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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Jul22

Peter Lownds fala sobre como e por que traduziu romance de Urariano Mota

Talis Andrade

 

A International Publishers lançou recentemente “A Mais Longa Duração da Juventude”, um romance recente do escritor pernambucano Urariano Mota, com tradução de Peter Lownds. Em uma conversa com o site americano People’s World Peter falou sobre como e por que ele se envolveu nesse projeto

 

Eric Gordon: Vamos começar com uma pergunta direta. Como você se tornou um tradutor, Peter?

Peter Lownds: Eu cresci em uma família bilíngue. Meus pais falavam alemão quando eles não queriam que eu entendesse. Isso arrepiava meus ouvidos. Na escola, eu comecei francês na quinta série e latim na sexta, e mantive as duas línguas no ensino médio. Eu fui para Yale e gastei muito tempo no que então era chamado de “casas de arte” lá, e em Manhattan assistindo filmes estrangeiros com legenda. Quando eu tinha dezessete anos, eu vi o filme de Marcel Camus, Orfeu Negro, pela primeira vez. Ele veio a desempenhar um papel importante na minha vida e eu vou usá-lo para ilustrar um dos princípios da tradução: que tudo é uma questão de perspectiva.

 

Eric: Totalmente. Eu mesmo estou envolvido em mais de um projeto de tradução, então eu acho que sei o que você quer dizer. Mas a experiência de cada um é diferente. Vá em frente.

Peter: Para Sacha Gordine, o produtor do filme, Orfeu Negro era uma adaptação francesa de uma peça do poeta brasileiro Vinícius de Moraes: Orfeu da Conceição, “uma tragédia carioca em três atos,” que passou uma semana no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1956.

 

Eric: Carioca significa do Rio de Janeiro, certo?

Peter: Correto. Bem, Vinícius recrutou dois talentosos compatriotas para produzir a importantíssima música para a peça: o compositor Antônio Carlos Jobim e Luís Bonfá, um virtuoso guitarrista e compositor estabelecido, que sentava nas sombras do palco enquanto o ator interpretando Orfeu cantava. Vinícius tinha servido como vice-cônsul brasileiro em Paris, antes de pegar uma licença para voltar ao Brasil e trabalhar na peça. Ele detestava a versão simplificada do filme de seu mito transposto, que foi roteirizada pelo diretor Camus e Jacques Viot, pelo qual Gordine exigiu que o trio de brasileiros escrevesse uma nova partitura para que ele pudesse ter uma parte dos rendimentos, que eram substanciais.

Bonfá e Jobim estavam gratos pelo filme, que trouxe atenção para sua música de uma enorme audiência internacional. Mas para os diretores brasileiros do cinema novo, homens como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Carlos Diegues, que tinham que mendigar estoque de filme branco e preto para fazer suas versões neorrealistas da vida da favela, um romance tecnicolor filmado no histórico morro da Babilônia e nas ruas do Rio durante o carnaval era equivalente a uma intervenção colonial, um tapa na cara do Primeiro Mundo.

Da perspectiva de Abdias do Nascimento, que interpretou Aristeu, o amante ciumento de Eurídice, e que, em 1944, fundou o Teatro Experimental Negro, as bases de treinamento artístico para nove membros do elenco totalmente negro da peça, a execução truncada da peça de Vinícius foi uma decepção. Abdias tinha quebrado a linha de cor no Teatro Municipal, em 1945, dirigindo uma produção do Teatro Experimental Negro da peça de Eugene O’Neill, O Imperador Jones. Antes disso, as únicas pessoas negras a pôr os pés no palco estavam lá para limpa-lo. Vinícius financiou a produção de seu próprio bolso e os atores, cantores e dançarinos que Abdias cultivou no Teatro Experimental Negro não eram pagos em semanas. Eles se queixaram para seu mentor e ele escreveu uma carta de advertência ao dramaturgo. Isso terminou no que pode ter sido uma colaboração histórica.

 

Eric: E tudo isso tem algo a ver com a sua tradução de A Mais Longa Duração da Juventude?

Peter: Abdias foi meu mentor. No inverno de 1969, ele entrou em um café do campus com sua esposa. Eles estavam falando português brasileiro. Eu não tinha falado a língua desde que eu retornei de Recife seis meses antes, então eu me apresentei.

Você fala português, meu filho?

Falo, sim, senhor.

Você é uma dádiva de Deus!

Abdias explicou que ele tinha que se dirigir a Escola de Teatro de Yale no dia seguinte e falava apenas poucas palavras de inglês. Eu interpretaria? É claro! Na tarde seguinte, nós ficamos lado a lado na frente do corpo docente da Escola de Teatro reunido e estudantes. Abdias contou a maravilhosa história da fundação do Teatro Experimental Negro. Ele fez as circunstâncias tão vívidas, a história tão atraente, que eu senti que eu era uma das pessoas de pé em fila no calor tropical para fazer uma audição para o empreendimento teatral revolucionário, que ele lançou na idade de 30 com um anúncio de procura nos jornais do Rio, que de uma vez por todas chamaria a atenção para a invisibilidade artística da maioria étnica do País, os descendentes de milhões de africanos vendidos para a escravidão.

Abdias era feroz e persuasivo. Ele tinha passado um tempo na prisão por suas crenças e fugiu da ditadura que Urariano Mota escreve em “A Mais Longa Duração da Juventude”. Uma das coisas que me atraem ao romance é que o autor fala sobre suas raízes, a perda de sua mãe quando ele tinha cinco anos, sua bebedeira, sua ascendência mestiça, seu apego a um trabalho humilhante em consideração aos camaradas miseráveis que dependiam dele por comida e abrigo. Urariano, como muitas pessoas do Nordeste do Brasil, é uma fascinante mistura de dureza e ternura. Isso permeia sua prosa. A fome, os tempos difíceis, mas, acima de tudo, a aceitação das peculiaridades e paixões das outras pessoas como a expressão de sua humanidade, particularmente sob pressão. A camaradagem foi além das políticas de fidelidade partidária, em um Pernambuco dilacerado durante os anos de guerra civil não declarada, mas real, e luta clandestina sobre que Urariano escreve. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que nos mocambos, as favelas ao redor de Recife e Olinda. Essa foi minha introdução a violência da vida cotidiana no Brasil.

 

Eric: Espere um segundo. Se eu entendo sua linha do tempo corretamente, eu mesmo estava no Brasil durante parte daquele tempo. Era o verão de 1967 – inverno no hemisfério sul, é claro. Eu passei a maior parte do meu tempo no Arquivo Nacional, no Rio, fazendo pesquisa para a minha tese de mestrado. Eu estava consciente da ditadura militar na época e segui o conselho do meu orientador ao pé da letra: mantive a minha cabeça baixa o tempo todo. Mas, o que o levou ao Brasil?

Peter: Isso é tão estranho. Nós não nos conhecemos em Yale, e nós não nos encontramos no Brasil, mas 50 anos depois nós nos achamos em Los Angeles!

De qualquer forma, eu estava no Corpo da Paz da Saúde e Voluntário de Desenvolvimento Comunitário, em Recife e Olinda, no estado de Pernambuco, de 1966 a 1968. Como você se lembra, o envolvimento dos EUA no Vietnã estava aumentando quando nós saímos da faculdade, e por um tempo o Corpo da Paz era um adiamento do serviço militar. Meu treinamento era nos Estados Unidos, em Chicago. A única coisa boa nisso era o programa de línguas. Nós tínhamos cinco falantes nativos, três homens e duas mulheres, todos de diferentes partes do País com dialetos regionais distintos, e dois Voluntários do Corpo da Paz Retornados, todos ótimos. Todo o resto era um encobrimento. Naquele tempo inimaginável antes da internet e dos celulares, a informação era mais difícil para passar por aqui e os graduados da faculdade mantinham o que hoje seria considerado sua virgindade na mídia.

O que arrancou as escamas dos meus olhos foi uma visita de três representantes, todos negros, da perto Fundação de Áreas Industriais, onde o organizador comunitário Saul Alinsky estava ajudando comunidades marginais a exigir que senhores de terra, políticos e líderes empresariais reconhecessem seu poder social, político e econômico. Eles queriam saber o que nós tínhamos aprendido sobre o Brasil. Como nós não tínhamos ideia de quem eles eram, ou porque eles estavam lá, nós sentamos lá, rígidos e mudos.

“Não muito, a parte de algumas frases úteis em português,” eu me voluntariei depois do que pareceu um longo minuto. Era o meu 22º aniversário e silêncios prolongados me deixavam nervoso. O líder, que me olhava como um Pantera Negra à paisana, franziu o cenho: “Nesse caso, você pode não saber que o Brasil contém mais pessoas de descendência africana do que qualquer país, exceto a Nigéria. Ou que João Goulart, o presidente eleito popularmente, foi derrubado em um golpe militar apoiado pela CIA, dois anos atrás, e que Castello Branco, um general do exército cujo nome se traduz por “castelo branco”, está agora no comando.

As pessoas que comprarem “A Mais Longa Duração da Juventude” vão ter uma noção do feliz acaso de nossa colaboração em seu ensaio preliminar, com sua capacidade como meu editor da People’s World, e como o editor de cópia para esse livro, e também do ensaio de José Carlos Ruy e o meu prefácio. O autor, Urariano Mota, me mandou um PDF de seu romance em um ponto quando o abrigo para COVID-19 entrou em vigor em todo o mundo e as vacinas ainda não estavam disponíveis. Ele tinha quase 300 páginas e eu pensei comigo , essa vai ser uma boa maneira de passar as horas.

Mas havia uma outra, ainda mais forte atração – o mundo que ele estava descrevendo era um que eu lembrava e com o qual me importava. Meu tour de dever pelo Corpo da Paz em Recife e Olinda terminou em 1968, e eu voltei para visitar em 1969, ano em que o romance começa, com o encontro de dois amigos em frente a um marco do Recife que eu tinha apadrinhado, o Cinema São Luís, especialmente às 8 da manhã nos sábados, quando eram mostrados filmes da Nova Onda francesa e italianos. Como se viu, Urariano também. Essa foi apenas uma de uma série de circunstâncias que me atraíram para “A Mais Longa Duração da Juventude”. Outras foram o fato de que o autor era um homem mais velho olhando para trás em sua vida, um poeta e fã de jazz, que tinha tido uma infância traumática. Todas essas coisas nós compartilhávamos, apesar do fato que nós nunca tínhamos nos conhecido, ou ouvido um do outro. Você vê o que eu quero dizer por feliz acaso.

 

Eric: Esse é o primeiro romance que você traduziu?

Peter: Não, o segundo. O primeiro, Animal Tropical (2002), era de um autor cubano, Pedro Juan Gutiérrez. Isso aconteceu através de um interessante conjunto de circunstâncias que eu não vou entrar aqui.

Mas havia mágica nisso. O que os dois livros tinham em comum era que eu tive que trabalhar com um escritor vivo, alguém com quem eu pudesse me relacionar e, no caso de Pedro Juan, encontrar. Eu ainda não me encontrei com Urariano. Nós nunca nos falamos pelo telefone, ou mesmo pelo Skype. Nós permanecemos em contato por e-mail. Eu envio para ele os capítulos do meu trabalho em progresso e ele pareceu geralmente satisfeito com eles. Um trabalho de um tradutor varia de livro para livro. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu realmente aprendi muito de você, Eric, como você editou várias provas do livro. O fato de que você tinha editado minhas traduções de despachos da Amazônia para a People’s World, e que nós ambos falamos, lemos e traduzimos do português para o inglês foi tudo uma grande vantagem. Eu estou feliz que essa não foi a minha primeira tradução literária. Embora eu seja mais fluente em português do que em espanhol, Animal Tropical foi um livro mais fácil de traduzir. Ambos eram narrativas em primeira pessoa, com uma quantia justa de diálogos. Pegar a “voz” e o ponto de vista do narrador é essencial em tais casos. Como é achar o jargão americano apropriado para o modo que os personagens brasileiros e/ou cubanos falam e pensam. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu anotei certas referências no texto para os leitores que não fossem familiarizados com a cultura e a história brasileiras sejam capazes de consulta-las quando eles leem.

 

Eric: Eu fiquei feliz de ajudar você e a International Publishers nesse livro. Aliás, para deixar claro, eu também peço por ajuda com o meu trabalho. É sempre bom obter outros pares de olhos em seu trabalho para fazê-lo mais forte.

Peter: Você sabe, o Nordeste do Brasil, como a América do Sul ainda era principalmente agrícola quando eu cheguei. Plantações de cana de açúcar e moinhos proliferavam, e, após a crise dos mísseis, a administração Kennedy temia que a região se tornasse uma outra Cuba. O presidente Goulart era um admirador de Fidel Castro, e tinha tido tentativas sustentadas de sindicalizar os cortadores de cana e os trabalhadores dos moinhos de açúcar em Pernambuco. De fato, o presidente Kennedy tinha marcado para voar para Recife uma semana depois que ele foi assassinado. No final dos anos de 1960, 70% das pessoas da região eram analfabetas. Se eles não podiam assinar seus nomes, eles não podiam votar. Goulart tinha pressionado Paulo Freire em serviço e estava lançando uma campanha nacional de alfabetização baseada nos experimentos linguísticos de Freire com camponeses, pescadores e trabalhadores da construção, nos estados nordestinos de Pernambuco e Rio Grande do Norte, quando o golpe de estado militar apoiado pela CIA ocorreu, no Dia da Mentira, em 1964. Em 1969, quando o livro começa, o regime militar tinha pegado as rédeas firmemente nas mãos e censurava quaisquer notícias que fossem consideradas desfavoráveis à sua causa. Aulas de faculdades eram infiltradas por informantes em roupas civis se colocando como estudantes.

Os personagens de Urariano são comunistas novatos. Eles são membros de grupos de estudantes que se encontram e formam células clandestinas, onde eles são doutrinados com resumos mimeografados das teorias de Marx, Lenin e Mao Tse-Tung. Alguns deles estiveram ou estão em perigo de serem “expostos” como terroristas urbanos. Esse é o caso com o novo amigo do narrador, Luiz do Carmo, e outro militante, Vargas, que tem uma esposa grávida e parece resignado ao martírio pela causa. Ele entra em conflito com um notório agente duplo e eventualmente sucumbe a caça às bruxas. O mesmo vale para Soledad Barrett, uma beleza paraguaia de uma longa linhagem de anarquistas, que treina com Fidel e Che na Sierra Maestra e vem para Recife encontrar seu horrível destino. O romance é cheio de alvoroço e incidentes. Jovens se apaixonam e desapaixonam, são obcecados por sexo, percebem que são sonhadores sem armas ou uma ideologia convincente e seguem suas vidas. Eles ficam deprimidos, famintos por comida e reconhecimento, vão a filmes, leem livros, discutem sobre música e escrevem poesia. Eu conheci pessoas assim em Recife.

 

Eric: Isso soa tão similar com minhas próprias experiências no movimento estudantil antiguerra e anteprojeto, nos EUA, na mesma época, sob Nixon. Acredite-me, eu reconheci a mim mesmo e ao meu círculo de camaradas e amigos na inexperiência e confusão, e deriva ideológica daqueles anos.

Peter: As mesmas coisas estavam acontecendo em muitos lugares ao redor do mundo então. Em 1969-70, eu ensinava na Escola Americana do Rio, e as coisas mudaram. Ninguém fora da comunidade americana falaria comigo, porque eu tinha toda a boa fé de um agente da CIA – “pálido, masculino e Yale!” Traduzir A Mais Longa Duração da Juventude me deu a chance de encontrar e me envolver com meus colegas revolucionários, todos esses anos depois. Eu apreciei a experiência, mais do que eu possa realmente expressar em palavras. Eu confio que os leitores do livro também vão, e muitos por suas próprias razões subjetivas.

 

Eric: Obrigado, Peter. Eu acredito que os leitores vão ter uma ideia muito melhor do que esperar quando eles envolverem suas mãos em torno desse novo lançamento da International Publishers.

 

Fonte: People´s World 

Tradução: Luciana Cristina Ruy

 
16
Nov21

Por que o negacionismo bolsonarista é a última etapa do crime de genocídio e deve ser penalizado?

Talis Andrade

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por Patrícia Valim

Em uma obra incontornável sobre o genocídio em perspectiva decolonial, O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2016), publicada pela primeira vez pela Editora Paz & Terra, em 1978, Abdias do Nascimento demonstrou, a partir de um conjunto de documentos e dados estatísticos apresentados no “Segundo Festival de Artes e Culturas Negras” realizado em Lagos, Nigéria, a retirada do quesito cor/raça do Censo de 1970, durante a Ditadura Militar, como parte de um conjunto de políticas do Estado brasileiro constantemente atualizado para o genocídio da população negra, historicamente negado por meio do “mito da democracia racial”. O governo de Jair Bolsonaro não só cortou verbas destinadas aos órgãos de estatísticas e pesquisas, como usou dados relativos às populações vulneráveis no Brasil divulgados há uma década.

Em setembro de 2020, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) denunciou o Estado brasileiro ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ADPF 742/2020, pela falta de vacina para a população quilombola. Apesar da data em que a denúncia foi protocolada, o processo só foi julgado em fevereiro de 2021, favorável à denúncia, obrigando o atual governo a elaborar um plano emergencial para garantir vacina à população quilombola. O plano foi apresentado pelo atual governo, aprovado pelo STF, mas nenhuma medida concreta foi adotada. O coordenador da entidade, Denildo Rodrigues de Moraes, denuncia que o plano elaborado foi baseado em dados do censo demográfico do IBGE de 2010, cuja estimativa foi obtida por meio de dados indiretos, uma vez que não existe essa variável na coleta de dados, segundo o Ofício nº 236/2021/CGPNI/DEIDT/SVS/MS de 11 de março de 2021.

Um mês depois, em outubro de 2020, em audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), 14 organizações da sociedade civil, entre elas a Anistia Internacional, fizeram denúncias de graves violações à liberdade de expressão e aos direitos dos povos indígenas e quilombolas durante a pandemia de Covid-19. Os representantes do governo brasileiro que estavam presentes na reunião negaram as acusações. Recentemente, a médica e diretoria da Anistia Internacional, Jurema Werneck, ao denunciar as 32 violações graves aos Direitos Humanos pelo governo de Jair Bolsonaro, afirmou que além de incentivar o armamento da população no lugar de garantir renda básica por meio de auxílio emergencial – para diminuir o escandaloso fato de que metade da população brasileira está em situação de insegurança alimentar durante a pandemia da Covid-19 –, os constantes ataques à imprensa pelo presidente do Brasil e por integrantes do governo federal aconteceram em 449 ocasiões: intimidações, ridicularizações, discriminações de gênero e negacionismos. Vejamos.

Em 9 de setembro de 2019, Jair Bolsonaro discursou na ONU e negou dados e fatos que comprovam a devastação da Amazônia e outros biomas do país, atacou o Cacique Raoni e responsabilizou as populações tradicionais pelas queimadas dos biomas do país. Um ano depois, em setembro de 2020, Jair Messias Bolsonaro afirmou que “o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena”, aproveitando para defender a mineração em terras indígenas sob o argumento de “o índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas”. Nesse ano, em setembro de 2021, durante mais um discurso, Jair Bolsonaro novamente negou dados e fatos ao afirmar que o Brasil é um país sem corrupção, que tem a melhor e mais completa legislação ambiental do mundo, que seu governo está praticamente zerando o desmatamento ambiental da Amazônia e que enfrentou a pandemia de Covid-19 de modo a combater o vírus e garantir bons números na economia.

Na tentativa de evitar o agravamento da maior tragédia humanitária da história brasileira, em 9 de agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) protocolou um comunicado no Tribunal Penal Internacional (TPI) para denunciar o governo Bolsonaro por crime de genocídio, solicitando que a procuradoria do tribunal de Haia examine os crimes praticados contra os povos indígenas pelo presidente Jair Bolsonaro, desde o início do seu mandato, com atenção ao período da pandemia da Covid-19. Com base nos precedentes do TPI, a APIB demandou uma investigação por crime de genocídio (Art. 6 do Estatuto de Roma) e crimes contra a humanidade/extermínio (Art. 7 do Estatuto de Roma) contra o governo de Jair Bolsonaro. Apesar da abundante materialidade de provas dos crimes do atual governo, o Relatório Final da CPI da Covid-19, aprovado em 26 de outubro, retirou duas acusações contra Jair Messias Bolsonaro: crime de genocídio contra as populações indígenas e homicídio doloso contra a população de maneira geral.

No próprio relatório, na parte dos anexos documentais, uma análise retrospectiva de 250.000 dados de hospitalização realizada pelos pesquisadores Otavio Ranzani, Leonardo Bastos, João Gabriel Gelli, Janaina Marchesi, Fernanda Baião, Silvio Hamacher e Fernando Bozza, publicada no periódico The Lancet Respiratory Medicine em 15 de janeiro de 2021, mostra que a mortalidade hospitalar entre os indígenas foi proporcionalmente a mais alta entre os grupos pesquisados, superando inclusive a de pretos ou pardos em quase todas as faixas etárias. Nesse sentido, vale mencionar a nota “Povos e Comunidades Indígenas Isoladas no País sob Risco de Genocídio”, da Associação Brasileira de Antropologia, de 25 de maio de 2021, que foi apresentada à CPI da Covid-19 pela Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB, na qual a entidade expressa “sua preocupação com a grave ameaça que paira sobre a vida e os territórios ocupados por povos e comunidades indígenas isoladas no país” e “insta o Ministério Público Federal (MPF) para que, seguindo seu papel institucional, interceda preventivamente diante do risco de genocídio”.

Esse descaso com a saúde da população brasileira ao negar a pandemia para considerá-la uma “gripezinha”, o boicote deliberado às ações dos governadores e prefeitos no combate à pandemia, a prescrição de um medicamento sem efeito e sem ser médico, a ausência de políticas de proteção às populações indígenas e à população quilombola, e o silenciamento sobre mais 600 mil pessoas mortas em razão da Covid-19 fazem parte da governamentalidade negacionista do bolsonarismo, aqui entendido como um movimento de massa da extrema-direita. Em artigo publicado em setembro de 2020, na Revista Cult, intitulado Negacionismo histórico: da governamentalidade à violação dos direitos fundamentais, eu e Alexandre Avelar demonstramos que a governamentalidade é um conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e táticas articuladas pelo negacionismo histórico e fundamentais para o exercício de uma forma específica de poder, que tem por alvo um setor da população cuja eliminação real ou simbólica legitimará as ações violentas de outro setor social organizado em uma “máquina de guerra”, também uma máquina negacionista.

Não se trata da chamada negação inocente, conceito definido pelo psicólogo e expoente dos genocides scholars, Israel Charny (ver Genocide, a Critical Bibliographic Review), caracterizada por uma historicidade esvaziada de passado e de futuro, uma historicidade atualista, de quem nega aquilo que seus sentidos não captaram: “eu vivi no período da ditadura militar e não vi ninguém sendo torturado, portanto não houve tortura durante o regime”, por exemplo, em relato coletado na obra Do fake ao fato. Trata-se, ao contrário, de um negacionismo profissional que em sua primeira fase teve como paradigma de negação crimes contra a humanidade e crimes de genocídio, sendo o Holocausto, a morte de milhões dos judeus nos campos de concentração como política do Estado Nazista, o principal genocídio negado mesmo depois das convenções onusianas.

Sobre a definição do paradigma onusiano de genocídio e as suas implicações na construção do paradigma do objeto a ser negado pela primeira geração de negacionistas profissionais, são marcos importantes: a Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, da mesma assembleia, de 1951; o julgamento de Adolf Otto Eichmann, em Jerusalém, no ano de 1968; o Revised and Updated Report on the Question of the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, elaborado por Benjamin Whitaker para a ONU entre os anos de 1985 e 1986; o processo Prosecutor X Krstic, de 2004, que versou sobre a ocorrência do genocídio, em 1995, em Srebrenica; o Report of the International Commission of Inquiry on Darfur to the United Nations Secretary-General, elaborado de acordo com a resolução 1564, do Conselho de Segurança da ONU, de 2004; e, por fim, a Declaration on Prevention of Genocide, elaborada pelo Committee for the Elimination of Racial Discrimination, de 2005.

 

O negacionismo profissional

 

O negacionismo profissional pode ser dividido em dois grupos com interesses em comum: o primeiro é viabilizado por um conjunto de obras publicadas em várias edições e que ganharam espaço público em vários países por meio de polêmicas suscitadas por suas falsificações do passado e revisionismo ideológicos, como é o caso no Brasil do neonazista Siegfried Ellwanger, dono da Editora Revisão, condenado a quase dois anos de reclusão por racismo contra a comunidade judaica e cujo habeas corpus foi julgado pelo STF, contando como amicus curiae Celso Lafer e Henry Sobal (ver “O crime da prática do racismo”, em Grandes crimes).

O segundo grupo de negacionismo profissional é justamente aquele que viabiliza o crime dos crimes: o genocídio é invariavelmente realizado a mando e com a cumplicidade das autoridades políticas. Também devemos considerar os indivíduos que, ligados direta ou indiretamente a essas autoridades, viabilizaram o crime de genocídio e, por essa razão, têm todo o interesse em negá-los, produzindo esquecimentos e silenciamentos, ou falseando relatos de sobreviventes e de testemunhas desses massacres.

Não há discordância entre especialistas sobre o fato de que o momento inaugural do negacionismo profissional se dá no próprio ato de exterminar os indesejáveis de uma determinada sociedade, mas não se encerra nele. A máquina genocidiária também precisa perpetuar o horror para continuar subjugando determinado grupo social, e a maneira mais eficaz é deixar o trauma das vítimas de um genocídio em suspensão, destruindo as condições de possibilidade para que um fato seja pensado como tal. Como aponta o crítico franco-armênio Marc Nichanian, essa negação original é, a um só tempo, a aniquilação da factualidade do fato, a negação do direito à memória e a perpetuação da violência por meio de infindáveis testemunhos e depoimentos dos sobreviventes das diversas formas de terror que retroalimentam a lógica do negacionismo profissional que, a todo o momento, demandam provas dos crimes por eles praticados e negados.

A análise dos negacionismos histórico, científico e ético mobilizados pelo presidente Jair Bolsonaro durante seu governo demonstra que não basta o aniquilamento de centenas de milhares de pessoas – como tem acontecido no Brasil durante a pandemia –, pois a morte seriada, como destacou o sociólogo argentino Daniel Feierstein, deve se completar no espaço das representações simbólicas por meio de determinados modos de narrar e de representar a experiência do aniquilamento. Essas formas de elaboração devem gerar outros modos de articulação social entre as pessoas, redefinindo identidades e reconfigurando imaginários históricos destituídos de tensões e conflitos sociais, fechando, assim, o ciclo completo do horror e formando a base de apoio político de governos de extrema direita. Assim, a compreensão histórica da lógica genocidiária do negacionismo profissional somada ao acúmulo do debate sobre a compreensão jurídica do conceito onusiano de genocídio devem ser a base para a prevenção do crime dos crimes (como expresso por William Schabas em Genocide in International Law): o crime de genocídio, por meio de sua penalização nos tribunais locais (Lei de 1956) e nas cortes internacionais (ver Genocide: Its Political Use in the Twentieth Century).

Diante da possibilidade de surgimento de outros regimes autoritários com práticas genocidiárias e do dever ético de evitá-los, os dispositivos jurídicos existentes nos diversos estados europeus foram acionados para penalizar criminalmente os negacionistas históricos profissionais pela reiteração dos crimes de lesa-humanidade e de genocídio ao negar-lhes a própria factualidade. Isso foi possível porque um conjunto articulado de especialistas de diversas áreas forneceu contribuições significativas sobre o tema, chamando atenção para o fato de que o “negacionismo histórico” não é um ato à parte dos crimes de lesa-humanidade e de genocídio, ou de outra forma de violação dos direitos que se queira negar, como o crime de extermínio, por exemplo, também tipificado no Estatuto de Roma. Ao contrário, o negacionismo histórico profissional é a última etapa do genocídio e do crime de lesa-humanidade, a governamentalidade que irá perpetuá-lo indefinidamente.

Nesse processo, a liberdade de expressão é a retórica mobilizada para colocar em risco a vida de determinados grupos sociais em detrimento de outros, deflagrando violação da dignidade humana, a essência dos Direitos Fundamentais. Por isso, a penalização jurídica do negacionismo histórico como violação dos Direitos Fundamentais e a urgente necessidade de regulamentar a divulgação desses conteúdos na esfera pública, portanto, só ocorrerá por meio de políticas públicas elaboradas em parceria com um judiciário nacional comprometido com o controle de covencionalidade em relação às tipificações do direito internacional para o crime de genocídio, crime de lesa-humanidade e crime de extermínio e suas respectivas penas. Um sistema de justiça no Brasil articulado com entidades e associações da sociedade civil, comprometidos com princípios éticos, republicanos e democráticos para nomear, qualificar e punir os crimes cometidos pelo Estado brasileiro por meio das ações do presidente e seu staff. Chamar as coisas pelo nome é uma das principais ações para uma sociedade evitar a propagação de negacionismo histórico ao tempo em que ocorre o letramento político da sociedade para que a maioria da população queira fazer parte de um regime democrático. Caso contrário, corremos o risco de mais uma Lei da Anistia não reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanas, mas reafirmada pelo STF, originando uma justiça de transição incompleta e ineficaz em relação à prevenção do crime de genocídio como, infelizmente, constatamos com a morte de mais de 600 mil pessoas pela Covid-19 no Brasil.

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03
Abr21

Ditadura militar foi empreendimento de ódio ao povo brasileiro

Talis Andrade

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São várias as mentiras contadas sobre a ditadura militar que mergulhou o Brasil em caos e sangue por 21 anos. Algumas dessas mentiras são mais conhecidas, outras menos.

Das mais conhecidas, destaco duas: 1) a de que o golpe de Estado e a ditadura que se seguiu foram os únicos meios de defender o Brasil de uma suposta “ditadura comunista”; 2) A de que na ditadura militar não houve corrupção.

Sobre isso, além da corrupção primordial que foi o próprio ato de tomar à força as instituições, rasgar a Constituição e trair o povo brasileiro, os golpistas —militares e civis— se envolveram em diversos casos de desvio de dinheiro público e favorecimento pessoal.

Além dessas, há outras mentiras sobre o golpe militar de 1964, menos reproduzidas, provavelmente porque ultrapassam as justificativas morais do golpe. Refiro-me às inverdades que envolvem as consequências politicas e econômicas da ditadura. Com isso, não quero dizer que os aspectos morais não devam ser considerados. A ditadura é em muito responsável pela degradação moral do país.

Está na conta dos golpistas e seus apoiadores a normalização de um padrão de sociabilidade que faz da corrupção, da tortura, do autoritarismo e da desigualdade parte integrante da vida social. Definitivamente, ao apoiador do golpe, da ditadura militar e da tortura —praticada, inclusive, em crianças— não cabe denominação outra que a de aberração moral.

Mas é importante que a conformação política e econômica do golpe militar seja destacada, pois o silêncio sobre esses pontos é que permite que mentalidades e práticas oriundas da ditadura continuem infectando nosso cotidiano.

Ademais, o foco específico na moralidade permite que alguns dos antigos e dos novos apoiadores do regime militar continuem na cena pública apenas inserindo as palavras “democracia” e “legalidade” no meio de um discurso. É com esse expediente retórico que podem, sem sujar as mãos, continuar fornecendo suporte aos dois pilares da ditadura: desigualdade social e entreguismo.

Não foi a delirante ameaça comunista nem a defesa da família que motivou o golpe, mas sim interesses econômicos e políticos contrários à soberania nacional. Pesquisas sobre a economia brasileira têm demonstrado que aquilo que mais orgulha os próceres da ditadura militar, o tal “milagre econômico”, período de significativo crescimento, foi também o momento em que as desigualdades sociais se acentuaram.

Ao final da ditadura militar, como nos mostra o pesquisador Pedro Ferreira de Souza, o 1% mais rico da população detinha 30% de toda a renda do país. Para que a equação crescimento econômico e concentração de renda pudesse funcionar foi necessário temperar a exploração do trabalho com intensa violência politica contra trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais e opositores em geral.

Por fim, a ideia de que os golpistas eram nacionalistas e patriotas é outra grande balela. O que se viu em 1964 foi a devastação da soberania nacional e a quebra do dever de lealdade para com o povo brasileiro. Colocou-se a economia a serviço de ricos e estrangeiros, destruiu-se a democracia, conspurcou-se a Constituição.

Com o golpe militar foram destruídas as esperanças de um Brasil altivo e soberano. E como bem lembrou Octávio de Barros em seu Twitter, o golpe foi também contra a inteligência brasileira, contra a ciência, contra a universidade, contra o desenvolvimento nacional, resultando no exílio ou assassinato de muitos professores ou cientistas, casos de Anisio Teixeira, Mario Schenberg, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Ruy Mauro Marini, Vladimir Herzog, Ana Kucinski, Iara Iavelberg, Alberto Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Álvaro Vieira Pinto, Luiz Roberto Salinas Fortes e tantos outros.

Não chegamos até aqui à toa: centenas de milhares de mortos, fome, desemprego, desmonte do sistema de proteção social, um governo incompetente e irresponsável. A ditadura militar de 1964 foi um empreendimento de ódio ao povo brasileiro. Por isso, que não pairem dúvidas sobre como pensa e o que quer para o Brasil quem celebra uma ditadura que nos mergulhou em tantas tragédias.

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