Infelizmente, a polêmica em relação a postura do presidente tira o foco de um problema muito maior: a falta de estratégias e de decisões cruciais para enfrentar a crise
II - Lento e sem testes, Brasil escolhe a roleta russa do coronavírus
por Andrei Roman/ El País
Ao contrário das melhores práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pelos especialistas dos sistemas de saúde que melhor lidaram com a crise até agora, o Ministério da Saúde não adotou medidas eficazes para assegurar ou pelo menos incentivar o rastreamento de pessoas que chegaram em contato com casos confirmados da Covid-19 (“contact tracing”). Mais que isso, por conta de escassez, o ministério vem recomendando a aplicação de testes somente em casos sintomáticos graves. Na prática, a falta do rastreamento de contato junto com a impossibilidade de testar portadores assintomáticos acelera a transmissão comunitária do vírus. Enquanto na Ásia aplicativos disponibilizados pelas autoridades de saúde pública permitem às pessoas descobrir em tempo real a identidade e a localização de pacientes confirmados que estiveram na sua proximidade, o Brasil não pode citar nenhum avanço nessa direção.
Outro aspecto muito problemático da gestão brasileira da Covid-19 até o momento é a questão dos testes. O Ministério da Saúde vem divulgando gráficos comparativos com a evolução da pandemia em países europeus e argumentando que a evolução do contágio vem sendo muito mais devagar que na Itália ou na Espanha. Mas como é possível acreditar em tal comparação sem qualquer tipo de transparência em relação ao número de testes que já foram realizados ou serão realizados no futuro? Desde o início da crise é notório que hospitais pelo país inteiro não conseguem testar todos os pacientes suspeitos de infecção, mesmo alguns em estado grave, por conta da falta de testes suficientes. Enquanto isso, a previsão de entrega de testes da Fiocruz feita pelo Ministério da Saúde contradiz os dados da própria Fiocruz. É absolutamente imperativo que a situação dos testes seja resolvida com celeridade para reduzir a subnotificação de casos. Ao contrário, as medidas de saúde pública adotada pelas autoridades podem estar norteadas por dados distorcidos.
Hoje, o debate público no Brasil deveria estar focado nessas questões. Também deveria estar focado na busca de uma estratégia para lidar com a queda abrupta da atividade econômica enquanto há um aumento galopante do número de casos. O isolamento de bairros, cidades, ou regiões do país onde a situação continua muito grave ou o isolamento vertical das pessoas mais sensíveis ao vírus poderão ser a nossa última opção caso o número de infecções continue aumentando depois de 3 ou 4 meses de isolamento horizontal. O cenário dramático enfrentado pela Itália, Espanha e os Estados Unidos deixa claro que o país precisa começar a se preparar para esse cenário sombrio e cheio de riscos, para evitar com que o fim do confinamento traga uma completa rendição frente ao poder destruidor da pandemia. Relaxar as medidas de quarentena sem um planejamento extremamente cauteloso, certamente incluindo os três eixos descritos acima, significaria uma abdicação do nosso dever moral de protegermos as vidas dos mais vulneráveis.
Igual ao resto do planeta, o Brasil está se arriscando num jogo perverso de roleta russa. A bala que já está no revólver é o vírus. Não podemos permitir que ele também seja carregado com as balas do despreparo, da ignorância, da desunião, da falta de foco. Seria uma morte segura.