‘Jagunço da leis’
III - ASSÉDIO JUDICIAL
por Nayara Felizardo /The Intercept
- - -
Em Sergipe, o processo movido pelo desembargador Edson Ulisses de Melo, do tribunal de justiça do estado, conseguiu a condenação do jornalista Cristian Góes por um texto que sequer citava seu nome ou sua profissão. Antes de recorrer ao Supremo Tribunal Federal, o STF, Góes foi condenado cível e criminalmente por uma crônica que escreveu em 2012, em sua coluna em um site local. O detalhe é que ele não fez nenhuma reportagem citando o magistrado. A condenação foi por causa de um texto ficcional, escrito em primeira pessoa.
A crônica “Eu, o coronel em mim” falava sobre um coronel da República Velha que estava vivo em plena democracia e ficava contrariado ao ver tamanha liberdade de greve e de manifestações. “Esse personagem que eu criei não aceitava que as pessoas tivessem direitos”, me contou o jornalista por telefone.
O que mais irritou o desembargador Melo parece ter sido esse trecho: “Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo”. Para o magistrado, casado com a irmã do então governador de Sergipe Marcelo Déda, do PT, a expressão “jagunço das leis” fazia referência a ele.
Na crônica, o coronel não era governador, nem havia menção à data ou ao local em que a história se passava. Mesmo assim, em 2013, Góes foi condenado em primeira instância a sete meses e 16 dias de prisão pelo texto ficcional. A pena foi convertida em prestação de serviço à comunidade. Para cumpri-la, Góes me disse que precisou suspender o doutorado em Comunicação que cursava na Universidade Federal de Minas Gerais.
No ano seguinte, em 2014, o jornalista foi condenado na esfera cível a pagar R$ 25 mil de indenização por danos morais ao desembargador. O juiz Aldo de Albuquerque Mello escreveu em sua sentença que “o valor do dano moral deveria ser bastante superior ao fixado acima, tendo em vista a gravidade da conduta”. Para o magistrado, o jornalista “denegriu de forma gratuita e desnecessária” não só o desembargador, “mas também a imagem e a credibilidade do próprio Poder Judiciário”.
Ao dizer que Góes havia agredido a imagem de toda uma categoria somente porque um de seus membros se sentiu ofendido, o juiz sergipano deixou escapar o que está por trás desse tipo de ação contra jornalistas e transmitiu o recado que vale para qualquer um de nós: não mexam com o Judiciário.
Góes também recorreu dessa condenação por danos morais, mas perdeu em todas as instâncias. Com a correção monetária, me disse, o valor da indenização subiu para R$ 60 mil. “Eu não tinha esse dinheiro. Tive que fazer um empréstimo, que pago até hoje. Parcelei em 60 meses e ainda faltam mais de 20″.
Enquanto o jornalista enfrenta dificuldades financeiras para pagar o empréstimo, o desembargador Melo acumula poder. Em fevereiro de 2021, assumiu a vaga de presidente do tribunal e, curiosamente, anunciou um prêmio de jornalismo. Lançado quatro meses depois, exatamente no Dia da Imprensa, o magistrado disse que era uma “forma de valorizar os profissionais e disseminar notícias sobre o trabalho do Judiciário em Sergipe”. Oferecer prêmios em dinheiro para estimular jornalistas a falarem bem dos magistrados, convenhamos, é uma forma mais amigável de calar a imprensa.
Por meio da assessoria de imprensa, o desembargador Melo disse que, para ele, o caso está encerrado “após o trânsito em julgado das ações referidas, e o posicionamento do Judiciário sobre a questão posta, com garantia plena do contraditório e da ampla defesa”. Já o juiz Albuquerque disse que as razões da sua decisão “estão descritas na própria sentença” e não pode “emitir pronunciamento sobre o processo, que inclusive já transitou em julgado”.