21

Como não consigo matar a injustiça, escrevo

Talis Andrade

 Eu não sei atirar, esmurrar, e assim não posso combater e matar a injustiça com as mãos cheias de bombas, balas e mísseis. Como não posso, escrevo

por Urariano Mota

- - -

Respostas que falei por email a Ney Anderson, do site  Angústia Criadora

O que é literatura?

À primeira vista, é o texto escrito. Mas essa primeira visão é falha no geral e no específico. Primeiro, porque existe a poesia oral, que muitas vezes é feita em seus melhores momentos por geniais repentistas do Nordeste brasileiro. Isso para não entrar nas raízes históricas da poesia. Segundo, porque o jornalismo impresso não é literatura. Então resta a pergunta: o que é literatura? 

Literatura é ficção, no sentido mais comum. Mas isso, esclareço, não é uma narração mentirosa. A literatura fala da vida de que apenas desconfiávamos existir. Ela é uma compreensão da realidade. E no escritor, em geral, a memória é a própria compreensão do mundo. Os escritores são melhores quando escrevem sem pretensiosa fantasia. É natural que todos não alcancemos a compreensão da vida que lembramos. Isto é, a maioria não tem consciência da memória que reside no seu ser. Ou até mesmo nem deseja ter essa consciência, que a literatura revela, quando a memória é trauma

Mas nem sempre literatura é ficção, naquele sentido que o vulgo e a ignorância confundem sempre com mentira, quando falam que determinada impostura de autoridade ou réu é ficcional. 

Tomemos o exemplo de Os Sertões de onde cito este máximo:

"Canudos não se rendeu... caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados."

Isso está acima de nós, por força do seu lugar sobre esta linha, e por força da expressão. Isso acima de nós não é objetivo, por maior verdade que fale e expresse. Isso é imagem subjetiva, voz de um escritor parcial, com parcialidade escrita, porque indignada contra o massacre de uma gente rude, que desejava o céu na terra. Canudos não é uma ficção, infelizmente é um fato real, um massacre objetivo. Mas em Os Sertões é literatura, porque mantém uma qualidade de escrita acima do comum, porque é narrado com vigor, maestria e paixão, somente abaixo da grandeza da injustiça que narra.

 

O que é escrever ficção?

O escritor de ficção, em vez de narrar ideias gerais, narra pessoas, personagens particulares. É da natureza do nosso gênero, é a nossa forma de trabalhar. Ainda que estejamos escrevendo sobre as coisas mais abstratas, algo como a Constituição Federal atualizada, ainda assim o escritor, o que tem gênese e característica da literatura, falará da Constituição Federal conforme a biografia sentida da própria vida. É como um louco ou doente sem remédio. Em muitos significados, ele é um funcionário permanente. O escritor me lembra um bancário que não conseguia sair do banco. Ia pra casa, o banco o acompanhava. Ia dormir, lá estava o banco. Ia pro bar, e quando no calor da cerveja se discutia sobre a estratégia da França com a Linha Maginot depois da 1ª. Guerra Mundial, o bancário concluía: “Entendo, eu também faço isso. Eu pego os livros de relatórios e empilho na minha frente, pra ninguém me perturbar. Essa Maginot é como lá no banco”.

Não é que o escritor seja um monstro biográfico, que possua um misterioso talento onde não cresçam e frutifiquem ideias. Pelo contrário, não se conhece um só bom autor que não possua uma concepção do mundo e dos seus desconcertos. Mas é que nele, no escritor, as ideias sofrem uma interpretação particular, que se mostram no que ele escreve. Nele não há lugar para a sobrevivência da tese, que é do ofício de todo ensaio científico ou acadêmico. Na literatura, os personagens não são bonecos de ideias gerais. São gente, de cara e dente, onde as ideias se batem, se violentam e mantêm o conflito. Como na vida fora da escrita.

Nos livros, falo do que vi em minha juventude, tão perto de mim, como eu gostaria de crer. Neles falo da repressão da ditadura, de pessoas heroicas, covardes e loucas, ou em profundo desespero, que eu vi. Falo da minha infância em um subúrbio periférico do Recife, que tem o nome de Água Fria, que não se pronuncia em boa conversa, porque seria o mesmo que falar um palavrão. O melhor de mim está quando volto os olhos para esse mundo sem nome, de pessoas que desaparecem sem nome, cujo sepultamento é apenas um alternativa precária da carniça para os abutres. É para esse imortal escárnio que me volto. Essa gente, gentinha gentalha da minha genética é que me sustenta. Antes, durante suas vidas e depois.

A literatura é a terra da democracia. Ela permite a um filho do povo escrever e por isso ser recebido com tapete vermelho em qualquer palácio. E a honra será dos palácios. Essa democracia da literatura, esta literatura que me permitiu ser menos insignificante, é a minha terra e o meu destino. Eu não sei atirar, esmurrar, e assim não posso combater e matar a injustiça com as mãos cheias de bombas, balas e mísseis. Como não posso, escrevo.

 

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Retiro de um texto que escrevi sobre Joaquim Nabuco: 

No Brasil, e no exterior também, há uma corrente de liberais que separa o cultural do político. E de maneira quase unânime, separa a literatura da política. Isso não é bom nem fecundo para a política ou para a literatura. Na política, assim separada do mundo literário, procura-se amesquinhar, rebaixar o seu nível à discussão apressada, ignorante e mal pensada. Ou seja, a prática ausente do conhecimento literário, que se fez presente nos clássicos há muito, essa ausência não é normal nem é a norma. Penso em Marx, Lênin, Gramsci, José Marti. E no Brasil, penso nos clássicos Astrojildo Pereira, Pedro Pomar, Nelson Werneck Sodré, Miguel Arraes, e outros que minhas limitações não permitiram alcançar. Nesta altura, lembro aqueles versos de Camões citados por Diógenes de Arruda Câmara, numa peça de acusação contra a ditadura no Brasil:

“Metida tenho a mão na consciência,

E não falo senão verdades puras

Que me ensinou a viva experiência”.

Por outro lado, ou pelo mesmo lado, na literatura separada da política me ocorre a imagem de cortinas que se abrem para as trevas. E nesse escuro, o abismo não é pequeno. Seria o mesmo que um mundo sem os gregos, e não só os trágicos, mas um mundo sem Platão, esse grande escritor que criou o personagem Sócrates, e a maioria só o nota como filósofo. Mas de modo mais óbvio, a literatura sem política seria um mundo sem Shakespeare, Dante, Cervantes, Tolstói, Balzac… e se querem exemplos mais próximos de nós, pelo tempo e pelo idioma, teríamos um mundo triste mundo sem Castro Alves, Lima Barreto, Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Saramago. Um mundo tão medíocre quanto mutilado em suas melhores forças.

Mas isso ainda não é dizer tudo dessa literatura que ficaria tão desfigurada. Num rápido avanço, e tão rápido que não me afaste do título acima desenhado, uma das maiores incompreensões é a que retira do mundo da literatura a obra de Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. Uma negação estética que vem a ser estúpida, maldosa e desonesta. Em outro ataque, mais recente, desconhece-se a leitura literária nas crônicas de Dom Hélder Câmara, de textos altíssimos no rádio, que ele chamava de Um Olhar sobre a Cidade. E agora chego mais perto do que me trouxe até aqui. Separar o literário do político e o político do literário seria o mesmo que não ver em Joaquim Nabuco um dos nossos mais geniais escritores. O que isso quer dizer? – Simples, digamos: o seu pensamento político, abolicionista, possuía uma forma de expressão que se não for literatura será literatura sob transparentes véus. Eu me refiro, por exemplo, a estas iluminações:

“A raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua. Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto…

Os escravos, em geral, não sabem ler, não precisam, porém, soletrar a palavra liberdade para sentir a dureza da sua condição”.

 

Para além do aspecto do ofício, a literatura, de forma geral, representa o quê para você?

Respondo com o meu romance “A mais longa duração da juventude” em um trecho: 

“E se a revolução não vier, como vamos fazer? eu lhe pergunto, e a pergunta é tão sincera que só poderia fazê-la bêbado. Estamos os dois no cais, ele bem entende o significado do ‘fazer’, que substitui o verbo ‘viver’. Como vamos viver se a revolução não chegar? 

‘Não tem como ela não vir. Eu tenho a certeza’. Eu, não, lhe digo, mas quero dizer não sei, não sei se o que desejamos virá. O que significa: amor, trabalho, justiça, felicidade coletiva, sociedade sem opressão, liberdade, isso tudo é possível, Luiz? Mas aí ele se volta para mim e pergunta, direto: ‘Você acredita na revolução?’. Meu passo imediato é responder eu não tenho a certeza, mas respondo ‘Sim, claro, se eu não acreditasse, não cumpria tarefas’. Ao que ele ergue a voz para o oceano: ‘Você é meu companheiro’. E nos apertamos as mãos. E saímos da praça para o Gambrinus, onde pretendemos tomar a última. Quando vem a cerveja, eu lhe falo: ‘Olhe, eu acredito na literatura’, quando ia lhe falar ‘Eu acredito na literatura, mas a revolução é meu horizonte’. No entanto, só tenho 20 anos e não estou tão bêbado para tal franqueza. Luiz do Carmo entende o que desejei dizer, me põe os olhos grados e pergunta: ‘Sério? Para você o que é a literatura?’. 

E eu: ‘É tudo’ ”. 

 

O escritor é aquela pessoa que vê o mundo por ângulos diferentes. Mesmo criando, por vezes, com base no real, é outra coisa que surge na escrita ficcional. A ficção, então, pode ser entendida com uma extensão da realidade? Um mundo paralelo?

Não, a literatura não é uma “extensão da realidade”. Assim posta, poderiam confundi-la com um braço, uma perna, ou mesmo um apêndice de tese acadêmica ou mesmo como um curso de extensão na universidade. Não, ainda, mesmo fora da caricatura da frase anterior. Não, ainda, se a isolarmos no substantivo “extensão”. Isso porque a literatura é arte, a mais desenvolvida forma de arte que o homem já inventou. Ou seja, ela é uma prova da nossa humanidade, e de tal maneira, que deveríamos ter deixado em Marte um volume do Dom Quixote. Mas em 1997 os cientistas da Nasa escolheram para o robô em Marte o samba Coisinha do Pai, na voz da cantora Beth Carvalho. 

Assim, essa “extensão” nos faz crescer como deuses humanos, porque fala do pior e melhor de nós mesmos, como se fôssemos um homem editado. Enfim, talvez venha a ser um “mundo paralelo”, se com isso queremos dizer o mundo que ilumina o ambiente de trevas em que estamos, do lado de cá. 

 

Quando você está prestes a começar uma nova história, quais os sentimentos e sensações que te invadem? 

Os sentimentos e sensações vêm antes, bem antes dos dias de começo. É meio como se fôssemos almas penadas que fingem ser normais e comer e beber e falar para que não nos tomem como anormais ou loucos. Mas o que sentimos enquanto andamos por aí ou vagamos é aquela maravilhosa expressão de Camões nestes versos que destaco em um soneto: 

“Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei por quê”

Mas em seu começo, sei o “assunto”, o personagem ou personagens, o destino para onde posso ir, mas as surpresas e obstáculos são tamanhos, que o destino se altera, e autor e personagens também. É como iniciar um novo amor. Há um ponto de partida, mas não se sabe para que inferno ou céu estão nos levando. 

 

A leitura de outros autores é algo que influencia bastante o início da carreira do escritor. No seu caso, a influência partiu dos livros ou de algo externo, de situações cotidianas, que te despertaram o interesse para a escrita? 

Dos dois, e não sei como sair dessa, assim como na pergunta do ovo ou da galinha quem nasceu primeiro. Copio de uma entrevista minha ao poeta Natanael Lima Jr: 

Comecei a me interessar por literatura bem antes, quando ainda não sabia que a expressão da gente é arte. Lembro que esse remoto aconteceu no dia em que li o soneto Só! de Cruz e Sousa
 

“Muito embora as estrelas do Infinito

Lá de cima me acenem carinhosas

E desça das esferas luminosas

A doce graça de um clarão bendito;

 

Embora o mar, como um revel proscrito,

Chame por mim nas vagas ondulosas

E o vento venha em cóleras medrosas

O meu destino proclamar num grito,
 

 

Neste mundo tão trágico, tamanho,

Como eu me sinto fundamente estranho

E o amor e tudo para mim avaro...

 

Ah! como eu sinto compungidamente,

Por entre tanto horror indiferente,

Um frio sepulcral de desamparo!”

 

Quando eu li esse poema, senti que Cruz e Sousa parecia falar para mim, e no entanto falava da própria dor. Eu era adolescente e esses versos chegaram com força em um momento de profunda revolta, mais revolta que desalento. Então ali começou o meu longo e infindável aprendizado. Hoje sei que falamos do mundo quando falamos do mundo que vai dentro da gente.

Depois, esse poema me voltou em momentos da juventude. Quando sozinho, estávamos eu e o poeta iguais no frio sepulcral de desamparo, mas sem  estrelas do infinito acenando carinhosas. Negro igual a Cruz e Sousa, eu sentia a desesperança do soneto igual, mas o que me amarrava nu e chagado era o desencontro entre a minha tendência e o que exigiam de mim. A minha tendência era a literatura. E com muito trabalho, às vezes com algum sucesso da expressão da palavra, eu compreendo que a felicidade é o outro nome da literatura.

Você escreve para tentar entender melhor o que conhece ou é justamente o contrário? A sua busca é pelo desconhecido? 

Escrevo para entender melhor o que conheço. E até mesmo para entender o que pensava conhecer e de nada sabia, até o ponto em que escrevi. 

 

O que mais te empolga no momento da escrita? A criação de personagens, diálogos, cenas, cenários, narradores....etc? 

Tudo. Mas o problema a ser narrado vem antes. Depois, personagens, cena, cenário, tempo, narrador, nessa ordem. 

 

Um personagem bem construído é capaz de segurar um texto ruim? 

Para mim, há uma contradição no personagem bem construído em um texto ruim. No romance, no conto, é quase impossível. Grandes personagens se encontram em grandes narrações. Imensos romances são de imensos personagens. As criaturas - mais que personagens – de Andersen estão em contos imortais, de todos os tempos. Mas entendo ser natural que personagens inesquecíveis não se encontrem na maioria dos romances de José de Alencar. Aqueles índios que encarnam a nobreza idealizada são de doer. Por outro lado, penso que é possível encontrar personagens indigestos em poemas narrativos.  

 

Entre tantas coisas importantes e necessárias em um texto literário, na sua produção, o que não pode deixar de existir? 

A verdade. A verdade do problema, do personagem, do autor, do tempo narrado. 

 

Nesse tempo de pandemia, de tantas mortes, qual o significado que a escrita literária tem?

Toda e total. A boa literatura é fonte de enriquecimento destas horas de angústia e pesadelo. Não importa em que meio: em livro físico, em ebook, na internet, em áudio. E adianto aqui uma notícia, que a ninguém anunciei ainda: “Soledad no Recife” será acessível em áudio, no próximo mês.                      

 

No Brasil, o ofício do escritor é tido quase com um passatempo por outras pessoas. Será que um dia essa realidade vai mudar? Existem respostas lógicas para esse questionamento eterno? 

Retiro de um texto de Celso Marconi que o Vermelho publicou há pouco:

“Quem trabalha com a mente e tenta criar algo, de forma geral é considerado fora da normalidade. O ‘normal’, desde que a sociedade estabeleceu critérios para julgar o ser humano, é quem trabalha para ganhar a sobrevivência sua e de sua família. Quase sempre quem pensa em trabalhar para criar é considerado, principalmente pelos que mandam no mundo, como malucos malditos”. 

Ao que acrescento: o passatempo da humanidade é fingir que a morte não existe. Que a vida não importa. Que o amor é bobagem. E que portanto são fracassados os que pensam, refletem e criam sobre essas coisas inúteis. 

 

A imaginação, o impulso, a invenção, a inquietação, a técnica. Como domar tudo isso? 

E quem doma? São indomáveis. O autor no máximo se acostuma ao imprevisível que traz dentro de si. 

 

O inconsciente, o acaso, a dúvida...o que mais faz parte da rotina do criador?

Tudo faz parte. Também o trauma e o beijo impossível que não se pôde dar. 

 

O que difere um texto sofisticado de um texto medíocre?

Eu não sei. Ah, se soubesse!

 

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento? 

Quando o escritor toca na sua alma. Aquilo de Goethe: "Tudo quanto se destina a surtir efeito nos corações, do coração deve sair." 

 

O leitor ideal existe?

Sim, aquele que o texto alcança e atinge. É um ideal sem idealismo. Um leitor de todas as classes, gêneros e raças, mas fundamentalmente os que se solidarizam pela sorte dos marginalizados.  Ou que sentem a sua dor. 

 

O simples e o sofisticado podem (e devem) caminhar juntos? 

O simples é que é a maior sofisticação. Penso no samba de Paulinho da Viola, nas composições de Caymmi, nos poemas de Manuel Bandeira, nos contos de Machado de Assis, nas crônicas de Antônio Maria. 

 

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

No livro “É isto um homem?”, de Primo Levi: 

“Agora, todo o mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas partículas de sopa; daí, uma barulheira metálica indicando que o dia acabou. Pouco a pouco faz-se silêncio. Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido para a morte. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem 20 anos e depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar?
Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.” 

 

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria? 

Dom Quixote. 

 

Dicionário Amoroso do Recife.jpg

 

Qual a sua angústia criadora? 

Não poder evitar a morte de quem muito amei. 

*Angústia Criadora https://www.angustiacriadora.com/urariano-mota-eu-nao-sei-atirar-esmurrar-e-assim-nao-posso-combater-e-matar-a-injustica-com-as-maos-cheias-de-bombas-balas-e-misseis-como-nao-posso-escrevo/ 

29
Abr21

O grito dos “sem-poder”

Talis Andrade

 

Foto de Hamilton Grimaldi
 

Tornou-se urgente e imprescindível afastar o Presidente da República. Já não se pode esperar por impeachment nem pelas eleições de 2022

 

Por CHICO WHITAKER, MARCELO BARROS, RAFAEL RODRIGUES e WALDIR AUGUSTI /Outras Palavras

Em número de mortes pela pandemia que assola o planeta, o Brasil está em segundo lugar no mundo, ultrapassando os 390.000 óbitos. E em primeiro lugar no ritmo de aumento desse número.

A perplexidade, a angústia e o medo não podem, no entanto, nos paralisar, como espectadores dessa tragédia. É o momento de um estrondoso grito dos “Sem Poder”. Como o “basta!” que começa a ecoar em todo o mundo, porque o Brasil está se tornando um novo epicentro da doença, com variantes ainda mais letais.

A expressão “sem poder” poderia vir da Bíblia, das narrativas da resistência do povo empobrecido, no livro de Daniel. Mas foi cunhada pelo dramaturgo checoslovaco Vaclav Havel, depois da “Primavera de Praga” de 1968, ano em que o mundo foi sacudido em toda parte por revoltas de jovens e menos jovens. Em maio, na França, protestos estudantis contra diversas formas de opressão estremeceram estruturas de poder. Não conseguiram mudanças mas explicitaram sonhos que alimentaram a rebelião no mundo. Em junho os jovens brasileiros se levantaram contra a ditadura militar, na “passeata dos cem mil”, mas em dezembro veio o AI 5 de triste memória.

Na Checoslováquia tudo começara em janeiro. O próprio governo, chefiado por líderes “reformistas” do Partido Comunista, iniciou a “Primavera” abrindo caminho, com reformas, para o que foi chamado de “socialismo com rosto humano”, com a descentralização da economia, a garantia de direitos dos cidadãos, a liberdade de imprensa, de expressão e de organização.

Em agosto tropas da União Soviética invadiram o país, substituindo os governantes por títeres. Mas não puderam massacrar os “dissidentes” e “não conformistas”, como tinham feito na Hungria doze anos antes: cidadãos e cidadãs resistiram de forma não violenta. Invertiam as placas das estradas para que os tanques voltassem para Moscou, recusavam-se a cooperar com os soviéticos. O jovem Jan Palach protestou imolando-se com fogo.

A resistência continuou. Havel e outros intelectuais escreveram em 1977 o Manifesto 77. Foram presos. Em 78 Havel escreveu “O poder dos sem poder”, sobre a luta dos que não tinham poder político institucional mas, como ele próprio, resistiam. Em 1989, ano da queda do Muro de Berlim, eleições o levaram à Presidência do país. Dubcek – o Presidente “reformista” destituído em 1968 – tornou-se Presidente do Parlamento.

Enquanto isso ocorria, o Brasil retomou, com a promulgação de uma nova Constituição, a construção de sua democracia, interrompida em 64. Mas hoje, trinta e dois anos depois, somos praticamente o único país em que grande parte das mortes causadas pela Covid são, inacreditavelmente, provocadas diretamente pela ação e omissão criminosas do seu próprio governo.

De fato, mal iniciada a pandemia – e até hoje – o Presidente da República age como se tivesse planejado um morticínio: minimiza o caráter letal da doença, confunde a população sobre como enfrenta-la, induz o uso de medicamentos inócuos mas de graves efeitos colaterais, emperra a compra de vacinas, desarticula serviços de saúde, obstaculiza a ação de governadores e prefeitos. E, como um psicopata, demonstra uma cruel insensibilidade com a dor dos enlutados.

Tornou-se, portanto, urgente e imprescindível afastar o Presidente da República. Já não se pode esperar por impeachment nem pelas eleições de 2022. Precisamos todos apoiar a Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento 342 Artes, de juristas e artistas, que abriram outro caminho para esse afastamento. Em representações ao Ministério Público imputaram ao Presidente da República crimes previstos no Código Penal e pediram uma denúncia ao Supremo Tribunal Federal. Se a Câmara dos Deputados autorizar um processo criminal, o Presidente será afastado por 180 dias.

Quarenta organizações da sociedade civil, encabeçadas pelo Centro de Estudos Bíblicos, enviaram uma Carta Aberta ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, para que essa instituição faça a denúncia e não possa ser considerada corresponsável, por omissão, pela tragédia que vivemos. A Carta recebe novas adesões em https://ocandeeiro.org/carta-aberta-ao-conselho-superior-do-ministerio-publico-federal-mpf/ É preciso que milhares de “sem poder” a divulguem e a subscrevam.

bolsonarohospicio.jpg

 

02
Out20

70 anos são um sopro

Talis Andrade

dic. urariano.jpg

 

 

por Urariano Mota

- - -

Pesquiso no calendário e descubro que o dia 29 de setembro de 1950 caiu numa sexta-feira. Então chega de Natal, nesta semana, a mensagem do cientista político José Antonio Spinelli, um amigo desde o tempo de adolescência. Em seu ponto mais comovente, Spinelli me fala:

“Chegar aos 70 anos, no tempo da nossa adolescência e da juventude, e mesmo há 20 anos atrás, era quase impensável!
E então: como encararmos o futuro? Que planos podemos fazer? Que perspectivas temos?”

São perguntas difíceis de serem feitas e mais ainda de serem respondidas. Diante do complexo que envolvem, eu lhe disse que eram motivo para um novo texto. É o que procuro fazer a seguir.

Todos os militantes socialistas do Brasil, nos anos da ditadura, jamais esperaram completar a idade que agora atravessamos. A morte estava ali, aqui, já, hoje ou logo amanhã de manhã. As prisões, torturas e assassinatos de companheiros se sucediam, e chegavam cada vez mais perto de nós mesmos, dos camaradas da última sexta-feira de carnaval. Por que nos poupariam o fim? Daí que vivíamos todos sob alta tensão. Daí que vivíamos todos como se ganhássemos as últimas horas do último dia. Mas sobrevivemos, só Deus e o Diabo sabem como.

Agora, sob um governo fascista, problemas que julgávamos resolvidos voltam à tona. O que será dos nossos direitos? O que será do trabalho dos nossos filhos? Haverá um mundo digno do nome para as novas gerações? Para essas perguntas bem sabemos a resposta: vamos à luta, não podemos submergir em um mar de angústia e desesperança. O problema é que no contexto geral desse fascismo vêm as perguntas particulares para a nossa idade: como podemos encarar o futuro? Que planos faremos? Que perspectivas temos?

Para quem atinge os 70 anos, o futuro a ser vivido é curto, pode até nem atingir o fim deste dia. Nesse aspecto, é uma repetição dos anos de ditadura, em inesperada semelhança. No entanto, a resposta hoje é bem diferente daqueles dias. Hoje, devemos encarar o futuro sem lhe destacar o prazo certo, pequeno de tempo. Para o breve futuro caminhamos na certeza de que até o fim viveremos com a força do que sabemos fazer e acreditamos. Ateus, materialistas, não teremos o céu depois da morte. O céu é nosso trabalho, aqui, agora, de hoje até o último segundo. O inferno é negar o que temos de melhor em nossa alma, porque de ideias e sentimentos somos feitos.

Mas que planos faremos? Para tão curto espaço de horas o plano é amar, beijar as pessoas, dizer-lhes o que nunca lhes dissemos, porque temos a consciência do próximo mergulho que não projetamos. E trabalhar, e trabalhar, e trabalhar para realizar o melhor que somos. Admitamos, esse é um grande plano. Pois devemos dividir e multiplicar as lições que acumulamos. Queremos aquele alto que Joaquim Nabuco expressou tão genial em seu fim:

– Doutor, tudo, menos perder a consciência!

Se a perdemos, já não somos. E quando a perdermos, não seremos. Não deve haver lágrimas para um corpo inútil corpo, sem identidade. Então o plano é ser, o ser pleno, o plano é pleno. Até onde possamos sorver a plenitude.

Mas que perspectivas temos? Daqui onde estamos, nesta hora, que olhar podemos lançar para o porvir? Uma resposta está no que vimos há pouco, nas linhas anteriores. Outra quase resposta talvez se encontre no romance “A mais longa duração da juventude” em uma de suas páginas:

“A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz”

Quando olho os primeiros dias, sinto que importantes foram as pessoas que conheci. E nelas incluo objetos e animais que humanizei sem saber que esse era o nome. Então vêm a cadela Chandu, de olheira negras; então revejo encantado o boneco Benedito, que falava na frente do Mercado Público de Água Fria; então reencontro um pão com açúcar que um dia recebi de presente da minha mãe. E outras pessoas como lembrei no Dicionário Amoroso do Recife:

Euclides, que ensinava a desenhar de graça aos meninos na terra, no chão de um beco da Rua Alegre. Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com as crianças. Um sorriso triste, mas sorriso ainda assim. E o mestre Arlindo Albuquerque no Colégio Professor Alfredo Freyre, em Água Fria. Nós, os meninos, dele podemos dizer que era o mestre só possível de acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos.

Dicionário Amoroso do Recife.jpg

 

E para não ser injusto nem gerar mágoas em amigos não mencionados, lembro Marco Albertim, jornalista e escritor falecido, a quem dediquei o romance “A mais longa duração da juventude”, modelo do personagem Luiz do Carmo.

Enfim, ganhei e perdi amigos, amigas, amadas, gente fundamental que carrego até na fala que se corta à sua lembrança. Passem-se os séculos, essas pessoas permanecem. São a minha glória, minha forma e jeito de ser, a minha recompensa em silêncio. Na altura destes 70 anos, posso dizer que tudo passou muito rápido. Foi um sopro. Me ocorre agora associar estes dias a um verso de Manuel Bandeira: “Vida noves fora zero”. Mas ao ver aquele 29 de setembro de 1950, posso bem adaptar o poeta: Vida noves fora nasci hoje.

 

05
Fev20

Sete mentiras

Talis Andrade

 

 

04
Jun17

No meio de uma tempestade

Talis Andrade

thalia 3 instagram .jpg

de THALIA MENDES MEIRELES

 

 

Eu sei que a decisão

que eu tomei

foi totalmente desqualificada

e imoral.

Quem diabos é

para tirar a própria vida?

Mas eu posso dizer uma coisa:

Para que serve o livre arbítrio?

A vida é minha,

a essência é minha.

Respeitem.

 

Então eu digo:

Ninguém me influenciou,

não pensem isso .

Eu me matei porque

não aguentava mais

existir assim.

Eu já estava morta,

o que mais eu serviria

nesse mundo?

Uma garota totalmente

sem essência,

sem nada por dentro.

Já imaginou um oceano

no meio da tempestade?

O céu escuro?

É assim dentro de mim.

Mas tudo silencioso.

Tudo muito destruído

e silencioso.

Tudo muito angustiante

e doloroso.

 

---

 

Foto: Thalia Mendes Meireles

A menina enforcada/ carta suícida

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub