Idolatrado por Bolsonaro e Mourão, Ustra tornou-se o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador durante a Ditadura Militar
“Ele me tirou da cela puxando pelos cabelos e me batendo na cara. Aí eu fui sendo arrastada por ele ali no corredor das celas, apanhando. Antes de subir as escadas, eu perdi a consciência e acordei na sala da tortura toda urinada”. O triste depoimento é de Crimeia Schmidt, na época grávida de sete meses e uma das centenas de vítimas deCarlos Alberto Brilhante Ustra, ex-coronel chamado de herói pelo candidato da extrema-direitaJair Bolsonaro(PSL).
O radical, que “homenageou” o torturador durante seu voto em favor do golpe de 2016 e cometeu crime de incitação à violência na ocasião, define da seguinte forma a sua relação com o primeiro militar condenado pela Justiça pela morte de 60 inocentes e a tortura de ao menos outras 500 vítimas.
“Conheci e fui amigo do Ustra. Sou amigo da esposa dele, sou uma testemunha viva de toda essa história do que queriam fazer com nosso país (…) O coronel recebeu a mais alta comenda do Exército, é um herói brasileiro. Se não concordam, paciência”, disse Bolsonaro em discurso na sessão do Conselho de Ética da Câmara em 2016.
Não chega a causar espanto as declarações do candidato, que já afirmou em entrevista que o grande erro da ditadura “foi torturar e não matar” e que os militares deveriam ter “fuzilado uns 30 mil naquela época”. Mas é conveniente lembrar o quão cruel e criminoso foi Ustra para entender (e evitar) o projeto de país que o deputado almeja para o país.
Nascido em Santa Maria (RS) em 1932, Ustra teve ascensão rápida como militar até ganhar notoriedade a partir do golpe de 64. Chefe do centro de investigações conhecido como Operação Bandeirante (Oban), criada em São Paulo em 1969, ficou rapidamente conhecido por “inovar”nas técnicas de tortura aplicadas contra todos aqueles que lutavam contra o regime autoritário imposto aos brasileiros. “Você vai conhecer a sucursal do inferno”, costumava dizer Ustra às suas vítimas.
Espancamentos, choques, afogamentos dividiam espaço com sadismos como colocar ratos e baratas nas vaginas das mulheres. Ustra também causava pânico quando aparecia de surpresa e levava os interrogados para os “passeios”: abraçava o detento e o levava a uma sala onde havia o corpo de um militante. “Se você não falar, vai acabar assim”, dizia. Além de não ter piedade nem com uma grávida, Ustra também se divertia levando os filhos para ver as mães serem torturadas.
Com o fim da ditadura militar na década de 1980, centenas de relatos começaram a manchar a imagem do “herói” de Bolsonaro. Mas somente em 2008 o militar foi condenado pelos seus crimes. Por decisão em primeira instância do juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, o coronel Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado em ação declaratória por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos entre 1964 e 1985.
Ustra morreu em 2015 sem pagar pelos seus crimes. Infelizmente, o criminoso segue ameaçando as instituições democráticas por meio de seus súditos. Mesmo que historiadores revelem o quão cruel foi a Ditadura Militar no Brasil, Jair Bolsonaro adora dizer que o seu único livro de cabeceira é “A Verdade Sufocada”, obra delirante do coronel Ustra e cujo título ainda ironiza suas milhares de vítimas ao remeter a uma das técnicas de tortura utilizadas por ele. A esperança precisa vencer o ódio.
Mulher lembra momentos de terror vividos com o Coronel Bilhante Ustra, homenageado por Bolsonaro. Amelinha Teles foi parar na ‘cadeira do dragão’. Nua, vomitada, urinada, Ustra ainda levou os filhos da vítima, de 4 e 5 anos, para assistir a mãe sendo torturada
Em seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro homenageou o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por torturar centenas de mulheres na época da ditadura. O torturador chegava a introduzir insetos e roedores nas genitálias das vítimas. Presidente, Bolsonaro promoveu Ustra na farra safada dos marechais, trem da alegria da mamata militar.
“Eu fui espancada por ele [Coronel Ustra] ainda no pátio do Doi-Codi. Ele me deu um safanão com as costas da mão, me jogando no chão, e gritando ‘sua terrorista’. E gritou de uma forma a chamar todos os demais agentes, também torturadores, a me agarrarem e me arrastarem para uma sala de tortura”.
Uma das milhares de vítimas da ditadura militar, Amelinha Teles, descreveu assim seu encontro com Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como “Coronel Ustra”, o primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador na ditadura.
Ao programa Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazônia, Amelinha contou como era o homem admirado por Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e citado pelo parlamentar durante seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff, neste domingo (17), no plenário da Câmara dos Deputados.
“Ele levar meus filhos para uma sala, onde eu me encontrava na cadeira do dragão [instrumento de tortura utilizado na ditadura militar parecido com uma cadeira em que a pessoa era colocada sentada e tinha os pulsos amarrados e sofria choques com fios elétricos atados em diversas partes do corpo], nua, vomitada, urinada, e ele leva meus filhos para dentro da sala? O que é isto? Para mim, foi a pior tortura que eu passei. Meus filhos tinham 5 e 4 anos.”, disse a ex-militante do PcdoB.
O militar lembrado pelo parlamentar foi chefe-comandante do Destacamento de Operações Internas (DOI-Codi) de São Paulo no período de 1970 a 1974. Em maio de 2013, ele compareceu à sessão da Comissão Nacional da Verdade. Apesar do habeas corpus que lhe permitia ficar em silêncio, Ustra respondeu a algumas perguntas. Na oportunidade, negou que tivesse cometido qualquer crime durante seu período no comando do Destacamento de Operações Internas paulista.
Em abril de 2015, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, suspendeu uma das ações penais contra Ustra que tramitava na Justiça Federal em São Paulo. Atendendo a pedido feito pela defesa do militar, a ministra disse, na decisão, que suspendeu a ação pois era necessário aguardar o julgamento da Lei de Anistia pela própria Corte. O militar morreu em 15 de outubro de 2015 no Hospital Santa Helena, em Brasília. Ele tratava de um câncer.
Hoje, Amelinha integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e é assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. Para ela, a homenagem de Bolsonaro a um de seus torturadores pode ser o resgate de uma das páginas mais tristes da história do Brasil.
“O que significa essa declaração do deputado é que ele quer que o Estado brasileiro continue a torturar e exterminar pessoas que pensem diferente dele. Que democracia é essa que quer a tortura, a repressão às pessoas que não concordam com suas ideias?”.
Sadismo, crueldade e mentiras formam a triste figura do coronel Ustra, o primeiro torturador condenado no Brasil. Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez
Juca Guimarães
Brasil de Fato
Ao declarar o seu voto no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) fez uma homenagem à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra chamando-o de “o pavor de Dilma Rousseff”, por ter comandado as sessões de tortura contra a ex-presidenta, que foi presa durante a ditadura militar.
Em 2013, quando foi depor naComissão Nacional da Verdade, décadas após o fim da ditadura, Ustra mostrou novamente a faceta dissimulada e mentirosa ao afirmar que não houve mortes dentro das instalações que comandava.
“[O Doi-Codi] foi um organismo de repressão política construído pela ditadura que misturava agentes da polícia civil, da polícia militar e do Exército com uma certa informalidade e agilidade necessária para que eles pudessem agir com a intensidade e brutalidade que agiram. O principal instrumento utilizado foi a tortura das pessoas suspeitas que eram presas, envolvidas com a luta armada ou que tinham algum contato com elas. E são muitos os relatos que envolvem o nome do comandante Ustra na condução dessas torturas”, explica José Carlos Moreira da Silva, professor de Direito da PUC-RS.
“Neste caso da família Teles, que é um caso terrível porque os pais do Edson Teles e da Janaina Teles, na época o Edson tinha 4 anos de idade e a Janaina 9, eles foram torturados brutalmente e os filhos foram levados até as dependências do Doi-Codi e viram as pessoas torturadas e seus pais machucados. Num primeiro momento não os reconheceram. Eles ficaram ali durante um tempo sem a presença de nenhum parente e nenhuma pessoa conhecida sendo utilizados como moeda de troca para que os pais, a Amelinha Teles e o César Teles, pudessem falar o que eles [torturadores] queriam ouvir”, disse o professor e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).
Ocaso da tortura da família Teles, em 2008, deu origem à primeira condenação que confirmou como torturador o chefe do Doi-Codi e herói do Bolsonaro. O Brasil é signatário de acordos internacionais que condenam a prática da tortura desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a assinatura da Convenção de Genebra. Por isso, as atrocidades comandadas por Ustra e exaltadas por Bolsonaro também eram ilegais, independentemente de quem eram ou o do que fizeram os torturados.
Membro da Comissão da Anistia por mais de dez anos, julgando casos de perseguidos políticos e pessoas que foram presas na ditadura militar, o jurista Prudente Mello tomou conhecimento de centenas de processos que apontavam o coronel Ustra como um dos principais agentes da tortura na ditadura militar.
"Era muito comum ouvir das pessoas que passavam por lá [comissão da anistia], que foram torturadas, reportando sobre o coronel Brilhante Ustra e as práticas de tortura que ele foi responsável. Os relatos ao longo dos processos de pessoas torturadas dão conta disso. Realmente não tem como esconder ou tentar invisibilizar este personagem que foi um personagem triste na história do Brasil. Nós temos que aprender com os erros que foram praticados e cometidos até mesmo para que eles não voltem a se repetir”, disse.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira
Processo
Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez
por Jornalistas Livres
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A família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, vive mais um momento de luto produzido pela justiça brasileira. No julgamento realizado nesta quinta-feira (10/10/2019), por 2 votos a 1, a 11ª Turma do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, não aceitou recurso e não recebeu a denúncia do MPF que pedia que fossem processados pelo homicídio do jornalista Luiz Eduardo Merlino, três agentes da ditadura. O jornalista foi morto no Hospital do Exército, em julho de 1971, após 24 horas de tortura no DOI-Codi.
Assistente da acusação Eloísa Machado afirmou durante o julgamento:
“A busca pela verdade faz parte da história dessa família há 48 anos”
Somente Fausto Di Sanctis foi favorável a levar os três servidores à julgamento pela morte do jornalista. O relator, desembargador José Lunardelli, e o presidente da turma, Nino Toldo, votaram contra a tese do MPF. Para eles, não há como contornar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2010, que julgou constitucional a Lei de Anistia de 1979 e, por isso, não seria possível receber a denúncia. Cabe recurso da decisão.
Os denunciados são o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil de São Paulo Dirceu Gravina, acusados de homicídio doloso qualificado (com intenção de matar), por motivo torpe e com emprego de tortura que impossibilitou a defesa da vítima. O médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época, legista, é acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo necroscópico do jornalista.
Apresentada em setembro de 2014, a denúncia do MPF contra os agentes foi rejeitada pelo juiz federal Fábio Rubem David Müzel, sob a alegação de que os acusados estariam cobertos pela Lei de Anistia. Em outubro do mesmo ano, o MPF recorreu da decisão.
A família de Merlino luta por justiça e punição dos torturadores e do mandante Coronel Alberto Brilhante Ustra, que comandava o centro de torturas e que deu ordem para que deixassem Luiz Eduardo Merlino morrer no hospital militar. Com a sua morte, em 2015, a punibilidade criminal contra ele foi extinta. Mas a família de Merlino moveu ação indenizatória.
Anibal de Castro Lima e Souza, advogado da família do jornalista , falou aoBrasil de Fatosobre a relevância histórica de desvendar os crimes da ditadura e seus autores.
“É um caso importante, não só ao direito da memória da família do Merlino que foi brutalmente assassinado pela ditadura, mas também para relembrar para a geração atual e a futura o que aconteceu na história do Brasil”, disse.
O advogado também comentou sobre a tentativa de transformar em herói um torturador.
"É triste porque primeiro porque é desumano, segundo porque ignora as leis e os tratados que o Brasil é signatário. O Brasil é fundador da ONU, a nossa Constituição veda a tortura. A tortura é definida no Brasil como crime, inafiançavel e imprescritível. As pessoas que negam isso ou que relativizam a tortura, na minha opinião, não conhecem a lei. Não acredito que uma pessoa ao sentar, raciocinar sobre o que está dizendo ou tomar conhecimento de alguém que foi torturado possa manter essa opinião”, disse.
Quando morreu, em outubro de 2015, o coronel Ustra morava em uma casa de alto padrão em uma área nobre de Brasília.
Mídia NINJA on Twitter: "Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres"
Mídia NINJA
@MidiaNINJA
Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres não pode ser considerado um homem de honra. É um torturador que precisa ir para a lata do lixo da história
Quando fui convidada a escrever esse artigo e a ser uma representante feminina nesta edição sobre o Golpe Militar de 1964, como uma feminista marxista, vi a oportunidade de escrever sobre a resistência das mulheres daquele tempo que foram torturadas e morreram nas trincheiras das guerrilhas no campo e na cidade, nos porões da ditadura, nas emboscadas, nos fuzilamentos, na violenta repressão nas manifestações. Os nomes dessas mulheres nem sempre são lembrados, mas precisamos pensar nelas para realizar a tarefa do nosso tempo: derrotar o fascismo que se avizinha através do governo ilegítimo de Jair Bolsonaro.
A resposta à pergunta sobre quem são as mulheres que enfrentaram a ditadura foi parcialmente respondida pela Comissão Nacional da Verdade que registra uma rápida biografia de 434 pessoas que foram mortas ou desapareceram de 18 de setembro de 1964 a 5 de outubro de 1988. A obra Luta, um substantivo feminino, organizada por Tatiana Merlino, registra a história de 45 mulheres mortas e 27 depoimentos de mulheres sobreviventes à Ditadura Militar. Dessa obra, alguns depoimentos selecionados serão apresentados ao longo do texto.
A construção de um movimento feminista no Brasil remonta à Primeira República (1889-1930) e foi influenciada pelas lutas das sufragistas. A organização cabia às mulheres da classe média e da classe dominante cujas pautas reivindicavam o acesso a cargos públicos sem distinção e o direito ao voto, conquistado apenas em 1934. Antes do golpe de 1964, as ações e a organização das mulheres pela mudança das condições a que estavam subjugadas na sociedade brasileira estavam ganhando força: as associações femininas; a criação da União Feminina ligada à Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1936; a criação da Federação das Mulheres do Brasil (FMB), em 1947; as Assembleias Nacionais de Mulheres; a Liga Feminina do Estado da Guanabara; o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, em 1963. As mulheres estavam se organizando articuladas sobre as pautas mais diversas, contra a carestia, contra os despejos das favelas, pela paz, dentre outros.
O poder crescente das mulheres era notório, por isso, as forças que tramavam o golpe e precisavam dar-lhe ares de legitimidade frente à democracia usaram da força das mulheres na conhecida Marcha com Deus pela Família e a Liberdade (entre 19 de março e 8 de junho de 1964). Essa série de manifestações públicas levantaram bandeiras pela proteção da nação contra a ameaça vermelha do comunismo. Apoiaram-se em organizações femininas que, em cursos de formação sobre a união da família, divulgavam as ideias anticomunistas arregimentando para as marchas que foram compostas também por mulheres trabalhadoras conquistadas pelo discurso conservador das forças políticas de direita.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto. – MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
1964 foi também um golpe na vida dessas mulheres. A repressão engendrada pelo Regime não deixou escapar nem as organizações de mulheres que questionavam os direitos mais básicos de igualdade democrática entre os sexos. Amélia Teles, em seu livro Breve história do feminismo no Brasil, aponta como o crescimento do capitalismo às custas da superexploração da força de trabalho atingiu também as mulheres que, apesar de ingressarem no mercado, estavam submetidas a condições desumanas de existência: cresceu o número de favelas, de cortiços e de crianças abandonadas; aumentou o índice de mortalidade infantil; a absorção de mulheres pelo mercado de trabalho gerou o acúmulo com o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as empresas não ofereciam condições de trabalho próprias para as mulheres. Resultado: muitas das mazelas sociais geradas pela Ditadura Militar caíram nas costas das mulheres trabalhadoras.
Há que se destacar também que as mulheres se levantaram por seus entes desaparecidos nas ações violentas dos militares no poder. Foi assim que surgiu a União Brasileira de Mães que chegou a organizar passeatas pela vida dos seus. Nas mobilizações por moradia, na resistência nos locais de trabalho, nas lutas cotidianas pela sobrevivência, na reorganização molecular da luta operária e camponesa, a presença de mulheres mostrou-se imprescindível. Foi também na luta armada que as mulheres combateram a Ditadura Militar e, aqui, enfrentaram não somente os algozes do Regime, mas as condições pensadas apenas para o corpo masculino nos espaços de guerrilhas, o machismo dos camaradas, a descrença em suas possibilidades de atuar em frentes majoritariamente masculinas, mas elas resistiram e permaneceram nas trincheiras nas quais o comando estava a cargo do homem.
Quando o corpo feminino ou a dita feminilidade era aproveitada na estratégia de resistência, as mulheres estavam em ações de espionagem, de observação, apoio, pois poderiam se camuflar mais facilmente na multidão. De todas as formas, as mulheres colaboraram na derrubada do Regime Militar e de todas as formas foram mortas, violadas, torturadas e humilhadas. As perversões nos porões da ditadura foram o exercício do mais alto nível de misoginia. O acesso ao corpo da mulher, nas torturas, foi experimentado por homens que expressaram toda a força do patriarcado, todo ódio pela insubmissão daquelas mulheres que ousaram questionar o lugar que a sociedade lhes reservou.
“Sobe depressa, Miss Brasil”, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ’40 dias’ do parto. – Rose Nogueira. ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
A luta pelas liberdades democráticas unificou todas estas mulheres: pobres, ricas, brasileiras, estrangeiras, pretas, brancas, estudantes universitárias, costureiras. Todas em prol de um objetivo comum: o fim da ditadura, a redemocratização do país, o direito à liberdade. Devemos exaltar todas essas mulheres, lembrar de suas lutas, conhecer seus nomes, aprender com suas histórias, mas não podemos esquecer, entretanto, que haviam mulheres nas Forças Armadas, mulheres que torturaram outras mulheres, que perseguiram, denunciaram, que se alinhavam com a repressão fascista e a exploração porque eram suas bandeiras. A extrema direita no poder coloca a luta mais às claras: é classe contra classe. As camadas médias não puderam se abster do enfrentamento ao Regime Militar porque também eram vítimas dele.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. – IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
O feminismo no Brasil ganhou uma nova força, após a redemocratização, ganhou cara, ganhou adeptas, multiplicou-se em vertentes, pois a democracia burguesa e sua ideia formal de liberdade, de igualdade, de respeito às diferenças faz parecer que todas as lutas são iguais. Não é assim. É preciso enxergar como as mulheres estão sendo chamadas novamente às pautas conservadoras. As mulheres trabalhadoras, as costureiras, as trabalhadoras domésticas remuneradas e não-remumeradas, as operárias, que chegam em casa após um dia exaustivo de trabalho e se deparam com o feminismo liberal em suas mais variadas formas (feminismo negro, corporativo, do faça acontecer, do liberalismo) e o rechaçam. É o feminismo da mídia. A negação desse feminismo por essas mulheres, entretanto, é esvaziada: elas acham que ele é o único feminismo, um feminismo que não dá conta de suas pautas, de suas necessidades cotidianas, não apresenta resposta para as mazelas sociais que as atingem. Um feminismo que simplesmente “subverte” os padrões sociais há muito estabelecidos. Sabemos que extratos significativos da classe trabalhadora brasileira são conservadores no que tange aos costumes, aos valores, à moral, etc.
Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: “Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos”. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: “Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia”. – MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Ao mesmo tempo, o discurso feminista liberal conquista corações e mentes na esquerda contemporânea. Vemos muitas mulheres influenciadas pela sororidade, pelo empoderamento, pelo faça acontecer, pela representatividade, etc. Estamos deixando que, mais uma vez, a extrema direita manipule a classe trabalhadora e use o poder das mulheres. O grupo Mulheres com Bolsonaro, no Facebook, em 2018, tinha mais de 300 mil seguidoras. Pesquisas à época da eleição de 2018, indicaram que, de cada 10 eleitores de Bolsonaro, duas eram mulheres. A popularidade do (des)governo já caiu bastante, por isso é preciso disputar as mulheres trabalhadoras para um feminismo que objetive verdadeiramente a transformação. E esse não é o feminismo que empodera fazendo maquiagem para negras, colocando mulheres nas esferas de poder e fazendo filmes com protagonistas mulheres.
Nesse ponto, nós, feministas marxistas, nos encontramos diante de uma dupla tarefa: combater a influência do feminismo liberal nas organizações de mulheres de esquerda e chamar as mulheres trabalhadores de base para o feminismo, um feminismo radicalmente anticapitalista, antirracista e internacionalista, pois só a superação da sociedade capitalista pode dar uma resposta à liberdade das mulheres, dos homens e de todos os seres humanos.
Talvez, leitora e leitor, você se pergunte como fazer isso. O avanço da extrema direita, as contrarreformas já consolidadas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro, a ameaça à previdência pública, tudo isso responde novamente à necessidade do capital em superexplorar a classe trabalhadora. Mais uma vez, o peso dessas ações cai nas costas das mulheres trabalhadoras. É papel das feministas retomar as raízes da luta histórica das mulheres, compreendendo que o feminismo que não questiona a estrutura da sociedade e não objetiva superar a diversas formas de exploração/opressão e que, por isso, não quer mudar o estado das coisas não nos serve. Aprendamos com todas as mulheres que viveram o regime militar, com todas elas.
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado — seio, vagina, ouvido — e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina […] passavam a mão. – MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
REFERÊNCIAS
MERLINO, Tatiana. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.