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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

15
Fev22

Com ministro Schietti e promotor Zílio, digo: Precisamos falar sobre o MP

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

 

1. Min. Schietti pede que MP pare de ser "despachante" e promotor Zílio denuncia punitivismo medieval que matou seu irmão

Falarei, hoje, de questões institucionais. Do MP. De Castor a Dallagnoll (e a famosa fundação abortada pelo STF), passando pela investigação do TCU sobre as diárias, até a procuradora-que-virou-comentarista política em rede de TV negacionista.

O que está acontecendo com o Ministério Público? Em São Paulo, o MP é condenado por ação temerária em improbidade (pior: parece que perdeu o prazo do recurso). Bom, cada advogado por certo tem história(s) para contar — por exemplo, sobre denúncias criminais irresponsáveis (lembremos do caso Michel Temer). E o caso Beto Richa e Ricardo Coutinho.

Mas alguém poderia objetar, dizendo: são casos isolados. OK, deixemos de lado, então, esses casos. Fiquemos no plano do simbólico.

Para tal, peguemos o recente julgamento relatado pelo Ministro Rogério Schietti, ex-integrante do MP. Em um Habeas Corpus, na corte, Schietti fez um apelo ao Ministério Público de São Paulo para que seus membros deixem de atuar como meros "despachantes criminais", ocupados em simplesmente pleitear o emprego do rigor penal. Grave, pois não?

E, em contundente e emocionante artigo, o promotor do Paraná, Jacson Zílio, denuncia a morte de seu irmão, em episódio parecido com o do reitor Cancellier. Zílio diz que "o poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis". O texto do promotor Zílio é autoexplicativo. Só isso já demandaria uma reunião nacional do MP.

Volto ao caso denunciado por Schietti, em que o órgão ministerial apelou de uma sentença que havia desclassificado a conduta de um homem flagrado com 1,54 grama de cocaína e R$ 64 no bolso. Nem ele e nem eu digo que não se deve punir. O furo é bem mais embaixo.

Há milhares desse tipo de caso. Em um deles, vindo de MG, houve recurso por causa de um projetil usado como pingente, questão que chegou ao STF. Na ocasião, escrevi "Na ânsia de condenar, MPF usa inversão do ônus da prova" (ver aqui). Veja-se também o HC 197.164 —STF. Sem esquecer do caso de Janaina, mulher pobre, em situação de rua, com filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada, em uma espécie de eugenia tupiniquim.

E o que dizer do assustador manifesto contra a bandidolatria (sic), não contestado pelas cúpulas da Instituição? E como esquecer que o MP embarcou — e protagonizou, escandalosamente — (n)o famoso pacote das dez medidas que propunha — pasmem — prova ilícita de boa fé e fragilizava o habeas corpus? E o que dizer de Janot-enquanto-houver-bambu-vai flecha?

Além disso, a PGR Raquel Dodge não defendeu o STF quando este sofreu ataques, fazendo com que a Corte lançasse mão do Regimento Interno. E, agora, o PGR Augusto Aras perde a oportunidade de defender a Instituição STF dos ataques do presidente da República. Atenção: além de tudo, o MP, pela Constituição, é o guardião do Estado Democrático de Direito.

Pequenas coisas...grandes consequências. Por exemplo, houve alguma reação institucional do MP nacional quando um procurador da república sustentou prisão preventiva com a pérola passarinho na gaiola canta melhor? Na verdade, o agente recebeu aplausos... Qual é o limite da independência funcional?

Como podem ver, sou testemunha da história. Escrevi sobre tudo isso ao longo dos últimos trinta anos.

 

2. E o ministro tocou na ferida...

Qual é, efetivamente, o papel do Ministério Público na nossa democracia? Essa é a ferida narcísica da Instituição. Mas parece que ninguém — ou muito poucos — querem falar disso.

Fui membro por quase três décadas. Tentei várias vezes discutir algumas questões: uma, o próprio papel da instituição, que, para mim, deveria agir como uma magistratura, de forma isenta, sem ser perseguidor implacável, ignorando nulidades e outras garantias a favor da defesa (fui candidato a PGJ — minha tese principal era essa!). Mais contemporaneamente, isso fez com que eu capitaneasse o projeto Anastasia-Streck, que pretende introduzir no CPP, mutatis mutandis, o artigo 54 do Estatuto de Roma (ou o artigo 160 do CPP alemão — ou a doutrina Brady, se quiserem). Gestão da prova — eis o ponto.

A segunda questão diz respeito ao MP de segundo grau. Nisso reside o apelo e a crítica do ministro Schietti, que bem conhece o assunto, bastando ler livros e artigos do ministro sobre isso (ler aqui). Para registro, já em 2003 Schietti, no seu livro Garantias processuais nos recursos criminais, abordava essa relevante questão, chamando-a de "objetividade da atuação do MP". Para tanto, cita o art. 358 do Código de Processo da Itália (1988), que impõe ao Ministério Público, na fase das investigações preliminares ao juízo, o dever de desenvolver também o esclarecimento de fatos e circunstâncias "a favore della persona sottoposta alle indagine". Vale dizer, atua, desde aquela fase, com o propósito de obter justiça e não apenas de recolher dados instrutórios contrários aos interesses do imputado. Isso se repete no art. 53º do Código de Processo Penal de Portugal (alterado pela lei 59/98).

E Schietti é definitivo ao lembrar o art. 7º do Estatuto Orgánico del Ministero Fiscal de Espanha, que reza que "por el principio de imparcialidad el Ministerio Fiscal actuará con plena objectividad e independencia en defesa de los intereses que le estén encomendados".

Poderia parar por aqui. O "precisamos falar sobre o MP" já teria material suficiente. Mas seguirei, por zelo republicano.

Uma rápida busca nos acórdãos dos tribunais da República mostra que o parecer do MP de segundo grau é referido, via de regra, brevemente como "o MP opinou pelo provimento do apelo do MP" ou "Opinou desfavoravelmente ao apelo da defesa". Sequer, na grande maioria, fica-se sabendo o nome do procurador. Mais: o que disse, afinal, o membro do MP de segundo grau no seu parecer? O acórdão — documento oficial que retrata a história do julgamento — não menciona. Rarissimamente menciona (há uma pesquisa em andamento; os dados estão sendo compilados — meu registro, aqui, é decorrente de amostragem; interessante é que, em dois estados, na amostragem, viu-se 100% de pareceres contra o apelo do réu; evidentemente que os dados devem ser checados e analisados).

Ora, um agente do MP tem as mesmas garantias da magistratura. É uma espécie de magistrado. Mas indago: Seu papel é — e aí entra a crítica de Schietti — o de ser despachante (sic) do que disse o MP de primeiro grau? Ou de fazer recursos para o STJ e STF como se fosse um "promotor público"?

Meu levantamento mostra que urge que o MP converse, institucionalmente, com o PJ para que as manifestações de segundo grau sejam melhor explicitados nos acórdãos — até para que se tenha uma accountabillity.

Abrindo acórdãos do TJ-MG, por exemplo, o que mais se vê é "Instada a se manifestar, a douta Procuradoria de Justiça opinou pela denegação da ordem". Na Justiça Militar de MG: "O e. Procurador de Justiça ofertou o seu parecer às fls. 64/64v, pugnando pelo não provimento do presente recurso". Quem ler o acordão, perguntará: "E...?"

Veja-se que até nos concursos públicos para o MP se constata aquilo que Schietti critica, valendo lembrar o caso de Minas Gerais em que o concurso claramente incentivava a desobediência à jurisprudência garantista do STF e STJ (ver aqui).1

Vejam: estou falando do Ministério Púbico, instituição que detém parcela da soberania do Estado; seus membros possuem as mesmíssimas garantias da magistratura. Isso consta na CF por alguma razão, pois não?

Observe-se: os PGJs e o PGR têm a palavra final sobre ações penais. Parcela de soberania estatal! Por isso, o MP deveria agir como uma magistratura, sem fazer agir estratégico e agindo com imparcialidade. O ministro Schietti, que já esteve lá, sabe que o MP não vem agindo como uma magistratura. Já mostrei isso acima. O promotor Zílio Jacson vai na mesma linha.

Portanto, imitando aqui Lionel Schriver em seu best seller (Precisamos Falar sobre Kevin), precisamos falar sobre o Ministério Público. Como Procurador de Justiça que fui por décadas, os processos recebiam, de mim, um minucioso exame — chamava a isso de "espiolhamento processual" — buscando fazer com que a verdade processual viesse à tona, seja de que lado fosse. Esse é o ponto: seja de que lado fosse.

O que desejo registrar é que dificilmente um parecer de minha lavra não trazia questões preliminares — grande parte deles, por necessidade do due process of law, favoráveis à defesa, composta de réus pobres e muitas vezes defendidos precariamente nos confins do Direito. Vejam que, no primeiro grau, nem havia defensor público quando fui promotor. Eram professores estaduais, com formação jurídica, que faziam esse papel dativo. E, como procurador, a Defensoria, nos primeiros anos, ainda engatinhava. Imaginem como chegavam os processos no segundo grau...

Sem querer fazer autobiografia, lembro que, agindo como um magistrado, dificilmente algum processo escapava ileso do meu espiolhamento processual. Estatísticas internas de meu gabinete davam conta de que entre 70 e 80% dos processos sofriam alteração no órgão fracionário do Tribunal, exatamente na linha sustentada por mim. Das mínimas questões como ilicitude da prova até o esgrimir de novas teses constitucionais, fazendo o que denominei, desde os primórdios da Constituição, de "superação da baixa constitucionalidade imperante na dogmática penal e processual penal".

Para além disso, em termos de inovações, fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos para casos de furto sem prejuízo (já tratei disso em coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato (íntegra aqui). Também fui o primeiro a defender a tese da aplicação da reincidência em sua relação com o princípio da secularização, a partir de Ferrajoli.

Nulidades arguidas a favor da defesa podem ser vistas, entre centenas de processos, como o de n. apelacao-crime-acr-70045600350 (ver aqui). Ou aqui. Ou a tese sobre o concurso do roubo aplicado ao furto (ler aqui). Fomos derrotados, depois, no STJ, face a recursos manejados pelo Ministério Público.

Aliás, essa é outra questão sobre a qual deveríamos falar: se um Procurador sustenta a absolvição de um réu no segundo grau e obtém êxito, pode o MP recorrer dele mesmo?

Há casos emblemáticos em que antecipei uma discussão que somente foi enfrentada pelo legislador anos depois. Explico. Antes mesmo de ser aprovada a Lei 10.792!03, que tornou obrigatória a presença de advogado no interrogatório, levantei, com o apoio da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS, a tese da aplicação constitucional do princípio acusatório pela qual eram nulos os interrogatórios sem a presença de advogado. Fiz, no mínimo, mais de 150 pareceres (ver nesse sentido, meu Verdade e Consenso, 6ª ed).

De novo, não se trata de autobiografia, mas, sim, de trazer elementos objetivos para demonstrar qual, na minha concepção — e com certeza, de muitos membros do MP e, como se sabe, do ministro Schietti — deve(ria) ser o papel do Ministério Público. Isso sem contar as teses hermenêuticas stricto sensu, registradas em dezenas de livros e textos que escrevi nestas décadas.

A questão do reconhecimento de pessoas e as exigências formais para a elaboração de laudos era outro ponto da filtragem processual que eu fazia. De mais a mais, quantos processos "salvei" mostrando que o in dubio pro societate é(ra) uma falácia? E quantas vítimas consegui resgatar face ao uso de um adágio igualmente falacioso, o famoso pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo)?

 

3. As seis hipóteses e o cumprimento da Constituição

Não fazia atuação ignorando o papel da lei. Habeas corpus concedidos de forma inadequada ou irresponsável recebiam a agudeza de minha pena. Saídas temporárias automatizadas, contra legem, entravam no meu radar de espiolhamento. Para qualquer lado, portanto. Porque a lei não tem lado! Fazia uma cruzada contra o solipsismo judicial. Sou insuspeito nisso, bastando ver os critérios que defendo para não se deixe de cumprir a lei, havendo apenas seis hipóteses excludentes (ver Dicionário de Hermenêutica, Verdade e Consenso, entre outros).

É claro que cometi equívocos, mormente nas vezes em que fiz uma espécie de ultra constitucionalismo, com o uso da proibição de proteção deficiente. Mas, no fundo, era uma reação a algumas posturas ultraliberais. Mas o equilíbrio foi se forjando nesses anos todos. A dor ensina a gemer.

Eram as demandas de um sistema jurídico por vezes perverso que me obrigavam a criar e a pleitear teses garantidoras como a nulidade pela não aplicação do artigo 212 do CPP. Teses como essas partiram da procuradoria de justiça de segundo grau de minha titularidade (como foi o caso, também, do então procurador Juarez Tavares, por exemplo) — hoje, depois de mais de uma década, parece que finalmente a dicção do artigo vai vingar, segundo se vê no STF.

 

4. Numa palavra e como retranca: "não se quer, assim, que não se puna"

Invocando outra vez o Ministro Schietti: não se quer, assim, que não se puna. Porém, deve haver provas concretas e lesividade em uma conduta. E deve ser seguido o devido processo legal. A presunção é de inocência e não de culpa. Lembremos a denúncia de Zílio Jacson. E o caso Cancellier.

Assim, apenas mostrei pequenos detalhes de minha atuação como procurador de justiça tendo como norte aquilo que recitei na minha prova de tribuna, em 1985, no concurso para ingresso no MP, usando as palavras do príncipe do MP, Alfredo Valadão: "O MP é fiscal da lei, vindas as ilegalidades de onde vierem, inclusive de si próprio".

É isso: vindas as ilegalidades de onde vierem. Este texto vai em homenagem ao ministro Schietti e aos membros do Ministério Público que escapam desse modelo punitivista do velho promotor público denunciado pelo ministro do STJ. O MPD — Ministério Público Democrático tem feito manifestações de resistência — o que é louvável. Vai em homenagem ao Jacson Zílio e o Coletivo Transforma MP. Também aos componentes da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS (por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif e Luis Gonzaga).

 

5. O que é independência funcional?

Despiciendo dizer que a presente abordagem não generaliza a atuação de membros — stricto sensu — do MP. Falo, sim, da questão maior: institucional.

Explico: há que se saber o que significa "independência funcional". Não de um membro e, sim, da Instituição. Querem ver? Qual foi (ou é) o papel INSTITUCIONAL do MP na pandemia? No início tínhamos agentes propondo ações para que municípios adotassem — pasmem — o tratamento precoce e fazendo TAC’s sobre isso. E outros agentes propondo ações de improbidade porque os prefeitos adotaram tratamento precoce. Agora vemos "recomendação" do MP-DF (18/1/2022) chamando a vacina para crianças de "vacina experimental" (sic). Afinal, o que é isto a independência funcional? Qual é o MP? O que recomenda vacinar? O que recomenda fazer tratamento experimental? Cada membro pode escolher?Humor Político on Twitter: "Governo genocida https://t.co/5eqvP80ZVd  https://t.co/WnUkRmCOG5" / Twitter

 

E o CNMP? Bom, o caso Dallagnol é simbólico. Precisamos falar também sobre o CNMP.

Numa palavra final, nada fiz de extraordinário nesses anos de membro do Ministério Público. Porém, lutei o bom combate para que os ditames constitucionais que regem a Instituição fossem cumpridos. Como continuo fazendo. Não é aceitável que o TRF4 diga, em um julgamento recente, que "não se deve exigir isenção do MP". Inaceitável! Quem quer ser processado por um órgão parcial? Não isento?

Esse pequeno testemunho não tem maiores pretensões. Pretende apenas provocar algumas reflexões. Não quis tratar de outros ramos (meio ambiente, MP do Trabalho, por exemplo, em que tais questões não se apresentam). Há avanços institucionais evidentes.

Mas na área criminal ainda precisamos falar sobre o Ministério Público. Muito.

 

1 E o que dizer do recurso do MPF de um caso de absolvição de réus que pescaram um dourado de 7 quilos? E o que dizer de um recurso em um caso em que o sujeito tentou suicídio e foi denunciado por porte ilegal de arma? Alguém dirá: e da defesa, não vai falar? Ora, a defesa privada é autoexplicativa e se for defeituosa, ou se anula o processo (e o MP tem o dever de pleitear isso) ou o próprio MP, como fiscal da lei, levanta as questões processuais favoráveis ao réu. E se for defesa feita pela Defensoria, existem as corregedorias. (Continua)

 

19
Jan22

Levaram meu irmão

Talis Andrade

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Tinha 49 anos, família, esposa, duas crianças e pais idosos. Infartou. Não resistiu ao método brutal do poder punitivo

 

por Jacson Zilio /Jornal GGN

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A primeira vez que levaram meu irmão foi pela ação insensível de “colegas” algozes do Ministério Público. Sob o argumento ilusório de supostos delitos de usurpação de função pública ou de prevaricação – enxergados pela repressão no exercício regular de direitos contratuais de prestação de serviços médicos cooperados, vigentes desde o ano de 2013 em São Miguel do Iguaçu/PR -, invadiram a casa do bioquímico Charles Zilio, Diretor Administrativo da CESMED, já na primeira hora da manhã, de armas em punho, diante dos pais idosos e dos filhos menores. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Deixaram, contudo, assombros, traumas e medos descomunais. Era o ano de 2015. Naquele tempo, os métodos violentos do lavajatismo, de extorsão pela pena aplicada em espetáculos midiáticos e de humilhação pública desnecessária, faziam vítimas e estavam em plena expansão. A prisão durou poucas horas, por força de liminar do Tribunal de Justiça do Paraná, mas foi suficiente para provocar estragos pessoais incomensuráveis e duradouros. Mais de 5 anos depois, por unanimidade, o mesmo tribunal absolveria meu irmão, julgando integralmente improcedentes todas aquelas levianas acusações criminais. A imagem pública, contudo, jamais se restabeleceu por completo, nem se extinguiu o sofrimento do acusado – afinal, uma justiça tardia não desfaz a agressão de uma acusação injusta.

Mas antes dessa decisão do TJ/PR, que corrigiu um equívoco judicial, ainda estava ativo o vírus da Covid e do lawfare brasileiro. O primeiro matava por asfixia, incompetência e charlatanismo, sem nenhuma contenção pelo governo negacionista; o segundo, de forma não menos dolorosa, intervinha em processos políticos concretos nas vésperas de pleitos eleitorais, para posicionar o direito penal como arma seletiva de perseguição e linchamento midiático, sempre aliado ao sensacionalismo barato da imprensa, com notícias distorcidas ou maldosas. Eram tempos ásperos.

Nesse momento é que levaram meu irmão pela segunda vez. Amparados por reportagens e fotos de momentos privados postadas em redes sociais, dezenas de homens da polícia federal, comandados por algum acéfalo em busca de fama, deslocaram-se ostensivamente para uma pequena cidade no interior paranaense, mascarados, armados e acompanhados daquela imprensa ávida de espetáculos policiais. Explodiram os portões da casa dele e invadiram o local com violência, novamente na presença da esposa e das crianças. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Repetiram isso em outras residências. Levaram médicos, funcionários, empresários e políticos locais. Alardeavam bárbaros crimes licitatórios e o mal cósmico da corrupção, com apropriação de valores imaginários, tudo difundido para gerar uma falsa imagem de gravidade dos fatos. Corrupção, associação criminosa, lavagem de dinheiro e outros delitos integravam o combo perfeito que mobilizou algumas agências penais autoritárias da contemporaneidade. Mais uma vez, a barbárie parece não ter limites. Essa prática, similar àquela sofrida pelo reitor da universidade de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, já estava normalizada em segmentos conhecidos do mundo judicial. O poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis. A histeria popular, fomentada pela comunicação irresponsável de deformadores de opinião, assume dimensão assustadora.

Na sequência do último episódio, como irmão da vítima e professor de direito penal, observei a progressão de medidas judiciais no âmbito de um setor conhecido da justiça federal: manipulação de competência penal inexistente, prisões cautelares usadas como antecipação de condenação ou para determinar colaborações, extorsões patrimoniais camufladas de fiança calculada sobre prejuízos fantasiosos, investigações policiais intermináveis e invasivas de direitos individuais, restrições de uso de bens, proibições de contratos com o poder público e cautelares decretadas para execução da morte civil. Em suma, a “investigação policial” e as medidas cautelares pessoais e empresariais, estendidas a familiares, empregados e amigos que nada sabiam de contratos públicos, converteram-se em reais penas criminais antecipadas. Essas medidas cruéis, semelhantes à morte e às torturas físicas, também são penas criminais, ainda que sob forma camuflada da legalidade, ou conforme procedimentos prévios do devido processo legal. A inversão do princípio da presunção de inocência é o sinal mais claro da farsa ideológica que move a sanha punitiva do atual processo penal brasileiro.

O resultado inevitável pareceu no lado mais frágil, na realidade de um homem de carne e osso, um empresário honesto exposto ao linchamento público, midiático e judicial, julgado e condenado sem processo, sem contraditório, sem acusação formal por denúncia regular. Nesse novo contexto – e antes do julgamento de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça, fundado na incompetência da justiça federal e na consequente anulação de todos os atos decisórios -, levaram meu irmão pela terceira vez, agora de modo definitivo. Desta vez, em uma ambulância, com alguns homens de branco. Tinha 49 anos, esposa, duas crianças e pais idosos. Infartou. Não resistiu ao método brutal do poder punitivo. Morreu sem dinheiro e sem poder se defender de acusações difusas ou vazias, formuladas a esmo em investigações policiais truculentas. Um ano e meio de sofrimento. Um ano e meio de tortura psicológica. Os bons amigos e familiares ficaram firmes, apesar de que, como já perguntou Cecília Meireles e cantou Chico Buarque, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece”? Como disse Brecht, “quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis. Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.”

O utilitarismo autoritário do estado policial, com sua política penal de derramamento de sangue e espalhamento cruel de dor, venceu mais uma vez. Pelas mãos de “palhaços togados submissos às ordens das polícias”, triunfou a desrazão do “direito penal vergonhoso” de que fala Zaffaroni. Perdeu o direito penal liberal. Perdemos todos nós.  Resta o alerta para essa gente que vive do dano que causa aos outros que, fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece (Brecht), especialmente a saudade.

Osvaldo Gutierrez Gomes poder polícia repressã

19
Jun21

O desprezo do lavajatismo pelo processo penal na democracia

Talis Andrade

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por Danilo Pereira Lima /ConJur

O processo penal é uma boa chave de análise da qualidade de uma democracia. Por meio dele podemos avaliar de que forma o Estado se relaciona com a liberdade de seus cidadãos, qual é a eficácia dos direitos e garantias fundamentais e se a persecução penal é feita na perspectiva do Estado de Direito.

Diante disso, se encontramos nos órgãos jurisdicionais uma forte cultura inquisitória, podemos constatar que o Estado mantém uma relação autoritária com os indivíduos, no sentido de vê-los muito mais como inimigos do que como cidadãos.

Por outro lado, se os órgãos jurisdicionais veem o processo penal como uma garantia do acusado e exercem sua função institucional dentro dos limites do sistema acusatório, podemos concluir que a interdição penal — necessária para o processo civilizatório — acontece dentro dos parâmetros do Estado de Direito.

Com base nesse critério, podemos observar que infelizmente a situação não é muito boa para o Brasil. Em tempos de lavajatismo, e após a divulgação das conversas entre o juiz Sergio Moro e "seus" procuradores da República, o lado mais sombrio do Estado brasileiro tornou-se ainda mais explícito: muitos juízes e membros do Ministério Público persistem numa posição de desprezo pelo Estado de Direito.

Apesar da promulgação de uma Constituição que rompeu com 21 anos de ditadura militar, ainda permanece a noção de que o acusado deve ser tratado não a partir dos limites estabelecidos por seus direitos e garantias fundamentais, mas sim como inimigo do Estado. Uma noção sempre utilizada por regimes de exceção e que, antes do paradigma constitucional instaurado em 1988, se fez presente por meio da doutrina de segurança nacional. Por sinal, foi com base nessa doutrina que a ditadura militar suspendeu a garantia do Habeas Corpus para pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional.

Passaram-se muitos anos desde a aprovação do Ato Institucional nº 5 e o país se redemocratizou. O ministério Público deixou de ser um mero auxiliar do Poder Executivo e tornou-se fiscal da lei. O Poder Judiciário reconquistou sua autonomia funcional. Mas o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais não passam de meros detalhes permaneceu entre alguns agentes públicos. Foi o que os procuradores federais da lava jato manifestaram em diálogos pelo Telegram logo após a divulgação ilegal da interceptação telefônica das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff.

Diante do vazamento, o procurador Januario Paludo sustentou que a ilegalidade da divulgação não passava de filigrana jurídica. Opinião seguida por Deltan Dallagol ao defender que, "a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político". Ou seja, no tratamento oferecido ao inimigo, ilegalidades podem ser praticadas.

Em regimes democráticos, o sistema acusatório determina que a acusação e o órgão jurisdicional atuem de forma separada, de maneira a garantir a imparcialidade do juiz no julgamento do processo penal. Nos tempos da "Santa" Inquisição, a mesma pessoa encarregava-se do julgamento, da investigação e da acusação. Sem esquecer, é claro, do uso da tortura como um meio para obter a confissão do acusado. O tempo da fogueira inquisitorial passou, mas a operação lava jato não abriu mão do sistema inquisitório nas suas intenções quase "messiânicas" de guerra "santa" contra a corrupção.

Em vez do Ministério Público Federal atuar com independência ao longo das investigações, o que se viu foi a total subserviência dos procuradores em relação ao verdadeiro chefe da operação, o juiz Sergio Moro. Em muitas mensagens os procuradores afirmavam que, antes de tomarem alguma posição, o juiz Moro precisava ser consultado.

Foi o caso da mensagem do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que em conversa com seus colegas confidenciou a preocupação de manter "o russo [Sergio Moro] informado, bem como [permanecer] atento aos humores dele". Nesse sentido, o órgão jurisdicional e o ministério público deixaram de ser instituições separadas, com autonomia funcional, para atuarem como se fossem um mesmo órgão sob a chefia do juiz Moro.

Para que o juiz permaneça na posição de expectador durante todo o processo, também é importante garantir que a gestão das provas permaneça sob a responsabilidade exclusiva das partes. Sempre levando em consideração a presunção de inocência, que no caso transfere para o acusador toda a responsabilidade pelo ônus da prova. Se no decorrer do processo penal as provas para a condenação são insuficientes, prevalece o princípio do in dubio pro reo.

Não cabe ao juiz produzir provas ou orientar como as partes devem usá-la. No entanto, apesar das limitações impostas pela Constituição, o juiz Moro mais uma vez abandonou a imparcialidade para determinar que o ministério público devia incluir uma prova contra um réu da lava jato. De acordo com as conversas do Telegram, Deltan comunicou a procuradora Laura Tessler que o juiz Moro havia chamado a atenção para a ausência de uma prova na denúncia contra Zwi Skornicki.

"Laura no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa [da Petrobras] e se for por lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar ele", diz Deltan.

"Ih, vou ver", responde a procuradora. 

No dia seguinte a esse diálogo, a procuradoria incluiu um comprovante de depósito e o juiz Moro aceitou a denúncia.

A operação "lava jato" não foi um ponto fora da curva. O juiz Sergio Moro e "seus" procuradores seguiram a tendência dominante dentro do processo penal brasileiro, baseada na cultura inquisitória. Mas, além do comportamento Torquemada de muitos juízes e promotores, o que também é possível atestar por meio da permanência da cultura inquisitória é a resistência de muitos agentes públicos contra qualquer controle constitucional de suas funções. Sendo assim, em vez do processo penal ser compreendido como uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo da parte do órgão jurisdicional do Estado; o que se percebe é que, nas mãos de quem vê os direitos e garantias fundamentais como meras filigranas jurídicas, o processo penal é apenas um instrumento de poder e repressão, numa noção típica de agentes públicos que resistem ao Estado de Direito por meio do mandonismo.

Desse modo, ao medir a qualidade da democracia brasileira por meio do processo penal, podemos concluir que o entulho autoritário de outras épocas ainda insiste em deixar a Constituição cidadã de lado para manter de pé o paradigma amigo/inimigo.

28
Fev21

Carta de advogados de janeiro de 2016 acusa "lava jato" de desrespeitar garantias fundamentais

Talis Andrade

Charge do Gilmar

O Brasil de Bolsonaro começou com o partido da "lava jato", uma quadrilha formada por juízes, procuradores e delegados da polícia federal, que derrubou Dilma, empossou Temer, prendeu Lula, elegeu o capetão presidente. 

Hoje ninguém mais acredita no Brasil cordial, que a "lava jato" começou a campanha de ódio a Lula, pelo partido único antipetista.

Hoje ninguém diz que Deus é brasileiro, que Sergio Moro propagou o mito do Messias Bolsonaro.

Haddad, candidato derrotado na campanha eleitoral de 2018, salienta que não faltou aviso, denúncias de quem era Bolsonaro, 28 anos parlamentar do baixo clero e da bancada da bala. 

Dois anos antes, carta de uma centena de advogados acusava a "lava jato" de desrespeitar as garantias fundamentais. Garantias perdidas com as reformas da previdência, trabalhista e teto dos gastos. Com a extinção do habeas corpus. O rasga do hc de Rogério Favretto negado a Lula.A Operação Lava Jato como piada fascista - O outro lado da notícia

O Brasil, depois da "lava jato", um país da abertura dos portos, dos aeroportos, de porteira aberta para os espiões, os traficantes, os quinta-colunas. Um país ameaçado. Das ameaças ao estado democrático de direito, ao STF, do golpismo de Villas Boas. Da ameaça `a soberania nacional. 

Publicou o portal Consultor Jurídico, em 15 de janeiro de 2016: Publicada nos três maiores jornais do país, uma carta assinada por mais de uma centena de advogados critica de forma dura e incisiva a maneira como estão sendo conduzidos os processos na operação “lava jato”. O texto afirma que o Brasil passa por um período de “neoinquisição” e que, no “plano do desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, a ‘lava jato’ já ocupa um lugar de destaque na história do país”.  

A carta elenca diversos fatores como “graves vícios” que terão “consequências nefastas para o presente e o futuro” da Justiça. “O desrespeito à presunção de inocência, ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da jurisdição e ao princípio do juiz natural, o desvirtuamento do uso da prisão provisória, o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e o desrespeito às prerrogativas da advocacia”, enumera o texto.

Quem pagou?
Apontado por reportagem da Folha de S.Paulo como o responsável por colher assinaturas para a declaração, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, nega ter desempenhado esse papel, diz não ser o autor do texto e afirma não saber quem pagou pela publicação da carta nos jornais.

Em relação ao conteúdo, o jurista dá seu completo aval: “Estamos virando um país monotemático, onde só se fala em "lava jato", um país punitivo onde a palavra é sempre da acusação. Este é um texto para chamar à reflexão, temos que pensar que país queremos fazer. Não admito que policial, procurador ou juiz tenha a pretensão de dizer que quer um país melhor do que eu quero”, disse em entrevista ao jornal O Globo. Kakay defende os senadores Edison Lobão (PMDB-MA) e Romero Jucá (PMDB-RR).

Um dos advogados apontados como signatário do documento é o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp. Porém, ele diz que não deu aval para inclusão de seu nome e que ninguém o procurou para tratar da adesão. Dipp fez um parecer há mais de um ano criticando pontos específicos da “lava jato” e crê que isso motivou os formuladores da carta a incluir seu nome.

Atuação da imprensa
O texto dos advogados também crítica a atuação da imprensa, que segundo eles atua para prejudicar a presunção de inocência e pressionar e constranger juízes a não decidir favoravelmente aos réus. “Ainda que parcela significativa da população não se dê conta disso, esta estratégia de massacre midiático passou a fazer parte de um verdadeiro plano de comunicação, desenvolvido em conjunto e em paralelo às acusações formais, e que tem por espúrios objetivos incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados”, afirma o manifesto.

Sobre uma tentativa de, com a carta, intimidar a atuação da imprensa, o advogado Nabor Bulhões disse que “não há nenhuma tentativa de cercear a imprensa” e que a carta busca garantir um julgamento isento. “A imprensa deve ser livre, como livre deve ser o Judiciário de forma a garantir um julgamento justo e imparcial. O que não é razoável é a utilização da mídia para pressionar o Judiciário, constrangendo, inclusive, ministros de tribunais superiores”, disse ele, que defende o empresário Marcelo Odebrecht.

Também assinaram a carta os advogados Augusto de Arruda Botelho, Flavia Rahal, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck, Maira Salomi (ex-sócia de Márcio Thomaz Bastos), Nélio Machado, Pedro Estevam Serrano, Roberto Podval e Técio Lins e Silva.

Direito de espernear
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) contestou os advogados e disse que as decisões tomadas têm base legal. “É um direito espernear. Mas as decisões são baseadas em provas robustas. As delações são um ponto de partida das investigações. Para se conseguir uma condenação, todas precisam ser ratificadas. Não se trata de decisões de um juiz isolado. É a jurisprudência reiterada de vários tribunais, inclusive da suprema corte”, disse o procurador da República Alan Mansur, diretor de Comunicação da ANPR, ressaltando que já foram ressarcidos ao erário R$ 2 bilhões em dinheiro público desviado da Petrobras e de outras estatais.

Leia a carta e a lista dos advogados que a assinaram:

“No plano do desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, a Lava Jato já ocupa um lugar de destaque na história do país. Nunca houve um caso penal em que as violações às regras mínimas para um justo processo estejam ocorrendo em relação a um número tão grande de réus e de forma tão sistemática. O desrespeito à presunção de inocência, ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da jurisdição e ao princípio do juiz natural, o desvirtuamento do uso da prisão provisória, o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e o desrespeito às prerrogativas da advocacia, dentre outros graves vícios, estão se consolidando como marca da Lava Jato, com consequências nefastas para o presente e o futuro da justiça criminal brasileira. O que se tem visto nos últimos tempos é uma espécie de inquisição (ou neoinquisição), em que já se sabe, antes mesmo de começarem os processos, qual será o seu resultado, servindo as etapas processuais que se seguem entre a denúncia e a sentença apenas para cumprir ‘indesejáveis’ formalidades.

Nesta última semana, a reportagem de capa de uma das revistas semanais brasileiras não deixa dúvida quanto à gravidade do que aqui se passa. Numa atitude inconstitucional, ignominiosa e tipicamente sensacionalista, fotografias de alguns dos réus (extraídas indevidamente de seus prontuários na Unidade Prisional em que aguardam julgamento) foram estampadas de forma vil e espetaculosa, com o claro intento de promover-lhes o enxovalhamento e instigar a execração pública. Trata-se, sem dúvida, de mais uma manifestação da estratégia de uso irresponsável e inconsequente da mídia, não para informar, como deveria ser, mas para prejudicar o direito de defesa, criando uma imagem desfavorável dos acusados em prejuízo da presunção da inocência e da imparcialidade que haveria de imperar em seus julgamentos – o que tem marcado, desde o começo das investigações, o comportamento perverso e desvirtuado estabelecido entre os órgãos de persecução e alguns setores da imprensa.

Ainda que parcela significativa da população não se dê conta disso, esta estratégia de massacre midiático passou a fazer parte de um verdadeiro plano de comunicação, desenvolvido em conjunto e em paralelo às acusações formais, e que tem por espúrios objetivos incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados (mesmo antes deles serem julgados) e pressionar instâncias do Poder Judiciário a manter injustas e desnecessárias medidas restritivas de direitos e prisões provisórias, engrenagem fundamental do programa de coerção estatal à celebração de acordos de delação premiada.

Está é uma prática absurda e que não pode ser tolerada numa sociedade que se pretenda democrática, sendo preciso reagir e denunciar tudo isso, dando vazão ao sentimento de indignação que toma conta de quem tem testemunhado esse conjunto de acontecimentos. A operação Lava Jato se transformou numa Justiça à parte. Uma especiosa Justiça que se orienta pela tônica de que os fins justificam os meios, o que representa um retrocesso histórico de vários séculos, com a supressão de garantias e direitos duramente conquistados, sem os quais o que sobra é um simulacro de processo; enfim, uma tentativa de justiçamento, como não se via nem mesmo na época da ditadura.

Magistrados das altas Cortes do país estão sendo atacados ou colocados sob suspeita para não decidirem favoravelmente aos acusados em recursos e habeas corpus ou porque decidiram ou votaram (de acordo com seus convencimentos e consciências) pelo restabelecimento da liberdade de acusados no âmbito da Operação Lava Jato, a ponto de se ter suscitado, em desagravo, a manifestação de apoio e solidariedade de entidades associativas de juízes contra esses abusos, preocupadas em garantir a higidez da jurisdição. Isto é gravíssimo e, além de representar uma tentativa de supressão da independência judicial, revela que aos acusados não está sendo assegurado o direito a um justo processo.

É de todo inaceitável, numa Justiça que se pretenda democrática, que a prisão provisória seja indisfarçavelmente utilizada para forçar a celebração de acordos de delação premiada, como, aliás, já defenderam publicamente alguns Procuradores que atuam no caso. Num dia os réus estão encarcerados por força de decisões que afirmam a imprescindibilidade de suas prisões, dado que suas liberdades representariam gravíssimo risco à ordem pública; no dia seguinte, fazem acordo de delação premiada e são postos em liberdade, como se num passe de mágica toda essa imprescindibilidade da prisão desaparecesse. No mínimo, a prática evidencia o quão artificiais e puramente retóricos são os fundamentos utilizados nos decretos de prisão. É grave o atentado à Constituição e ao Estado de Direito e é inadmissível que Poder Judiciário não se oponha a esse artifício.

É inconcebível que os processos sejam conduzidos por magistrado que atua com parcialidade, comportando-se de maneira mais acusadora do que a própria acusação. Não há processo justo quando o juiz da causa já externa seu convencimento acerca da culpabilidade dos réus em decretos de prisão expedidos antes ainda do início das ações penais. Ademais, a sobreposição de decretos de prisão (para embaraçar o exame de legalidade pelas Cortes Superiores e, consequentemente, para dificultar a soltura dos réus) e mesmo a resistência ou insurgência de um magistrado quanto ao cumprimento de decisões de outras instâncias, igualmente revelam uma atuação judicial arbitrária e absolutista, de todo incompatível com o papel que se espera ver desempenhado por um juiz, na vigência de um Estado de Direito.

Por tudo isso, os advogados, professores, juristas e integrantes da comunidade jurídica que subscrevem esta carta vêm manifestar publicamente indignação e repúdio ao regime de supressão episódica de direitos e garantias que está contaminando o sistema de justiça do país. Não podemos nos calar diante do que vem acontecendo neste caso. É fundamental que nos insurjamos contra estes abusos. O Estado de Direito está sob ameaça e a atuação do Poder Judiciário não pode ser influenciada pela publicidade opressiva que tem sido lançada em desfavor dos acusados e que lhes retira, como consequência, o direito a um julgamento justo e imparcial – direito inalienável de todo e qualquer cidadão e base fundamental da democracia. Urge uma postura rigorosa de respeito e observância às leis e à Constituição brasileira.”

Alexandre Aroeira Salles
Alexandre Lopes
Alexandre Wunderlich
André de Luizi Correia
André Karam Trindade
André Machado Maya
Antonio Carlos de Almeida Castro
Antonio Claudio Mariz de Oliveira
Antonio Pedro Melchior
Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo
Antonio Tovo
Antonio Vieira
Ary Bergher
Augusto de Arruda Botelho
Augusto Jobim do Amaral
Aury Lopes Jr.
Bartira Macedo de Miranda Santos
Bruno Aurélio
Camila Vargas do Amaral
Camile Eltz de Lima
Celso Antônio Bandeira de Mello
Cezar Roberto Bitencourt
Cleber Lopes de Oliveira
Daniela Portugal
David Rechulski
Denis Sampaio
Djefferson Amadeus
Dora Cavalcanti
Eduardo Carnelós
Eduardo de Moraes
Eduardo Sanz
Edward de Carvalho
Felipe Martins Pinto
Fernando da Costa Tourinho neto
Fernando Santana
Flavia Rahal
Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto
Francisco Ortigão
Gabriela Zancaner
Guilherme Henrique Magaldi Netto
Guilherme San Juan
Guilherme Ziliani Carnelós
Gustavo Alberine Pereira
Gustavo Badaró
Hortênsia M. V. Medina
Ilídio Moura
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Jader Marques
João Geraldo Piquet Carneiro
João Porto Silvério Júnior
José Carlos Porciúncula
Julia Sandroni
Kleber Luiz Zanchim
Lenio Luiz Streck
Leonardo Avelar Guimarães
Leonardo Canabrava Turra
Leonardo Vilela
Letícia Lins e Silva
Liliane de Carvalho Gabriel
Lourival Vieira
Luiz Carlos Bettiol
Luiz Guilherme Arcaro Conci
Luiz Henrique Merlin
Luiz Tarcisio T. Ferreira
Maira Salomi
Marcelo Turbay Freiria
Marco Aurélio Nunes da Silveira
Marcos Ebehardt
Marcos Paulo Veríssimo
Mariana Madera
Marina Cerqueira
Maurício Dieter
Maurício Portugal Ribeiro
Maurício Zockun
Miguel Tedesco Wedy
Nabor Bulhões
Nélio Machado
Nestor Eduardo Araruna Santiago
Nilson Naves
Paulo Emílio Catta Preta
Pedro Estevam Serrano
Pedro Ivo Velloso
Pedro Machado de Almeida Castro
Rafael Nunes da Silveira
Rafael Rucherman
Rafael Valim
Raphael Mattos
Renato de Moraes
Roberta Cristina Ribeiro de Castro Queiroz
Roberto Garcia
Roberto Podval
Roberto Telhada
Rogerio Maia Garcia
Salah H. Khaled Jr.
Sergio Ferraz
Técio Lins e Silva
Thigo M. Minagé
Thiago Neuwert
Tiago Lins e Silva
Ticiano Figueiredo
Tito Amaral de Andrade
Victoria de Sulocki
Weida Zancaner

Gilmar Fraga: pá de cal | GZH

09
Nov20

E Bolsonaro, sem Trump e com uma nova América Latina?

Talis Andrade

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Por Gilvandro Filho /Jornalistas pela Democracia

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Depois da “maratona de Nevada”, em que o mundo todo passou quatro dias em frente à TV esperando a definição da eleição presidencial americana, a impressão que se tem é de que o mundo acorda de um pesadelo. Não há nada, dentro o que poderia acontecer com uma hipotética reeleição de Donald Trump, que fosse alvissareiro. Do combate à Covid-19 ao preconceito crônico que parte do mundo passou a espelhar, vindo dos Estados Unidos e refletido em países amigos do presidente alaranjado que teve, neste sábado, através do anúncio dos votos do Estado da Pensilvânia, o seu mandato mandado solenemente às favas.

Não que o planeta esteja, a partir de agora, prestes a se tornar o melhor dos mundos. A vitória de Joe Biden não significa a redenção da espécie humana, muito menos abre portas, necessariamente, para novos tempos em termos de avanços sociais, liberdades democráticas em nível global ou coisas do gênero. Biden nunca acenou com tratamento politicamente digno com a Venezuela ou com o fechamento de Guantánamo, por exemplo. O resultado das urnas americanas não salva o mundo de nada. A não ser de tudo de sombrio e tenebroso que um novo mandato de Trump poderia expelir sobre o planeta. Aí, sim, foi uma vitória da Humanidade.

Falamos da saída de cena de um presidente autoritário, arrogante, mal educado, preconceituoso, que trata com absoluto desprezo a razão e a ciência, que levou o seu país a uma das piores tragédias sanitárias de todos os tempos, que trata seus desafetos como párias miseráveis. Falamos do final de linha constrangedor de um presidente que, derrotado impiedosamente em sua tentativa de se reeleger, já avisou que venderá caro a sua saída da cadeira presidencial, numa demonstração patética da falta de mínimas condições para conviver numa democracia, muito menos de querer falar em nome dela.

É a esse presidente, não propriamente aos Estados Unidos, que o presidente do Brasil devota um servilismo que não encontra precedente na política externa brasileira. Ou “era” a esse presidente, para usar o tempo de verbo que o mundo, hoje, se esbalda ao adotar. A derrota de Trump, com toda certeza, abrirá caminho para mudanças no mundo e, de forma muito particular, na América Latina. Já estão aí para contar a História a Argentina, a Bolívia, o Chile. Ao mesmo tempo, trata-se de um evento eleitoral que tira do governo de Jair Bolsonaro o seu mais aconchegante ninho político. O fantasma da esquerda na América do Sul, sem a sombra de Trump lá na parte de cima do continente, torna-se mais aterrador para o presidente brasileiro, a partir de agora.

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É natural se falar, doravante, em isolamento do mandatário brasileiro. Mesmo que consiga vir a flertar com uma linha mais pragmática em relação ao governo Biden, o que seria o caminho mais lógico, Bolsonaro tem Trump e sua linha de pensamento e conduta como que entranhados em sua alma. Afinal, os dois presidentes são muito amigos, como garante o deputado federal e filho Eduardo Bolsonaro, o que um dia sonhou em ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos – nos EUA de Trump, que começou a murchar hoje.

Bolsonaro foi eleito em circunstâncias parecidas com as que elegeram Trump. A bandeira das notícias falsas, acusações sem provas e ameaças até de extermínio físico tremulou, altaneira, nas campanhas dos dois (cada uma em seu tempo). A força dada ao renascimento de uma extrema-direita irascível e tosca teve, de ambos, o combustível necessário para formar uma força política centrada no ódio e na violência. Os dois agrediram a lógica e ciência no combate à Covid-19, desenhando da doença e disseminando remédios ineficazes, como a cloroquina, permitindo que a doença se espalhasse, devastadora, nos dois países. Tanto um quanto outro mantém uma oposição amazônica à proteção da natureza. Sem falar no componente religioso/ideológico que faz dos dois presidentes personagens de um mundo atrasado e extemporâneo, dividido os “homens de bem” cristãos e o globalismo ateu, entre patriotas e comunistas.

No norte, o dono desse tipo de discurso e das promessas de uma ação política ainda mais retrógrada e perigosa viu ruir sua condição de presidente da maior potência ocidental. Por aqui, do lado de baixo do equador, outro projeto de reeleição periga ir para o brejo daqui a dois anos sem a sombra do seu topetudo protetor e à luz de uma nova tendência política que começa a varrer a América Latina.

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24
Jan20

Com juiz das garantias, Brasil se aproxima dos países mais desenvolvidos

Talis Andrade

A mudança é capaz de proporcionar uma maior imparcialidade ao juiz que vai julgar o mérito das causas. A imparcialidade aumenta porque você divide as funções de investigação e julgamento, dissociando o juiz que decretou medidas iniciais do que irá julgar

 

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Por Thiago Crepaldi e Tiago Angelo 

ConJur

A ideia da figura do juiz das garantias não é nada nova. Na verdade, está em prática já há alguns séculos em países mais maduros. No Código de Instrução Criminal de Napoleão Bonaparte, de 1808, que se difundiu por toda a Europa, já se estabelecia a separação das funções de acusação, instrução e julgamento como uma forma de garantir a imparcialidade dos atores.

Responsável pelo levantamento desse e outros dados históricos acerca do juiz das garantias, instituto processual penal que o Brasil deve adotar com a sanção da Lei 13.964/19, o desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS) Paulo Gustavo Guedes Fontes afirma que a medida trará avanços para todo o sistema judicial.

"Quando um juiz quebra sigilo, decreta prisão, está dizendo que são fortes os indícios de que há um crime, de que há autoria. E existe uma tendência humana de se apegar ao que fizemos e decidimos. É muito difícil que o ser humano volte atrás", diz. "Quando você separa as funções, ganha em objetividade."

Paulo Fontes, que integra uma das duas turmas criminais do TRF-3, considerou a introdução do juiz das garantias positiva, pois reforça a imparcialidade do juiz e aproxima o Brasil do sistema processual de países como Itália, França e Espanha. "Evoluímos mesmo para um sistema próximo ao italiano. As investigações ficam a cargo da Polícia e do MP, que recorrem a um juiz de garantias se necessário."

Sobre o argumento dos gastos com a implantação do juiz das garantias, Paulo Fontes acredita que ele não procede. "Não precisa contratar novos juízes, isso é uma mera especialização das funções, é uma questão de distribuição de competência", sustenta, tal como disse o ministro Dias Toffoli, do STF, ao decidir liminarmente nas ADIs 6.298, 6.299 e 6.300, que questionam a constitucionalidade do instituto.

Na entrevista, Fontes faz comparações com os sistemas de países europeus e diferencia a atuação do juiz das garantias e do juiz instrutor. Também levanta a seguinte consideração: o Ministério Público vai espelhar a mudança do juiz das garantias? Segundo seu entendimento, até poderia, pois não há objeções para que não o faça.

Paulo Gustavo Guedes Fontes é desembargador federal do TRF-3 há oito anos. Pertenceu ao Ministério Público Federal entre os anos de 1998 e 2012, atuando como procurador da República na 5ª Região. Professor do IDP-SP, concluiu seu doutorado em Direito do Estado na USP em 2017 e lançou, em 2018, Neoconstitucionalismo e Verdade, com reflexões na área da filosofia do direito. É pós-doutor pela Université de Lorraine (França).

 

ConJur — O que achou da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli de adiar por seis meses a implementação do juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 É boa a decisão. Do ponto de vista material, ele reconhece que é um sistema aplicado em outros países. Ele considera que o prazo é insuficiente para a implementação prática. Não foi uma decisão contrária à ideia do juiz das garantias. Pelo contrário, ele ressaltou que o instituto é utilizado em muitos países.

 

ConJur — E o senhor considera positiva a inclusão da figura do juiz das garantias no ordenamento brasileiro?
Paulo Fontes —
 Considero que a mudança é capaz de proporcionar uma maior imparcialidade ao juiz que vai julgar o mérito das causas. A imparcialidade aumenta porque você divide as funções de investigação e julgamento, dissociando o juiz que decretou medidas iniciais do que irá julgar.

Muitas vezes, as medidas iniciais são as mais rumorosas em termos de imprensa. Quando um juiz quebra sigilo, decreta prisão, está dizendo que são fortes os indícios de que há um crime, de que há autoria. E existe uma tendência humana de se apegar ao que fizemos e decidimos. É muito difícil que o ser humano volte atrás — mais ainda na vida pública —, porque seu nome saiu no jornal, você deu entrevista, foi alvo de críticas.

Na Europa, existe essa separação desde o século 19 com o Code d’instruction criminelle de Napoleão, de 1808. É a chamada "separação das funções de acusação, instrução e julgamento". A ideia foi a de deixar que o magistrado que vai julgar chegue "novo" naquela situação. Assim é mais fácil vislumbrar excessos e ilegalidades na atuação do juiz inicial. Quando julgamos uma apelação, por exemplo, estamos mais distanciados da investigação. Isso permite que os tribunais tenham um maior distanciamento do caso. Quando você separa as funções, ganha em objetividade.

 

ConJur — Entidades como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) protocolaram ações diretas de inconstitucionalidade contra o juiz das garantias. Por que esse descontentamento por parte dos magistrados, principalmente os das instâncias ordinárias?
Paulo Fontes —
 As associações não receberam bem a ideia , talvez porque ela representa uma mudança muito grande na nossa tradição jurídica. Com efeito, de acordo com o artigo 83 do CPP, o que acontecia era o contrário: o juiz que despachou nos autos, durante a fase de inquérito, ficava vinculado ao processo. É o contrário do novo sistema. A mudança foi muito grande e isso pode ter causado certo impacto, além da preocupação com o prazo exíguo para implantação.

 

ConJur — Os magistrados que se posicionaram contra a medida afirmam que o juiz julgador é o mais indicado para apreciar o caso justamente por ter acompanhado o inquérito; que a implementação provocaria o inchaço do Judiciário, gerando maiores gastos; e que representaria uma ofensa ao juiz natural e à Constituição. Acredita que esses são argumentos legítimos?
Paulo Fontes —
 São legítimos. É importante que se discuta isso. Mas, com todas as vênias, eu discordo. O juiz natural é o juiz definido legalmente, previamente aos casos. Então, só haveria uma ofensa ao juiz natural se agora considerássemos nulos os processos que estão em curso, consequência que o ministro Toffoli já afastou. Também não há nada na Constituição que impeça a instituição do juiz das garantias. Ao contrário, você pode entender que o princípio acusatório do artigo 129 da Constituição Federal aconselha sua existência para que o juiz de julgamento aja da forma mais distanciada possível.

Sobre o juiz que acompanha o inquérito saber mais sobre o caso, quem julga vai ter acesso a todo o material que foi produzido pelo juiz das garantias. Uma parte vai ficar protegida justamente para não influenciar o julgamento, como, por exemplo, algum depoimento tomado na instrução. Mas se o juiz das garantias quebrar o sigilo bancário e isso propiciar ao Ministério Público o oferecimento da denúncia, o juiz do processo vai ter todo aquele material. Se esse argumento fosse válido, um tribunal também não faria bons julgamentos e trabalharíamos com um único juiz, que é o que conhece o caso desde o início. A fase investigativa exige do juiz um tipo de envolvimento que atrapalha sua continuidade no caso: há necessariamente um contato [na fase de investigação] entre o juiz e os órgãos de persecução penal, que são a polícia e o Ministério Público. Esse envolvimento é natural, mas cria um tipo de proximidade que pode comprometer a imparcialidade na hora de analisar o conjunto probatório depois de tudo que foi coletado.

Quanto ao argumento dos gastos, que tem sido muito ventilado, também entendo que não procede. Não precisa contratar novos juízes, essa é uma mera especialização das funções, uma questão de distribuição de competência. Pode ser feito com juízes que já existem. Então, por exemplo, em uma cidade como São Paulo, podemos pensar que basta um juiz das garantias para todos os juízes federais criminais que atuam no primeiro grau. Como? Se especializa por um ato do tribunal. Por exemplo, tal vara vai exercer as funções de juiz das garantias do artigo 3º-B do Código de Processo Penal. Então, o Ministério Público vai se dirigir àquele juiz, que irá adquirir uma expertise no contato com esses órgãos, Coaf, Receita, MP, Banco Central. Ele se tornará um juiz mais especializado nisso. Ao final da investigação, se ele receber a denúncia, encaminha para distribuição entre as demais varas.

Podem dizer que com a medida teremos menos juízes julgando. Mas, por outro lado, os que não estão sendo juízes da instrução vão ter menos trabalho, porque não vão estudar pedido de interceptação telefônica, de sigilo, de prisão, não irão receber as denúncias, etc. É uma redistribuição do serviço.

 

ConJur — Como se daria a implementação do juiz das garantias? É uma tarefa difícil?
Paulo Fontes —
 Não é difícil, basta algum esforço, como foi feito nas audiências de custódia. Todo mundo falou que não se conseguiria implementar a audiência de custódia. Hoje ela está funcionando e foi uma maravilha para o país. Mas, para isso, foi necessária uma certa disposição institucional, porque, de fato, podem existir dificuldades.

Vamos considerar uma comarca do Nordeste com apenas um juiz. Mas, a 50 km vai ter um outro juiz sozinho. Um pode ser o juiz das garantias do outro. Não tem problema. O juiz do processo é o juiz do local da infração. Mas a lei de organização judiciária vai dizer "em cumprimento do artigo 3º-B do CPP, será juiz das garantias dos processos de competência da comarca X a comarca vizinha". Aí o Ministério Público se dirige àquele outro juiz. Os problemas logísticos existem, mas eles são superados e não representam, necessariamente, um aumento significativo de gastos do Judiciário.

 

ConJur — A PGR recomendou que a implementação, ao invés de ocorrer em um mês, acontecesse dentro do prazo de um ano. O argumento era o de que em muitas comarcas — 20% delas — existe apenas um juiz. Assim, diz a PGR, para haver essa rotação de um juiz investigar o processo que será julgado na comarca vizinha, seria necessária a tramitação dos processos pela internet, o que, no caso da Justiça Federal, só poderá ocorrer no final do primeiro semestre de 2020. O que achou da recomendação?
Paulo Fontes —
 A discussão fica superada com a decisão do ministro Toffoli. Teremos seis meses para a implantação e um grupo de trabalho do CNJ que também teve sua atuação prorrogada. Os tribunais deverão em algum momento baixar seus atos, especializar varas etc. Na época em que houve a especialização das turmas criminais aqui do TRF da 3ª Região disseram que seria muito difícil. Mas a melhor solução foi implantar e resolver os problemas à medida que eles foram aparecendo. A gente conseguiu, e em pouco tempo estava funcionando a 4ª Seção.

Tem uma questão interessante embutida aí, que é a seguinte: o Ministério Público vai espelhar a mudança do juiz das garantias? O procurador ou promotor que atua na fase de investigação vai ser o mesmo do processo? É algo que envolve uma questão jurídica, principiológica. A mesma inspiração do juiz de garantias se aplica ao Ministério Público ou não? Se existem duas comarcas, e o procurador do local dos fatos vai atuar na fase judicial e de inquérito, então, sim, ele teria que deduzir pedidos perante a outra comarca. Mas o MP pode também instituir um “promotor de garantias” que vai funcionar junto ao juiz de garantias. Se isso vai ser feito, eu não sei dizer. Mas é uma questão que talvez tenha a ver com a preocupação da PGR.

 

ConJur — Parece difícil isso acontecer, porque o promotor, ao contrário do juiz, não tem o dever de imparcialidade.
Paulo Fontes —
 Muitas vezes se levanta essa questão. Existe a súmula 234 do STJ dizendo, justamente, que o promotor, o membro do MP que atuou no inquérito não está impedido de atuar no processo, mas isso mostra que a discussão é colocada. Não é absurda. Penso que, nesse momento, o princípio não é transferível, obrigatoriamente, ao MP. Mas também não haveria impedimento de que fosse.

 

ConJur — Olhando para fora, onde se adotou o juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 Napoleão Bonaparte ficou conhecido pelo Code Napoléon, de 1804, mas o Código de Instrução Criminal dele, de 1808, também se difundiu por toda a Europa. Esse código já estabelecia a “separação das funções de acusação, instrução e julgamento” como uma forma de garantir a imparcialidade dos atores. Nesta distribuição, o Ministério Público acusa, mas não instrui, nem julga. O promotor acusa perante o juiz de instrução — salvo em casos de despenalização, como transação penal. A partir daí, o juiz de instrução investiga. Ele é aquele cara solitário, quase um delegado, um investigador, um detetive que recolhe provas, intima no gabinete, toma depoimento, faz busca e apreensão com a ajuda da polícia ou às vezes ele próprio. Se ele achar que não há elementos, arquiva. Se achar que há, manda para uma “formação de julgamento”, o que seria mais ou menos um recebimento da denúncia. Vê-se então que o juiz de instrução não participa do julgamento final do caso, justamente para preservar a imparcialidade do julgamento. É o mesmo princípio que inspirou a nossa recente alteração legislativa.

Esse mesmo mecanismo existe em Portugal e na Espanha, e existiu na Itália até 1989.

Na Espanha se chama “juzgados de instrucción” [juizados de instrução]. Está na lei orgânica do Poder Judicial, no artigo 87. A Audiência Nacional, que é um órgão judicial de primeiro grau importante, tem jurisdição em todo o território espanhol, com competência penal para crimes de maior gravidade e relevância, como terrorismo, crime organizado e narcotráfico. Vários juizados centrais de instrução são vinculados ao órgão. Eles atuam na investigação, mas não possuem competência de julgamento.

Em Portugal, o Ministério Público é o órgão responsável pela direção do inquérito e pode determinar medidas gravosas em face dos acusados, inclusive a prisão fora da situação em flagrante, observando-se depois a necessidade de comparecimento do investigado perante o juiz. A direção do inquérito cabe ao Ministério Público e só haverá intervenção do juiz nos casos excepcionais previstos em lei, em que se relacionem com a defesa dos direitos das garantias do cidadão. Em Portugal, vários atos de investigações são privativos do juiz de instrução, como a busca e apreensão e interceptação telefônica. O juiz de instrução termina o seu ofício com o arquivamento da notícia ou, ao contrário, com uma decisão instrutória que pronuncia o investigado e remete os autos a uma composição de julgamento.

Não é uma novidade na Europa. A Corte Europeia de Direitos Humanos vem reconhecendo que a separação das funções de acusação, instrução e julgamento é um elemento importante, senão fundamental para a imparcialidade dos tribunais, e o presidente Toffoli também destacou esse aspecto na sua decisão

Aliás, a figura do juiz das garantias já existiu no Brasil! No Império havia a distinção entre "juiz da devassa" e "juiz julgador". No inquérito da Inconfidência Mineira, por exemplo, a devassa ou o inquérito coube a determinados juízes, mas o julgamento foi feito por outros. O juiz que efetuava diligências para averiguação do crime não podia julgar a ação penal.

 

ConJur — Poderia explicar, só para ficar claro, o que é o juiz de instrução lá fora e o juiz das garantias aqui no Brasil? É correto chamarmos de juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 Temos uma semelhança do juiz de garantias com o juiz de instrução. Justamente nessa ideia de que o juiz que investiga não pode julgar o processo. Mas a alteração legislativa não significou a adoção entre nós do juizado de instrução. O juiz de instrução tem uma função investigativa maior, ele não tem só o encargo de garantia, de deferir medidas gravosas. Ele próprio tem função de colher dados e elementos de prova, e age por um impulso oficial depois de provocado pelo Parquet.

O nosso juiz de garantias, e a denominação me parece correta, assemelha-se mais ao GIP italiano, o "giudice per l'indagini preliminari" [juiz para investigações preliminares]. Evoluímos para um sistema próximo ao italiano. As investigações ficam a cargo da Polícia e do MP, que recorrem a um juiz de garantias se necessário. Esse juiz italiano, como o nosso recém-criado juiz de garantias, também está impedido de julgar o caso.

Na França sobreveio uma mudança muito importante com a lei Guigou, do ano 2000; ao lado do juiz de instrução, que já foi considerado o homem mais poderoso da França, foi criado o JLD, o "juiz das liberdades e da detenção". Retirou-se do juiz de instrução o poder de decretar a prisão do investigado. Esse JLD francês se parece também com o nosso juiz de garantias. Ele também, como o juiz de instrução, não pode participar do julgamento.

Portanto as mudanças são bem vindas e estão de acordo com o que acontece nos países mais desenvolvidos.

Os dados que citei nessa entrevista foram fruto de uma pesquisa extensa, que será publicada em revista científica, realizada em conjunto por mim e pelo juiz federal e professor José Carlos Francisco, que acaba de ser promovido a desembargador do nosso TRF-3 e virá enriquecer o nosso tribunal.

 

21
Jan20

Com juiz das garantias, Brasil se aproxima dos países mais desenvolvidos

Talis Andrade

 

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Por Thiago Crepaldi e Tiago Angelo

ConJur

 

A ideia da figura do juiz das garantias não é nada nova. Na verdade, está em prática já há alguns séculos em países mais maduros. No Código de Instrução Criminal de Napoleão Bonaparte, de 1808, que se difundiu por toda a Europa, já se estabelecia a separação das funções de acusação, instrução e julgamento como uma forma de garantir a imparcialidade dos atores.

Responsável pelo levantamento desse e outros dados históricos acerca do juiz das garantias, instituto processual penal que o Brasil deve adotar com a sanção da Lei 13.964/19, o desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS) Paulo Gustavo Guedes Fontes afirma que a medida trará avanços para todo o sistema judicial.

"Quando um juiz quebra sigilo, decreta prisão, está dizendo que são fortes os indícios de que há um crime, de que há autoria. E existe uma tendência humana de se apegar ao que fizemos e decidimos. É muito difícil que o ser humano volte atrás", diz. "Quando você separa as funções, ganha em objetividade."

Paulo Fontes, que integra uma das duas turmas criminais do TRF-3, considerou a introdução do juiz das garantias positiva, pois reforça a imparcialidade do juiz e aproxima o Brasil do sistema processual de países como Itália, França e Espanha. "Evoluímos mesmo para um sistema próximo ao italiano. As investigações ficam a cargo da Polícia e do MP, que recorrem a um juiz de garantias se necessário."

Sobre o argumento dos gastos com a implantação do juiz das garantias, Paulo Fontes acredita que ele não procede. "Não precisa contratar novos juízes, isso é uma mera especialização das funções, é uma questão de distribuição de competência", sustenta, tal como disse o ministro Dias Toffoli, do STF, ao decidir liminarmente nas ADIs 6.298, 6.299 e 6.300, que questionam a constitucionalidade do instituto.

Na entrevista, Fontes faz comparações com os sistemas de países europeus e diferencia a atuação do juiz das garantias e do juiz instrutor. Também levanta a seguinte consideração: o Ministério Público vai espelhar a mudança do juiz das garantias? Segundo seu entendimento, até poderia, pois não há objeções para que não o faça.

Paulo Gustavo Guedes Fontes é desembargador federal do TRF-3 há oito anos. Pertenceu ao Ministério Público Federal entre os anos de 1998 e 2012, atuando como procurador da República na 5ª Região. Professor do IDP-SP, concluiu seu doutorado em Direito do Estado na USP em 2017 e lançou, em 2018, Neoconstitucionalismo e Verdade, com reflexões na área da filosofia do direito. É pós-doutor pela Université de Lorraine (França).

 

ConJur — O que achou da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli de adiar por seis meses a implementação do juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 É boa a decisão. Do ponto de vista material, ele reconhece que é um sistema aplicado em outros países. Ele considera que o prazo é insuficiente para a implementação prática. Não foi uma decisão contrária à ideia do juiz das garantias. Pelo contrário, ele ressaltou que o instituto é utilizado em muitos países.

 

ConJur — E o senhor considera positiva a inclusão da figura do juiz das garantias no ordenamento brasileiro?
Paulo Fontes —
 Considero que a mudança é capaz de proporcionar uma maior imparcialidade ao juiz que vai julgar o mérito das causas. A imparcialidade aumenta porque você divide as funções de investigação e julgamento, dissociando o juiz que decretou medidas iniciais do que irá julgar.

Muitas vezes, as medidas iniciais são as mais rumorosas em termos de imprensa. Quando um juiz quebra sigilo, decreta prisão, está dizendo que são fortes os indícios de que há um crime, de que há autoria. E existe uma tendência humana de se apegar ao que fizemos e decidimos. É muito difícil que o ser humano volte atrás — mais ainda na vida pública —, porque seu nome saiu no jornal, você deu entrevista, foi alvo de críticas.

Na Europa, existe essa separação desde o século 19 com o Code d’instruction criminelle de Napoleão, de 1808. É a chamada "separação das funções de acusação, instrução e julgamento". A ideia foi a de deixar que o magistrado que vai julgar chegue "novo" naquela situação. Assim é mais fácil vislumbrar excessos e ilegalidades na atuação do juiz inicial. Quando julgamos uma apelação, por exemplo, estamos mais distanciados da investigação. Isso permite que os tribunais tenham um maior distanciamento do caso. Quando você separa as funções, ganha em objetividade.

 

ConJur — Entidades como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) protocolaram ações diretas de inconstitucionalidade contra o juiz das garantias. Por que esse descontentamento por parte dos magistrados, principalmente os das instâncias ordinárias?
Paulo Fontes —
 As associações não receberam bem a ideia , talvez porque ela representa uma mudança muito grande na nossa tradição jurídica. Com efeito, de acordo com o artigo 83 do CPP, o que acontecia era o contrário: o juiz que despachou nos autos, durante a fase de inquérito, ficava vinculado ao processo. É o contrário do novo sistema. A mudança foi muito grande e isso pode ter causado certo impacto, além da preocupação com o prazo exíguo para implantação.

 

ConJur — Os magistrados que se posicionaram contra a medida afirmam que o juiz julgador é o mais indicado para apreciar o caso justamente por ter acompanhado o inquérito; que a implementação provocaria o inchaço do Judiciário, gerando maiores gastos; e que representaria uma ofensa ao juiz natural e à Constituição. Acredita que esses são argumentos legítimos?
Paulo Fontes —
 São legítimos. É importante que se discuta isso. Mas, com todas as vênias, eu discordo. O juiz natural é o juiz definido legalmente, previamente aos casos. Então, só haveria uma ofensa ao juiz natural se agora considerássemos nulos os processos que estão em curso, consequência que o ministro Toffoli já afastou. Também não há nada na Constituição que impeça a instituição do juiz das garantias. Ao contrário, você pode entender que o princípio acusatório do artigo 129 da Constituição Federal aconselha sua existência para que o juiz de julgamento aja da forma mais distanciada possível.

Sobre o juiz que acompanha o inquérito saber mais sobre o caso, quem julga vai ter acesso a todo o material que foi produzido pelo juiz das garantias. Uma parte vai ficar protegida justamente para não influenciar o julgamento, como, por exemplo, algum depoimento tomado na instrução. Mas se o juiz das garantias quebrar o sigilo bancário e isso propiciar ao Ministério Público o oferecimento da denúncia, o juiz do processo vai ter todo aquele material. Se esse argumento fosse válido, um tribunal também não faria bons julgamentos e trabalharíamos com um único juiz, que é o que conhece o caso desde o início. A fase investigativa exige do juiz um tipo de envolvimento que atrapalha sua continuidade no caso: há necessariamente um contato [na fase de investigação] entre o juiz e os órgãos de persecução penal, que são a polícia e o Ministério Público. Esse envolvimento é natural, mas cria um tipo de proximidade que pode comprometer a imparcialidade na hora de analisar o conjunto probatório depois de tudo que foi coletado.

Quanto ao argumento dos gastos, que tem sido muito ventilado, também entendo que não procede. Não precisa contratar novos juízes, essa é uma mera especialização das funções, uma questão de distribuição de competência. Pode ser feito com juízes que já existem. Então, por exemplo, em uma cidade como São Paulo, podemos pensar que basta um juiz das garantias para todos os juízes federais criminais que atuam no primeiro grau. Como? Se especializa por um ato do tribunal. Por exemplo, tal vara vai exercer as funções de juiz das garantias do artigo 3º-B do Código de Processo Penal. Então, o Ministério Público vai se dirigir àquele juiz, que irá adquirir uma expertise no contato com esses órgãos, Coaf, Receita, MP, Banco Central. Ele se tornará um juiz mais especializado nisso. Ao final da investigação, se ele receber a denúncia, encaminha para distribuição entre as demais varas.

Podem dizer que com a medida teremos menos juízes julgando. Mas, por outro lado, os que não estão sendo juízes da instrução vão ter menos trabalho, porque não vão estudar pedido de interceptação telefônica, de sigilo, de prisão, não irão receber as denúncias, etc. É uma redistribuição do serviço.

 

ConJur — Como se daria a implementação do juiz das garantias? É uma tarefa difícil?
Paulo Fontes —
 Não é difícil, basta algum esforço, como foi feito nas audiências de custódia. Todo mundo falou que não se conseguiria implementar a audiência de custódia. Hoje ela está funcionando e foi uma maravilha para o país. Mas, para isso, foi necessária uma certa disposição institucional, porque, de fato, podem existir dificuldades.

Vamos considerar uma comarca do Nordeste com apenas um juiz. Mas, a 50 km vai ter um outro juiz sozinho. Um pode ser o juiz das garantias do outro. Não tem problema. O juiz do processo é o juiz do local da infração. Mas a lei de organização judiciária vai dizer "em cumprimento do artigo 3º-B do CPP, será juiz das garantias dos processos de competência da comarca X a comarca vizinha". Aí o Ministério Público se dirige àquele outro juiz. Os problemas logísticos existem, mas eles são superados e não representam, necessariamente, um aumento significativo de gastos do Judiciário.

 

ConJur — A PGR recomendou que a implementação, ao invés de ocorrer em um mês, acontecesse dentro do prazo de um ano. O argumento era o de que em muitas comarcas — 20% delas — existe apenas um juiz. Assim, diz a PGR, para haver essa rotação de um juiz investigar o processo que será julgado na comarca vizinha, seria necessária a tramitação dos processos pela internet, o que, no caso da Justiça Federal, só poderá ocorrer no final do primeiro semestre de 2020. O que achou da recomendação?
Paulo Fontes —
 A discussão fica superada com a decisão do ministro Toffoli. Teremos seis meses para a implantação e um grupo de trabalho do CNJ que também teve sua atuação prorrogada. Os tribunais deverão em algum momento baixar seus atos, especializar varas etc. Na época em que houve a especialização das turmas criminais aqui do TRF da 3ª Região disseram que seria muito difícil. Mas a melhor solução foi implantar e resolver os problemas à medida que eles foram aparecendo. A gente conseguiu, e em pouco tempo estava funcionando a 4ª Seção.

Tem uma questão interessante embutida aí, que é a seguinte: o Ministério Público vai espelhar a mudança do juiz das garantias? O procurador ou promotor que atua na fase de investigação vai ser o mesmo do processo? É algo que envolve uma questão jurídica, principiológica. A mesma inspiração do juiz de garantias se aplica ao Ministério Público ou não? Se existem duas comarcas, e o procurador do local dos fatos vai atuar na fase judicial e de inquérito, então, sim, ele teria que deduzir pedidos perante a outra comarca. Mas o MP pode também instituir um “promotor de garantias” que vai funcionar junto ao juiz de garantias. Se isso vai ser feito, eu não sei dizer. Mas é uma questão que talvez tenha a ver com a preocupação da PGR.

 

ConJur — Parece difícil isso acontecer, porque o promotor, ao contrário do juiz, não tem o dever de imparcialidade.
Paulo Fontes —
 Muitas vezes se levanta essa questão. Existe a súmula 234 do STJ dizendo, justamente, que o promotor, o membro do MP que atuou no inquérito não está impedido de atuar no processo, mas isso mostra que a discussão é colocada. Não é absurda. Penso que, nesse momento, o princípio não é transferível, obrigatoriamente, ao MP. Mas também não haveria impedimento de que fosse.

 

ConJur — Olhando para fora, onde se adotou o juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 Napoleão Bonaparte ficou conhecido pelo Code Napoléon, de 1804, mas o Código de Instrução Criminal dele, de 1808, também se difundiu por toda a Europa. Esse código já estabelecia a “separação das funções de acusação, instrução e julgamento” como uma forma de garantir a imparcialidade dos atores. Nesta distribuição, o Ministério Público acusa, mas não instrui, nem julga. O promotor acusa perante o juiz de instrução — salvo em casos de despenalização, como transação penal. A partir daí, o juiz de instrução investiga. Ele é aquele cara solitário, quase um delegado, um investigador, um detetive que recolhe provas, intima no gabinete, toma depoimento, faz busca e apreensão com a ajuda da polícia ou às vezes ele próprio. Se ele achar que não há elementos, arquiva. Se achar que há, manda para uma “formação de julgamento”, o que seria mais ou menos um recebimento da denúncia. Vê-se então que o juiz de instrução não participa do julgamento final do caso, justamente para preservar a imparcialidade do julgamento. É o mesmo princípio que inspirou a nossa recente alteração legislativa.

Esse mesmo mecanismo existe em Portugal e na Espanha, e existiu na Itália até 1989.

Na Espanha se chama “juzgados de instrucción” [juizados de instrução]. Está na lei orgânica do Poder Judicial, no artigo 87. A Audiência Nacional, que é um órgão judicial de primeiro grau importante, tem jurisdição em todo o território espanhol, com competência penal para crimes de maior gravidade e relevância, como terrorismo, crime organizado e narcotráfico. Vários juizados centrais de instrução são vinculados ao órgão. Eles atuam na investigação, mas não possuem competência de julgamento.

Em Portugal, o Ministério Público é o órgão responsável pela direção do inquérito e pode determinar medidas gravosas em face dos acusados, inclusive a prisão fora da situação em flagrante, observando-se depois a necessidade de comparecimento do investigado perante o juiz. A direção do inquérito cabe ao Ministério Público e só haverá intervenção do juiz nos casos excepcionais previstos em lei, em que se relacionem com a defesa dos direitos das garantias do cidadão. Em Portugal, vários atos de investigações são privativos do juiz de instrução, como a busca e apreensão e interceptação telefônica. O juiz de instrução termina o seu ofício com o arquivamento da notícia ou, ao contrário, com uma decisão instrutória que pronuncia o investigado e remete os autos a uma composição de julgamento.

Não é uma novidade na Europa. A Corte Europeia de Direitos Humanos vem reconhecendo que a separação das funções de acusação, instrução e julgamento é um elemento importante, senão fundamental para a imparcialidade dos tribunais, e o presidente Toffoli também destacou esse aspecto na sua decisão

Aliás, a figura do juiz das garantias já existiu no Brasil! No Império havia a distinção entre "juiz da devassa" e "juiz julgador". No inquérito da Inconfidência Mineira, por exemplo, a devassa ou o inquérito coube a determinados juízes, mas o julgamento foi feito por outros. O juiz que efetuava diligências para averiguação do crime não podia julgar a ação penal.

 

ConJur — Poderia explicar, só para ficar claro, o que é o juiz de instrução lá fora e o juiz das garantias aqui no Brasil? É correto chamarmos de juiz das garantias?
Paulo Fontes —
 Temos uma semelhança do juiz de garantias com o juiz de instrução. Justamente nessa ideia de que o juiz que investiga não pode julgar o processo. Mas a alteração legislativa não significou a adoção entre nós do juizado de instrução. O juiz de instrução tem uma função investigativa maior, ele não tem só o encargo de garantia, de deferir medidas gravosas. Ele próprio tem função de colher dados e elementos de prova, e age por um impulso oficial depois de provocado pelo Parquet.

O nosso juiz de garantias, e a denominação me parece correta, assemelha-se mais ao GIP italiano, o "giudice per l'indagini preliminari" [juiz para investigações preliminares]. Evoluímos para um sistema próximo ao italiano. As investigações ficam a cargo da Polícia e do MP, que recorrem a um juiz de garantias se necessário. Esse juiz italiano, como o nosso recém-criado juiz de garantias, também está impedido de julgar o caso.

Na França sobreveio uma mudança muito importante com a lei Guigou, do ano 2000; ao lado do juiz de instrução, que já foi considerado o homem mais poderoso da França, foi criado o JLD, o "juiz das liberdades e da detenção". Retirou-se do juiz de instrução o poder de decretar a prisão do investigado. Esse JLD francês se parece também com o nosso juiz de garantias. Ele também, como o juiz de instrução, não pode participar do julgamento.

Portanto as mudanças são bem vindas e estão de acordo com o que acontece nos países mais desenvolvidos.

Os dados que citei nessa entrevista foram fruto de uma pesquisa extensa, que será publicada em revista científica, realizada em conjunto por mim e pelo juiz federal e professor José Carlos Francisco, que acaba de ser promovido a desembargador do nosso TRF-3 e virá enriquecer o nosso tribunal.

 

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