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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Mar23

O bom combate: recordando os advogados que resistiram à ditadura militar

Talis Andrade

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Por Danilo Pereira Lima /ConJur

 

No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política" [1].

Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.

Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.

Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].

As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.

De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.

Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido" [5].

Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados" [6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.

- - -

[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.

[3] Sobre o brutal assassinato de David Capistrano, ver: Comissão da Verdade do estado de São Paulo. Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/david-capistrano-da-costa. Acessado em: 24/3/2023.

[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.

[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.

[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

11
Jul21

Wassef, Advogado da família Bolsonaro, sequestrou jornalista do Valor Econômico

Talis Andrade

Image

Foi um caso de sequestro. Revelou Luísa Martins em solidariedade a colega jornalista Juliana Dal Piva, ameaçada de morte pelo advogado Frederick Wassef da família Bolsonaro e coiteiro de bandidos como Fabrício Queiroz. 

Embora assustador, o comportamento de Wassef infelizmente não surpreende: em 1º de outubro de 2019, ele foi até a porta do STF e me coagiu a entrar no carro dele para reclamar de uma matéria. Não é fato isolado. Minha solidariedade à incrível repórter

A palavra sequestro pode ter vários significados, dentre os quais se destaca:

  • quando se refere a uma pessoa, trata-se do ato de privar ilicitamente uma pessoa de sua liberdade, mantendo-a em local do qual ela não possa livremente sair. 

Advogado de porta de palácio e inimigo das jornalistas

 

 

 

30
Mar21

A lava jato foi uma operação contra a advocacia

Talis Andrade

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Tornou-se público na última semana que a Lava Jato também interceptou, analisou e manteve em segredo diálogos entre ex-diretor da Odebrecht e seu advogado, o professor Gustavo Badaró.

por Pedro Martinez /Migalhas

Construída através de ilegalidades e distorções do sistema de Justiça, a Operação Lava Jato, além dos adversários políticos, tinha a advocacia e o direito de defesa como alvos.

No julgamento do habeas corpus 164.493, realizado pela 2ª turma do Supremo Tribunal Federal na última terça-feira, vários foram os momentos em que ministros relembraram abusos da Lava Jato contra as defesas constituídas. Um dos fatores preponderantes para o reconhecimento da suspeição do ex-Juiz e ex-ministro de Bolsonaro, Sergio Moro, foi a interceptação ilegal realizada em todo o escritório da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva encabeçada por Cristiano Zanin.

Tornou-se público na última semana que a Lava Jato também interceptou, analisou e manteve em segredo diálogos entre ex-diretor da Odebrecht e seu advogado, o professor Gustavo Badaró. O fato, que se deu em procedimento próprio até então desconhecido para as defesas, só foi revelado diante do vazamento de mensagens trocadas entre os procuradores e Moro. Ficou nítido que os acusadores tiveram acesso às estratégias das defesas – da mesma forma que ocorreu em relação a Lula.

A postura belicosa contra a advocacia também pôde ser observada em algumas audiências presididas por Sergio Moro. Cumprindo o papel anômalo de Juiz Acusador, evidenciado pela parceria mantida com o Ministério Público Federal conforme mensagens reveladas por reportagens e procedimentos judiciais, Moro tratou diversos advogados com imenso desrespeito, como os mestres José Roberto Batochio e Juarez Cirino dos Santos, cerceando o exercício da ampla defesa. Muito além da mera confusão entre advogado e cliente, o que esteve em pauta na Lava Jato foi um projeto de erosão do direito de defesa e de enfraquecimento institucional da advocacia.

Mais do que meramente conhecidos, hoje são reconhecidos judicialmente pela Corte Constitucional os diversos expedientes ilegais utilizados pela Operação Lava Jato para suprimir o direito de defesa, como vazamentos seletivos à imprensa, conduções coercitivas de investigados, prisões cautelares com o objetivo de obtenção de colaborações premiadas, ataques diretos ao princípio da presunção de inocência.

Defensora da aplicação das leis, a advocacia certamente seria adversária e pedra no sapato de autoridades que insistiam em não observar o devido processo legal, inclusive em virtude de interesses político-eleitorais de algumas delas.

A Força-Tarefa da Lava Jato foi oficialmente extinta em fevereiro, mas o reconhecimento da incompetência e suspeição de Moro em relação a Lula neste mês simboliza a ruína da Operação por razões que corajosas advogadas e advogados bradam desde o início desse que foi o maior escândalo judicial do país.

“O advogado é indispensável à administração da justiça” e ao desenvolvimento da democracia. Defender direitos e garantias nunca será inconveniente e a Advocacia brasileira seguirá atenta e forte para cumprir seu papel.

Ricardo Welbert sobre juízes que nunca atendem a

 

15
Fev21

E eis que o autoritarismo dá as caras

Talis Andrade

Resultado de imagem para "Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil"

 

Por Rafael Albuquerque /ConJur

- - -

Acabo de ler a coletânea de artigos "Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil", indicação de um advogado que muito me inspira e diariamente me ensina. Alguns relatos chegam a encher de lágrimas os olhos de há muito incrédulos com tamanha barbárie.

Como bom idealista que sou e também entusiasta da liberdade, meu tema de Direito Processual predileto é o Habeas Corpus. Isso rendeu-me algumas boas horas de estudo sobre as hipóteses de cabimento, sua história e, particularmente, a restrição de seu uso com a entrada em vigor do Ato Institucional nº 5.

O texto do ato pode passar despercebido, embora contenha fortes indícios e explicações das finalidades obscuras almejadas em suas linhas. Não serei enfadonho com transcrições de dispositivos legais e nem reconstruindo as origens do remédio constitucional; consignarei apenas o cabimento de seu manejo em toda e qualquer situação em que a liberdade ambulatorial estiver violada, ou ameaçada de ser violada, direta ou indiretamente.

Por mais que soe óbvio, nem sempre foi assim, e a constatação acima possui reflexos relevantes na prática forense. A mera ameaça de violação à liberdade ambulatorial engendra um possível cenário de impetração de Habeas Corpus até mesmo quando o réu responder o processo em liberdade e a ameaça se refira à utilização de uma prova ilícita, por exemplo.

A jurisprudência, no entanto, tende a perfilhar outro caminho. O que se observa mais frequentemente é o indeferimento da petição inicial do writ (vulgarmente substituída pela expressão "não conheço do writ", como se de espécie recursal se tratasse) por meio da construção de uma jurisprudência defensiva quase impenetrável, consubstanciada no "não cabimento de Habeas Corpus substitutivo de recurso" e no enunciado de súmula nº 691/STF ("Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de Habeas Corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar").

O primeiro posicionamento jurisprudencial limita consideravelmente o manejo do remédio constitucional. É comum no sistema processual brasileiro que cada pronunciamento judicial possua uma via impugnativa correspondente. Dessa forma, um pedido de progressão de regime indeferido em primeiro grau não poderia ser objeto de Habeas Corpus porque é cabível o recurso de agravo em execução cujo processamento é muito mais demorado que o de um Habeas?

Além do mais, um Habeas Corpus não pode substituir um recurso, sobretudo porque ele não detém essa natureza jurídica; é uma ação autônoma de impugnação.

Quanto ao enunciado de súmula mencionado, note-se que uma decisão monocrática proferida por um relator é tão passível de ilegalidade quanto qualquer outro pronunciamento judicial. E se o indeferimento da liminar for indevido, cabe, sim, o manejo do Habeas Corpus.

O mais grave aspecto que reputo nas tendências jurisprudenciais da admissibilidade do Habeas Corpus é justamente a imposição de restrição onde a Constituição da República não pôs. A única restrição ao uso da ação impugnatória é em caso de prisão administrativa militar e só o é porque prevista do artigo 142, §2º da Lei Fundamental; lei nenhuma, e muito menos os tribunais, pode limitar a eficácia de norma constitucional, sob pena de subverter a supremacia da Constituição.

Ouvi uma vez um membro do Ministério Público dizer que o Habeas Corpus era um instrumento processual que havia sido deturpado. Buscar a liberdade de um preso por um ato que se entende ilegal via Habeas Corpus agora é deturpar o instrumento que, por excelência, visa à garantia da liberdade. Tempos estranhos.

Penso que isso é fruto de um fenômeno maior: o esvaziamento do devido processo em favor da eficiência processual. Permitir a prescrição de um crime? "Inaceitável essa impunidade", bradam. Respeitar a legalidade estrita? "Só favorece os ricos", choramingam. E deixar um cidadão discutir judicialmente ilegalidade por uma via célere? "Quem não deve não teme", dizem por aí. Todas as garantias viraram obstáculos à consecução da eficiência. No HC 176.473/RR, aliás, o ministro relator colacionou em seu voto a transcrição da exposição de motivos da Lei nº 11.596/07, que reflete bem o espírito desse tempo: "Pretende-se evitar, com efeito, a interposição de recursos meramente protelatórios às instâncias superiores", pois parece ter-se criado para o particular o dever de se resignar diante de sua condenação e não recorrer, mesmo que improvável sua absolvição. Eu posso e devo discutir questões jurídicas dentro da institucionalidade democrática, ou então já não vivemos numa democracia.

E, assim, imergimos cada vez mais na areia movediça da supressão das liberdades.

Interessante é que, em 1968, quando da edição do AI-5, que suspendeu o uso do Habeas Corpus [1], a justificativa era de que "atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la". Hoje, o pretexto de limitação da garantia do Habeas Corpus é a deturpação do processo penal, a finalidade protelatória dos instrumentos processuais e o assoberbamento do Poder Judiciário.

Veja que a premissa de que partiu o AI-5 e a atual — relativizar garantias constitucionais, visto que "mal usadas" (sic) pelos particulares, em especial "os poderosos" (sic) — são essencialmente as mesmas. O problema são os instrumentos jurídicos...

O ponto central é que não haverá uma ruptura institucional tão evidente quanto a do Dia da Mentira de 1964. O autoritarismo já está aí na recalcitrância em reconhecer nulidades, na jurisprudência defensiva em relação ao Habeas Corpus e na promiscuidade entre acusação e defesa. Parafraseando Jeanne Hughes em coluna no jornal Le Monde Diplomatique [2], é como se todos nós, após uma noite inteira de comemoração pela Constituição cidadã, houvéssemos acordado na manhã seguinte e notássemos que o autoritarismo servia o café. Só que essa ressaca já dura mais de 30 anos.

Essa eficiência supressora das garantias não é um fim em si mesma. Luís Roberto Barroso explica em um de seus livros que havia iniciado "intensa repressão, disseminada e anárquica, aos adversários da véspera, encambulhados todos sob o rótulo de 'subversivos ou corruptos'" [3].Conquanto a frase servira para caracterizar os primeiros anos da ditadura militar, o presente brasileiro não é diferente: tudo vale na caça à corrupção. Como bem observou diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris, em artigo publicado no The New York Times, também comentado em matéria da ConJur"os procuradores violaram o devido processo legal sem reduzir a corrupção." [4]

A percepção de muitos, contudo, ainda pende para a defesa da operação a partir de vieses maquiavélicos. O colunista Carlos Alberto Sardenberg, em artigo publicado pelo O Globo [5], reconheceu que "os dois (Sergio Moro e Deltan Dallagnol) não agiram pelas vias ortodoxas" e explica que essas vias "são os caminhos tortuosos para anular processos, não pela inocência dos réus, mas pelo tempo de prescrição e supostos equívocos formais". Mal sabe ele que a dita via ortodoxa chama-se Constituição, e ela não é apenas uma ninharia.

O jornalista teve ainda o arrojo de perguntar o que era pior: "o ativismo da Lava-Jato ou os conchavos brasilienses entre políticos, advogados e juízes?". Abstendo-me de comentar o imenso desrespeito exprimido pelo Judiciário e pelo Legislativo, digo que ambos são igualmente ruins. Não existe mal necessário. Necessário é acabar com o mal, que é esse autoritarismo brasileiro hereditário.

 


[1] "Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. BRASIL. Ato Institucional nº 5 de 13 de dez. de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências". Art. 10. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 10.02.2021.

[2] HUGHES, Jeanne. Fantasmas em torno de uma “ofensiva chinesa” nas Nações Unidas. Le Monde Diplomatique, São Paulo, fev. de 2021.

[3] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 31 e 32.

[4] "Lava jato" é o maior escândalo judicial da história brasileira, diz analista. Consultor Jurídico, 09 de fev. de 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-fev-09/lava-jato-maior-escandalo-judicial-historia-analista>. Acesso em: 09.02.2021.

[5] SARDENBERG, Carlos Alberto. A velha política leva tudo. O Globo. Rio de Janeiro, 06 de fev. de 2021. Artigos.

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