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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

06
Jun23

Apesar de abusos corporativismo predatório lava jato ainda é dominante no MPF

Talis Andrade

 

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MPF "não aceita perder privilégios nem espaços de atuação"

 

Por Sérgio Rodas /ConJur

Apesar de todos os abusos e ilegalidades cometidos por procuradores — além de magistrados e policiais —, a "lava jato" ainda é hegemônica no Ministério Público Federal. Por isso o chefe da autodenominada força-tarefa do caso, Deltan Dallagnol, e outros que atuaram no caso não foram punidos, com raríssimas exceções. É o que afirma o cientista político Rafael Rodrigues Viegas.

Para o pesquisador, esse fator é importante para o "corporativismo predatório" predominante no MPF, "que não aceita retrocessos, não aceita perder privilégios nem espaços de atuação". "Às vezes parece que Dallagnol pode tudo. Uns procuradores podem mais do que outros. Por muito menos, procuradores foram punidos por críticas feitas à 'lava jato'", aponta.

Viegas lança nesta terça-feira (6/6) o livro Caminhos da política no Ministério Público Federal. A obra é fruto de sua tese de doutorado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas. Ele também é mestre em Ciência Política e bacharel em Direito.

No livro, Viegas mostra como a política é exercida no MPF. Um dos principais meios para isso são as designações para cargos de direção ou em forças-tarefa. Como não há critérios objetivos para as designações, elas são influenciadas pelas relações pessoais e acabam beneficiando aliados.

O cientista político destaca o papel da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Já que integrantes do MP são proibidos de se filiar a partidos e disputar eleições a cargos eletivos sem deixar a carreira, a associação acabou se tornando o caminho principal para promotores e procuradores participarem da vida política.

A ANPR, uma entidade privada, usa a estrutura de comunicação do MPF para veicular a defesa de seus interesses. E promove o assessoramento de parlamentares, atividade vedada a procuradores, ressalta o cientista político.

A associação também é responsável pela elaboração da lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República. A prática é resultado de um "processo de oligarquização do Ministério Público Federal" e representa interesses privados, diz Viegas.

O pesquisador menciona no livro que, nos últimos anos, o MPF se voltou para o combate à corrupção, em detrimento de outras atribuições, como a defesa de direitos coletivos em áreas como saúde e educação. Esse foco, segundo ele, se deve à agenda de lideranças da instituição e não respeita seus objetivos oficiais, estabelecidos na Constituição e na Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar 75/1993).

A priorização do combate à corrupção foi usada por Dallagnol e pelo ex-juiz Sergio Moro para se elegerem, respectivamente, deputado federal e senador pelo Paraná — o ex-procurador teve seu mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para evitar o uso político das instituições de Justiça, Viegas defende a imposição de quarentena para os servidores dessas carreiras se candidatarem a cargos eletivos.

O livro Caminhos da Política no Ministério Público Federal será lançado nesta terça, às 10h30, durante o Encontro Brasileiro de Administração Pública. O evento acontece no IDP Norte, que fica na SGAN 609, Módulo A, Asa Norte, em Brasília.

 

Sérgio Rodas entrevista Rafael Viegas

 

 

ConJur — Qual é o papel que as designações exercem na política interna do MPF?
Rafael Viegas — A questão das designações é importante porque as análises sobre o Ministério Público e o Judiciário são feitas considerando muito a posição dos titulares. Ou seja, os procuradores da República que são titulares nas procuradorias. Mas existe todo um desenho institucional que faz com que algumas posições não sejam ocupadas por titulares. Dou o exemplo das forças-tarefa, como a da "lava jato", que são compostas por procuradores designados. Eu pedi ao MPF informações sobre o número de procuradores designados, mas o requerimento foi negado. Então fiz um quadro prevendo as possibilidades de designações.

O interessante é que as designações são feitas pelos ocupantes de posições superiores, politicamente relevantes. Existe toda uma luta para ocupar essas posições politicamente relevantes. Então não é um ambiente neutro. Pelo contrário, é um ambiente altamente politizado. Ocupar essas posições politicamente relevantes tem a ver com a agenda do Ministério Público, com o direcionamento de recursos e iniciativas de procuradores. Por exemplo, decide-se para quem oferecer acordos cíveis ou criminais. Também são decididas questões de carreira, promoções, concursos públicos.

O que separa os que são designados dos que não são? É a técnica propriamente dita ou a política interna, que tem a ver com a governabilidade? Vamos fazer uma comparação com ministérios do governo federal. As lotações acomodam interesses e disputas internas de poder. Por isso eu chamo a atenção de três aspectos para pensar as designações: o papel das designações em relação à cooptação; a autoproteção; e uma interdependência de privilégios. Em algum momento, os designados, atendendo aos superiores, que são seus designadores, pensam em atender aos seus interesses. Essa é uma lógica que foge da lógica típica e ideal do funcionamento da burocracia.

O que é central é o que as designações têm a ver com a governabilidade e com a disputa de poder, considerando que esse não é um ambiente neutro e que a designações cumprem um papel na governabilidade do Ministério Público Federal. Como não há critérios objetivos para as designações elas são influenciadas pelas relações pessoais, relações de lealdade, não propriamente a técnica. O exemplo mais claro disso é a designação de Diogo Castor de Mattos para a força-tarefa da "lava jato". Ele tinha acabado de entrar no Ministério Público Federal, fazia um ano e dois meses. Era alguém de confiança, até porque tinha sido estagiário do MPF antes, mas de confiança no sentido pessoal, que trazia com ele relações pessoais e de lealdade. Ou seja, ele não faria nada para desafiar as lideranças que o estavam designando. É importante pensar que as designações cumprem esse papel dentro de uma burocracia projetada exatamente para o controle da administração pública. Uma burocracia projetada para evitar que relações pessoais e de lealdade se sobreponham na burocracia estatal. E há indícios claros de que essas relações pessoais e de lealdade se sobrepõem no próprio MPF, seja na designação da "lava jato", de Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos) e de outras posições, inclusive na cúpula, como as Corregedorias.

 

ConJur — Seria mais benéfico criar regras mais detalhadas para as designações, de forma a diminuir a margem de discricionariedade?
Rafael Viegas — Esse é um dos pontos mais importantes para se pensar em mudanças no desenho do Ministério Público. Hoje existe uma ampla discricionariedade, ponto que diferentes autores reforçam, como Fábio Kerche. Eu penso a discricionariedade como esse amplo espaço de ação, não necessariamente previsto pela legislação. Pelo contrário: os procuradores exploram esse espaço, essa margem de anomia, ou seja, de falta de regras, para fazer as designações para posições como as dos Gaecos e para a criação de órgãos. No Ministério Público, há a criação de órgãos por portarias. É uma burocracia que tem autonomia para criar órgãos, para fazer a lotação de procuradores específicos. São aspectos que estão fora do design formal previsto na Lei Orgânica do Ministério Público da União. A Lei Orgânica do MPU não consegue prever todas as posições. O que faz sentido, porque é uma burocracia dinâmica, não pode ficar engessada do ponto de vista formal.

Mas o que acontece é que existem várias brechas, que são exploradas com a criação de setores. Por exemplo, o Ministério Público de Minas Gerais tem uma secretaria internacional. O MP-MG não tem atribuição internacional, mas em Minas há uma atividade importantíssima, que é a mineração, e essa é uma atividade internacional. A criação da secretaria internacional é uma posição política, os designados certamente não vão contrariar os interesses da administração naquele momento.

Criar critérios legais para a escolha de procuradores que vão ocupar essas posições é fundamental. Critérios como antiguidade, em relação à formação em determinados aspectos. É importante criar critérios objetivos para tentar reduzir a discricionariedade das designações e, com isso, o espaço para que relações nada republicanas apareçam.

 

ConJur — O senhor afirma no livro que o modelo institucional do MPF permite que "procuradores políticos", orientando-se por suas estratégias políticas de carreira e lideranças corporativas, persigam objetivos não oficiais (não previstos nos estatutos jurídicos) em favor da defesa de interesses corporativos, inclusive contra o sistema político e agentes específicos. Que mudanças poderiam ser feitas para reduzir essas atividades?
Rafael Viegas — Diante de tudo o que vimos nos últimos anos, é fundamental pensar em uma mudança no recrutamento para as carreiras do MPF. É preciso pensar em mudanças no concurso público, na formação dos procuradores da República e no controle de suas atividades. Os conselhos deturparam a reforma constitucional (feita pela Emenda Constitucional 45/2004) e elitizaram ainda mais os concursos. Ou seja, o perfil dos procuradores é elitizado.

O CNMP tem uma maioria de integrantes da própria carreira do Ministério Público. A literatura nacional e internacional aponta que esse modelo de conselho favorece a autonomia em detrimento do controle. A autonomia é necessária para que uma burocracia exerça controle da administração pública. Porém, em uma democracia ninguém pode estar alheio ao controle, seja o chefe do Executivo, sejam integrantes do Ministério Público. A questão é que os mecanismos de controle existem, mas são acionados estrategicamente. Diante de tudo o que vimos de imoralidade e ilegalidades na "lava jato", as consequências foram mínimas. Por outro lado, procuradores foram punidos por criticar a "lava jato". Entender essa dimensão corporativa é central para entender o funcionamento do MP.

 

ConJur — O MPF, especialmente depois da “lava jato”, concentrou suas atividades — e a divulgação de suas atividades — no combate à corrupção. Por que essa escolha? É legítimo que o MPF escolha focos de atuação, em detrimento de outros que também são suas atribuições, como a defesa dos direitos coletivos?
Rafael Viegas — Esse é um dos temas mais importantes relacionados ao MP. O Ministério Público, como um todo, tem relevantes atribuições em diversas áreas: saúde pública, educação, meio ambiente, habitação e urbanismo, infância e juventude. Mas o que observamos nos últimos anos é que o MPF praticamente se voltou para o combate à corrupção. Isso é observável empiricamente a partir da sua comunicação oficial e dos relatórios do CNMP, que mostram os números de instauração de inquéritos civis e de procedimentos investigatórios criminais, centrando cada vez mais nesta última área de atuação. Coincidentemente, é um contexto político específico, de reação ao governo. Não se trata apenas de uma questão de autonomia. A lista tríplice sem dúvida tem a ver com isso, pois atende a interesses de lideranças corporativas. Mas aqui eu estou falando de uma agenda, como essa organização pública se volta para uma área de atuação em detrimento de outras, o que não atende aos objetivos oficiais do MP que estão descritos na Constituição Federal. Essa agenda também é midiática. É só lembrar a dimensão midiática da "lava jato".

Por isso é importante pensar como burocratas atendem a incentivos perversos, ou seja, que não deveriam orientar a burocracia. Quando digo "incentivos perversos", estou me referindo ao populismo penal. A "lava jato" se desenvolveu em um contexto muito específico, de um aprendizado institucional depois do mensalão, da Ação Penal 470. Vários aspectos foram aprimorados de um caso para o outro. O principal deles é a comunicação, uma ferramenta fundamental na "lava jato". É só ver a atuação dos procuradores nas redes sociais, confundindo a posição que eles ocupam no Estado com a opinião pessoal deles, em relação a vários temas. Os procuradores opinam sobre praticamente tudo, quem vai ser nomeado para o governo, decisões do Supremo. Isso é muito problemático e precisa de regulamentação.

 

ConJur — O MPF vem ampliando a sua atuação política com o passar dos anos. Houve dois principais exemplos na última década. Em 2013, eles agiram para transformar os protestos de junho, que começaram contra o aumento das tarifas de transporte e cresceram para uma insatisfação com os serviços públicos, em um movimento contra a corrupção, personificada na PEC 37, que limitava o poder de o MP investigar. Posteriormente, lavajatistas fizeram ampla campanha pelas 10 medidas contra a corrupção. Essa atuação política condiz com as atribuições do MPF?
Rafael Viegas — De forma alguma, mas ela se faz presente desde antes da Constituição de 1988. Esse é um traço característico no MPF: a disputa por espaços de poder, por espaços de ação, para se constituir como um ator relevante no cenário político e de funcionamento do Estado. Então, a corporação luta para aprovar projetos de leis que ampliem a atuação do Ministério Público em diversas áreas, seja na defesa de direitos, seja criminalizando condutas, o que aumenta a sua competência penal. E o espaço de atuação só aumenta, sem revogação de competências anteriormente conquistadas.

 

ConJur — A ANPR é uma instituição privada — portanto, sem mecanismos de controle social —, mas tem forte influência nos rumos do MPF. Como uma instituição privada tem tanta influência nos rumos de uma instituição pública?
Rafael Viegas — Na defesa da minha tese de doutorado, me perguntaram o que diferencia a ANPR de outras associações de classe. Um ponto central é que a ANPR é uma associação de procuradores da República, o alto escalão da burocracia de Estado, que exerce o monopólio da ação penal. E existe um espaço de ausência de regras que é explorado para que esse tipo de entidade privada opere dentro do Estado. Há uma tentativa de constantemente legitimar o fato de a ANPR atuar dentro do Estado, como se ela representasse não apenas os interesses dos procuradores da República, mas atuasse para que o Ministério Público funcione adequadamente, o que no final traria um retorno para a sociedade. Na realidade, é uma associação que se volta em defesa dos interesses dos procuradores da República e, eventualmente, de interesses que a ANPR possa representar.

Aqui há um grande risco, porque a ANPR busca se legitimar enquanto associação perante outras instituições e a sociedade via canais de comunicação e servidores do MPF, que ela operacionaliza profissionalmente. Ou seja: a ANPR, uma associação privada, usa servidores públicos, pagos pelo erário, para fazer sua comunicação. É uma simbiose bastante complicada. Nessa atuação, a ANPR também usa informações privilegiadas, já que estamos falando de procuradores da República que atuam em toda a cadeia alimentar de poder. Tudo isso ocorre por uma exploração de brechas tanto da Constituição quanto da Lei Orgânica do Ministério Público da União. É um espaço de anomia, de falta de regras que coloquem limites para esse tipo de atuação.

A ANPR não é um partido político stricto sensu, os seus associados só podem ser os procuradores da República. Mas ela se tornou o principal caminho da política no Ministério Público Federal. É como se fosse uma válvula de escape da vedação a integrantes do MP se filiarem a partidos políticos e advogarem, como era possível antes da Constituição Federal de 1988.

 

ConJur — Como é a atuação da ANPR junto ao Congresso Nacional?
Rafael Viegas — As lideranças que atuam na ANPR visam ao controle do Ministério Público Federal, a escolher o procurador-geral da República por meio da lista tríplice e a ocupar posições politicamente relevantes nas Câmaras de Coordenação e Revisão, na Corregedoria, no Conselho Superior do Ministério Público. Porém, esse controle não é feito apenas sobre o MPF. A ANPR exerce um controle externo do Congresso Nacional. Monitora as ações dos parlamentares, as medidas que são propostas, as tramitações legislativas, as audiências públicas. A associação tenta se fazer presente no debate político nacional, embora não tenha essa finalidade. Isso vai além dos estatutos jurídicos que definem o funcionamento do Ministério Público e da ANPR, pois não está previsto na Lei Orgânica do MPU nem no estatuto social da associação.

Esse controle externo sobre o Congresso Nacional é exercido principalmente por meio de notas técnicas. Essas notas técnicas mais se assemelham a um tipo de assessoramento de parlamentares específicos, que servem de ponte entre o MP e o Congresso Nacional. As notas técnicas visam convencer não apenas parlamentares específicos, mas também a opinião pública em relação a temas referentes funcionamento do Estado e da democracia brasileira. Esse é um tipo de assessoramento vedado pela Constituição e pela Lei Orgânica do MPU, mas que ocorre pela falta de regras em relação à ANPR.

 

ConJur — O senhor aponta que todos os escolhidos para a PGR com base na lista tríplice da ANPR atuaram nesta associação privada. A lista tríplice é uma forma de emplacar interesses privados no comando de uma instituição pública, o MPU?
Rafael Viegas — A lista tríplice elaborada pela ANPR é resultado de um processo de oligarquização do Ministério Público Federal. É um fenômeno nada democrático, nada republicano. Os procuradores-gerais da República escolhidos a partir da lista tríplice ocuparam posições políticas relevantes na ANPR e em órgãos do MPF. Muitas vezes, foram designados para essas funções pelos chefes anteriores. Com isso, é possível pensar em uma série de conhecimentos que são adquiridos a partir dessas designações para posições políticas relevantes — como funciona o sistema político e os tribunais superiores, por exemplo.

A lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República não está prevista na Constituição. Essa foi uma derrota da ANPR na Assembleia Nacional Constituinte, que a associação vem tentando reverter desde então. A lista tríplice está prevista na Constituição para procuradores-gerais de Justiça dos estados, mas não para o procurador-geral da República. E faz sentido que não esteja. Afinal, ele é o chefe do Ministério Público da União, que tem quatro ramos, o federal, o do trabalho, o militar, e o do Distrito Federal. O chefe do MPU também preside o Conselho Nacional do Ministério Público, que exerce controle sobre todo o Ministério Público. Além disso, os procuradores da República atuam em toda a cadeia alimentar de poder na federação. É bastante poder, capaz de afetar não a apenas a governabilidade de um estado, mas da União.

A lista tríplice representa interesses privados. Esses interesses podem ser dos procuradores ou ir além deles, uma vez que a ANPR busca se legitimar perante outras instituições e a sociedade. Isso pode se materializar na lista tríplice, tendo em vista a lógica interna de governabilidade e de sucessão no poder.

 

ConJur — O senhor aponta no livro que o investimento em comunicação do MPF e da ANPR cresceu bastante nas últimas duas décadas, especialmente após a "lava jato". Isso inclui tanto contas em redes sociais como proximidade com jornalistas. Qual é o limite adequado da comunicação de um órgão público? Quando a comunicação deixa de ser uma prestação de contas à sociedade e se transforma em propaganda e tentativa de influenciar a opinião pública?
Rafael Viegas — Isso é algo muito sutil. Mas quando se observa atentamente alguns eventos como a "lava jato", principalmente ao longo do tempo, com um certo afastamento, fica mais evidente como funciona esse processo. A comunicação é uma prioridade para as lideranças do Ministério Público e da ANPR. Tanto que as redes sociais são tidas como um critério de credibilidade para os procuradores, e o investimento nelas tem o fim de moldar a opinião pública, de se legitimar perante outras instituições.

Nunca se deve partir do pressuposto da neutralidade das informações que são colocadas no portal oficial dessa burocracia, muito menos nos perfis dos procuradores, que estão fazendo política e que estão buscando se legitimar perante a sociedade. Isso aparece em outros trabalhos meus sobre a comunicação do Ministério Público nas redes sociais e sobre a atuação do MPF no Twitter. Em momentos específicos, como no auge da "lava jato", no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nas eleições de 2018, houve picos de informações e de temas específicos que alimentavam a opinião pública. A rede de interação do MPF no Twitter alimentou segmentos específicos da extrema-direita alinhada a Jair Bolsonaro, tanto quando era candidato quanto quando era presidente. É um ponto muito crítico.

As plataformas de redes sociais são privadas. Em uma plataforma privada, que tem viés político e social, o Ministério Público, um órgão que exerce o monopólio da ação penal, se comporta como um ator comum, como uma pessoa que abre uma conta nessa plataforma privada. Sem dúvida alguma é preciso regulamentar a comunicação nas redes de um órgão com essa autonomia, com atribuições tão relevantes na defesa de direitos e o monopólio da ação penal, porque isso está atrelado à violência política, a perseguições que podem acontecer nas redes sociais, por exemplo. O mesmo se dá com relação à imprensa escrita e televisionada. O conteúdo publicado no portal do MPF passa pelo crivo de procuradores designados para atuar no setor de comunicação — e que estão fazendo política, dentro e fora do Ministério Público.

Então, é preciso pensar todo esse quadro da comunicação do MPF, tanto junto aos meios tradicionais como nas redes sociais, pela perspectiva de que as lideranças dessa burocracia estão fazendo política. Isso fica mais evidente em lideranças com trajetória na ANPR, com trânsito no Congresso Nacional e junto aos meios de comunicação. A ANPR se coloca como fonte da imprensa. Isso precisa de regulamentação. Afinal, é uma associação privada, detentora de informações muito relevantes para o funcionamento do Estado brasileiro, inclusive em termos de soberania nacional. Não se trata de vedar o acesso de jornalista a fontes, mas de isso estar atrelado à perseguição de objetivos políticos e de alvos específicos, em determinados contextos. Até porque essa atuação pode destruir reputações. O Código de Ética do Ministério Público, que foi aprovado recentemente, tem regras para inglês ver nesse aspecto da comunicação e da presença de procuradores nas redes sociais.

 

ConJur — O senhor defende a instituição de uma quarentena para integrantes do MP entrarem na política. Acredita que, se ela já estivesse em vigor, poderia limitar algumas ações e iniciativas do ex-procurador Deltan Dallagnol e até do ex-juiz Sergio Moro?
Rafael Viegas — A instituição da quarentena é urgente, para que se evite não só o que vimos na "lava jato", mas também o que ocorre em Ministérios Públicos estaduais. Por exemplo, o Ministério Público de São Paulo autorizou que promotores de Justiça disputassem as eleições de 2022, uma autorização que partiu do Conselho Superior do Ministério Público e foi chancelada pelo procurador-geral de Justiça, sem nenhuma quarentena para que eles se filiassem a partidos e se concorressem a cargos eletivos.

Existem diversos casos de promotores e procuradores que ganham relevância, aparecem muito na imprensa e se candidatam a cargos eletivos. Há diversos casos de instrumentalização de mecanismos institucionais da Justiça e do Ministério Público com objetivos políticos, dentro e fora dessas instituições. Essa atuação se traduz em capital político acumulado ao longo do tempo. Assim, quando eles deixam as carreiras para disputar eleições, já têm uma "campanha prévia" realizada a partir do Estado, com mecanismos oficiais de comunicação.

 

ConJur — Há uma autocrítica dentro do MPF sobre os abusos da "lava jato"? Ou, tal como os militares com relação à ditadura, os procuradores continuam pensando que agiram certo em todos os momentos e relativizando as ilegalidades e erros?
Rafael Viegas — Há vários segmentos no Ministério Público Federal, não é um bloco homogêneo. Mas o que se observa é que a "lava jato" ainda é hegemônica no MPF. Tal fator ajuda a entender como Deltan Dallagnol e outros procuradores ligados a imoralidades e ilegalidades não foram punidos, com raríssimas exceções. Isso é importante para entender a ação corporativa, um corporativismo predatório, que não aceita retrocessos, não aceita perder privilégios nem espaços de atuação. Às vezes parece que Dallagnol pode tudo. Uns procuradores podem mais do que outros. Por muito menos, procuradores foram punidos por críticas feitas à "lava jato".

Caminhos da Política no Ministério Público FederalCaminhos da Política no Ministério Público Federal

Caminhos da Política no Ministério Público Federal
Talvez o maior clichê das críticas seja dizer que uma obra apresenta “a radiografia” de determinado tema. No caso do livro que o leitor tem nas mãos, usar o chavão seria inadequado não apenas pela falta de originalidade, mas, sobretudo, porque o livro do professor Rafael Rodrigues Viegas é muito mais do que uma mera radiografia do Ministério Público Federal.

Nas palavras de Fernando Abrucio, um dos mais respeitados cientistas políticos do país, “a grande contribuição do trabalho de Rafael é desnudar, como até então não tinha sido feito, o sangue traduzido como processo organizacional do Ministério Público Federal”.

Não são palavras ao vento. De fato, o livro, fruto de premiadíssima tese de doutorado do autor, revela a lógica interna das alianças, nomeações, distribuição e luta pelo poder como questão-chave para entender de que forma a autonomia institucional tem sido utilizada politicamente pelo MPF. Rafael Viegas nos apresenta os “procuradores políticos profissionais” e mostra com clareza solar a maneira como não só tentam – e, na maior parte das vezes, conseguem – controlar a administração do Ministério Público, como mantêm uma luta constante por mais espaços de ação e por privilégios para a categoria.

Conforme atesta Adriano Codato, outro comemorado cientista político brasileiro, “Viegas dá um grande passo ao mostrar que os ‘procuradores políticos profissionais’ têm conseguido se apresentar como burocratas contra os políticos, quando são políticos contra a burocracia”.

Leitura obrigatória para quem pretende entender a gênese de fenômenos recentes que ocuparam e ainda ocupam boa parte da pauta de discussão política do Brasil, como a operação Lava Jato e a tentativa de uma associação privada de impor ao país uma lista tríplice sem previsão constitucional como condição para a escolha do Procurador-Geral da República.

"O trabalho de Rafael não só ampliou o repertório de evidências sobre a necessidade de se ter maior controle sobre os controladores para melhorar a democracia brasileira, como também mostrou que a lógica organizacional dos atores que lideram o MPF é a fonte dos principais males democráticos dessa instituição."
FERNANDO LUIZ ABRUCIO

"Por meio de uma sociografia dos chefes que comandaram o MPF entre 1989 e 2019, e da análise aguda da indicação do Procurador-Geral da República, Viegas revela a existência de um ator chave da política brasileira nas últimas décadas: o 'procurador político'."
ADRIANO CODATO

22
Abr23

O tempo de rosnar já passou – problemas estruturais e conjunturais do Banco Central

Talis Andrade

 

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Humilhante subserviência de Juracy Magalhães beijando a mão de Eisenhower

 

por Paulo Nogueira Batista Jr. /VioMundo

Hoje quero pegar o Banco Central para Cristo. Bem sei que ele não é o único responsável por deficiências na área econômica do governo. Mas é talvez o principal, pelo menos em alguns períodos, como neste início do governo Lula.

Estou me referindo não propriamente à instituição Banco Central, que tem muitos méritos e conta com corpo técnico bem-preparado, mas a seu comando – o atual assim como anteriores.

Desde janeiro, tem havido muita reclamação no mercado financeiro e na mídia tradicional sobre os “ruídos” provocados pelo presidente Lula quando insiste em questionar o Banco Central (BC).

Mas o presidente tem razão em questionar, como já disse várias vezes. Grave, na verdade, é o “ruído” originado do próprio BC.

Poucos falam nisso. Refiro-me aos comunicados e às atas do Copom, o comitê de política monetária do BC (que corresponde à diretoria da instituição) e, em especial, aos repetidos alertas sobre “risco fiscal” e a suposta evolução problemática das contas públicas no Brasil.

 

Jogo de cartas marcadas

A preocupação com as contas públicas é válida. Nunca figurei entre aqueles economistas ultra heterodoxos que desprezam ou minimizam essa preocupação.

Porém, como se diz em inglês, not by the wildest stretch of the imagination (não pelo mais selvagem esforço de imaginação) se poderia apelar para a situação e as perspectivas fiscais do Brasil para manter os juros reais na lua, como tem feito o BC.

Sem falar que essas mesmas taxas de juro oneram pesadamente o custo da dívida e, portanto, as contas públicas, mas quase nunca são mencionadas quando se alardeia o “risco fiscal”.

Mas deixo a discussão dos números fiscais, que já examinei em outras ocasiões, para um próximo artigo. Vou tratar sobretudo da autoridade monetária.

Um ponto passa frequentemente despercebido. O BC insiste em manter os juros muito altos e as atuais metas de inflação ambiciosas e irrealistas, com um centro de 3% a partir de 2024 e um intervalo de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo.

O argumento do BC e seus defensores no mercado financeiro é que as expectativas de inflação estariam “desancoradas”, vale dizer, superam ou tendem a superar as metas em vigor. Reduzir as taxas de juro ou elevar as metas de inflação, alega-se, “desancoraria” ainda mais as expectativas.

Essa visão tem muitas deficiências, entre elas uma visão incompleta de como se formam as expectativas de inflação, captadas nos levantamentos semanais do BC (pesquisa Focus) e em indicadores de mercado (por exemplo, as diferenças entre taxas de juro prefixadas e pós-fixadas, IPCA +).

Não se leva na devida conta que essas expectativas são influenciadas, de várias maneiras, pelo próprio BC.

O que temos, na realidade, há décadas, é um jogo de espelhos ou, pior, um jogo de cartas marcadas. O mercado financeiro, geralmente interessado em extrair juros altos do BC e do Tesouro, pressiona o BC a adotar uma visão exagerada dos riscos fiscais.

O BC, por sua vez, ao divulgar percepções alarmistas sobre as contas do governo, realimenta as expectativas de inflação do mercado. Os indicadores de mercado têm, por sua vez, além disso, um viés de sobrestimar a inflação esperada, uma vez que as taxas prefixadas embutem um prêmio de risco para a variabilidade da inflação.

 

Ligação umbilical entre BC e capital financeiro

O problema é estrutural e resulta da ligação umbilical, que existe há muito tempo, entre o BC e o capital financeiro. O BC agora é autônomo em relação ao poder político eleito, em razão da lei de autonomia aprovada no governo Bolsonaro.

Mas nunca foi e, pelo andar da carruagem, não será tão cedo autônomo em relação ao mercado.

A composição do atual comando da autoridade monetária dá continuidade a um problema mais fundo, de natureza institucional – a famosa captura do BC pelo capital financeiro. Já escrevi diversas vezes sobre isso, inclusive no meu livro mais recente, “O Brasil não caber no quintal de ninguém”.

Um livro publicado em 2023, “Os mandarins da economia”, de autoria de Adriano Codato da Universidade Federal do Paraná, trouxe informações detalhadas sobre essa captura. Por exemplo, dos 18 últimos presidentes, nada menos que 11 tinham origem no mercado financeiro.

E entre os 16 presidentes da instituição de 1985 e 2016, somente dois não ocuparam postos no mercado financeiro no período de cinco anos depois que deixaram o BC. A forma como são recrutados os presidentes e diretores do BC, observa Codato, é “uma demonstração de força do mercado financeiro no Brasil”.

É a célebre porta giratória entre BC e mercado, uma forma de cooptação de executivos e da própria autoridade monetária que solapa o interesse público. O sujeito deixa algum posto numa instituição financeira privada, passa algum tempo na diretoria do BC, valoriza o seu passe e volta para uma posição mais prestigiada no mercado.

Com uma condição, evidentemente: durante a sua passagem pelo BC, tem que dançar conforme a música, não pode ter ideias inconvenientes e nem pode, sobretudo, prejudicar os interesses centrais da oligarquia financeira que dá as cartas no mercado.

 

Breve interlúdio ad hominem

Dessa longa lista de presidentes oriundos da turma da bufunfa (ou turba da bufunfa, como prefere um leitor), um dos mais apagados é Ilan Goldfajn, por quem tenho especial predileção. Vale a pena dar uma olhada rápida nesta figura.

Se fosse possível encarnar em uma pessoa, uma só, as limitações atrozes da elite financeira do atraso, esse economista seria um forte candidato. Começo por aspectos exteriores do personagem.

O leitor ou leitora dirá: “Não importa a aparência, e sim o conteúdo das pessoas”. Engano, engano total. Já dizia Oscar Wilde: “Só os superficiais não julgam pelas aparências”. Veja a perspicácia do artista irlandês.

Enquanto um Marx, por exemplo, proclamava, solene, “se ‘aparência’ e ‘essência’ coincidissem, a ciência seria desnecessária”, Wilde nos deixou um paradoxo instigante e mais verdadeiro.

Bem, precisamente no caso do economista em tela, a aparência é reveladora. O sujeito é bufunfeiro já no nome, Goldfajn. Os romanos diziam que o nome é um presságio. Bingo. Trata-se, ademais, de um gordo, um gordo de proporções rotundas, de generosa papada.

Não há problema nisso, claro, há muitos gordos criativos e inteligentes, que se valem das próprias banhas para produzir um efeito cômico e divertido. Não é o caso, porém. A figura exala um tédio sinistro.

Certa feita, apresentaram um amigo meu, também economista, a um casal da sociedade. Ele, dirigindo-se à senhora: “Já nos conhecemos, dormimos juntos.” O marido já se preparava para reagir, quando meu amigo esclareceu: “Durante uma conferência do Ilan Goldfajn!”.

De fato, sempre cinzento, este economista raramente consegue articular um raciocínio original ou uma observação criativa. Certa vez, uma jornalista muito conhecida, bajuladora, notória chapa branca, entrevistava o economista, na época presidente do BC. Foi uma dureza.

A jornalista se esmerava para extrair do entrevistado algum comentário interessante, por mínimo que fosse. Em vão. Ela chegava a ponto não só de fazer perguntas simples e inofensivas, mas também de oferecer ela mesma as respostas, no afã de ajudar a autoridade monetária a alcançar um desempenho um pouco menos constrangedor.

Mas o que se via, infelizmente, era o de sempre: a repetição monótona dos chavões e comentários rasos que passam por análise econômica nas hostes mercadistas. A audiência deve ter despencado.

Cumpre notar que, para um dos temas principais deste artigo, o economista em questão teve influência nefasta. Remonta a ele a ideia inconveniente de fixar a meta de inflação em apenas 3%.

No início de 2017, na condição de presidente do BC, ele declarou, sem maiores justificativas, que a meta brasileira deveria convergir no médio prazo para 3%, como no Chile e México. Por que se igualar a Chile e México, só Deus sabe.

Dois ex-diretores do BC, Sergio Werlang e Tony Volpon, ressaltaram recentemente que a meta de inflação foi sendo reduzida para esse patamar anunciado em 2017 sem que o tema tenha sido estudado em profundidade e sem fundamentação adequada. Eis a propalada base técnica com que são tomadas as decisões do Copom e do Conselho Monetário Nacional!

Estou me demorando um pouco na figura deste ex-presidente do BC porque por este meio ad hominem chegamos, leitor ou leitora, a um problema sistêmico do nosso País. Como ele há muitos, mas muitos mesmos. Economistas, financistas, comentaristas econômicos, todos com amplo destaque na mídia tradicional – uma prolixa legião de serviçais bem remunerados do poder econômico-financeiro.

Umas das razões mais fundamentais, mais enraizadas do nosso subdesenvolvimento é a tendência a tratar nulidades e figuras medianas como grandes referências e autoridades econômicas.

“Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, dizia Nelson Rodrigues.

Nada mais certeiro. Enquanto não superarmos essa prática de valorizar figuras desse naipe, estaremos condenados à estagnação e ao atraso. Mas encerro aqui esta pequena diatribe e retomo o fio da meada.

 

O que fazer?

A economia brasileira está em franca desaceleração desde o segundo semestre do ano passado e corre o risco de entrar em recessão. Depois do caso emblemático das Americanas, espalhou-se a desconfiança e o temor nos mercados bancários e de capitais, levando a encarecimento e escassez de recursos e dificuldades de rolagem até mesmo para empresas maiores.

Acumulam-se os sinais de que possa ocorrer uma crise sistêmica de crédito, o que aumenta o risco de recessão. O BC assistirá a tudo inerte? Não tomará a iniciativa de começar a reduzir de forma significativa as taxas de juro? Oferecerá suporte de liquidez ao mercado?

Com a atual presidência e diretoria do BC, a tendência é que a reação seja too little, too late, pequena e tardia.

Caberia então ao governo propor uma mudança na lei de autonomia do BC, que garante os mandatos do presidente e demais integrantes da diretoria? Propor a demissão do presidente da instituição?

Não parece haver no momento apoio político no Congresso para tais iniciativas. Isso não significa, entretanto, que o governo deva assistir a tudo parado.

Para além de continuar pressionando o presidente do BC a cair na real, contando talvez com a ajuda da parte do empresariado que vem sendo sufocada pelos juros altos e pelo aperto de crédito, há também providências práticas que não podem ser adiadas.

No campo fiscal, por exemplo, implementar e dar continuidade a políticas anunciadas pelo presidente Lula, como o aumento do salário mínimo, a elevação da faixa de isenção do Imposto de Renda e o lançamento do novo Bolsa Família – todas elas medidas que distribuem renda e estimulam a atividade econômica.

Ao elaborar a nova regra fiscal, que substituirá o famigerado teto constitucional de gastos, a Fazenda precisa propor uma regra simples e flexível, que não engesse a política econômica.*

Em paralelo, os bancos públicos federais, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, devem ser mobilizados, com as devidas cautelas, para aumentar a oferta de crédito na economia, compensando pelo menos em parte a retração dos bancos privados e estimulando-os a retomar os empréstimos.

No âmbito monetário, que é o foco deste artigo, destaco duas providências, de aplicação imediata.

Primeira: aumentar sem mais delongas as metas de inflação, talvez logo depois da apresentação da nova regra fiscal, prevista para março. Com metas de inflação mais altas, o BC estará menos pressionado (ou terá menos pretexto) para praticar juros escorchantes.

Metas mais realistas ajudarão, também, a recuperar a credibilidade da autoridade monetária, que sofre com o repetido descumprimento das metas em vigor.

Segunda providência: pela lei de autonomia, o presidente da República tem a prerrogativa de substituir dois membros da diretoria do BC, cujos mandatos acabam de vencer. Deve fazê-lo, sem demora, indicando nomes independentes e experientes, nem do mercado financeiro, nem funcionários do BC, pessoas que possam fazer um contraponto ao atual presidente.

Fala-se em negociar os novos nomes com Campos Neto. Como assim? Já não basta que o presidente e quase todos os outros seis diretores, com uma única exceção, continuarão a ser os indicados por Bolsonaro e Temer?

Se essas e outras providências macroeconômicas não forem tomadas com urgência, o governo Lula corre o risco de experimentar estagnação, possivelmente recessão, no seu primeiro ano – uma derrota política talvez difícil de reverter.

Ação, portanto! Como dizia Dilson Funaro, com quem tive a honra de trabalhar quando era jovem: “Não se sai de uma armadilha pedindo licença!”.

Se o governo não se sente em condições de usar os instrumentos que tem, se não se julga capaz de agir no campo monetário, nem mesmo dentro do quadro legal atual, então que pare de falar mal do BC! O tempo de rosnar já passou.

* Uma possível regra fiscal poderia tomar o seguinte formato. Seriam definidas, com certa antecedência, metas anuais para o resultado primário do governo na forma de uma banda, com distância ampla entre piso e teto. Em época de recessão ou crescimento lento, o resultado ficaria próximo do piso; em épocas de crescimento elevado, próximo do teto. Essa regra não seria, assim, pró-cíclica. Em caso de resultado fora da banda estabelecida, a Fazenda enviaria carta detalhada ao Congresso, justificando o desvio, a exemplo do que faz o BC, em carta à Fazenda, quando a inflação escapa da banda no regime de metas para a inflação. O ministro da Fazenda, assim como deveria fazer o presidente do BC, compareceria trimestralmente ao Congresso para dar explicações e responder a questionamentos sobre a condução da política e o cumprimento da meta.

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***
Uma versão mais curta deste artigo foi publicada na revista Carta Capital.

*Paulo Nogueira Batista Júnior é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

Leia também:

Jeferson Miola: Banco Central e Petrobrás, engrenagens do roubo legalizado da renda nacional por saqueadores

Jean Marc Von der Weid: A inflação de alimentos e a importação temporária dos essenciais

 
 
 
 

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