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17
Nov21

'Não existe desenvolvimento infantil pleno com barriga vazia'

Talis Andrade

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'A criança com fome não consegue se concentrar. Falta energia nela', diz professora de Sumaré, no interior de São Paulo. Ilustração André Valente

 

'Minha aluna desmaiou de fome': professores denunciam crise urgente nas escolas brasileiras 3

 

por Thais Carrança /BBC News

(Continuação) DEIXANDO DE ESTUDAR PARA TRABALHAR.

A educadora afirma que outra preocupação das professoras é com o aumento da evasão escolar entre os alunos um pouco mais velhos, que deixam o estudo para ajudar suas famílias.

Neste cenário, o fim do auxílio emergencial em outubro e a incerteza quanto ao futuro do Bolsa Família, em transição tumultuada para Auxílio Brasil, é motivo de angústia.

"Todo mundo está muito preocupado, principalmente as famílias", diz a professora de Sumaré.

"Já estamos tendo uma evasão muito grande de alunos, porque a prioridade deles é trabalhar e ajudar a levar o sustento para casa. Não é mais estudar, porque a fome é uma necessidade hoje", relata.

"A partir dos 13, 14 anos está acontecendo essa evasão, que é ainda mais grave no Ensino Médio. Acredito que, com o fim do auxílio emergencial, isso pode aumentar."

O auxílio emergencial foi pago a mais de 39 milhões de famílias em 2021. Já o novo Auxílio Brasil deve atender 17 milhões de famílias em dezembro, conforme a expectativa do governo. O Bolsa Família, extinto em outubro, atendia 14,6 milhões, segundo o Ministério da Cidadania.

Ou seja, embora o Auxílio Brasil deva atingir um público maior do que o Bolsa Família — caso de fato o governo consiga zerar a fila do programa, como planeja —, o número de assistidos ainda assim será menor do que o de beneficiários do auxílio emergencial pago em 2020 e 2021.

"É triste o aluno ter que deixar a escola para poder trabalhar, não conseguir conciliar", lamenta a professora de física e matemática, acrescentando que a situação é agravada pelo encerramento do turno noturno em três das cinco escolas de sua região e de cursos de Educação para Jovens e Adultos (EJA) no município.

"É devastador, porque o aluno está deixando para trás uma parte da vida dele que é de extrema importância. É um aluno que poderia ir para a faculdade e pode ser que acabe não indo, que poderia fazer outras coisas da vida e acabe não fazendo", diz a professora, ressaltando como a necessidade imediata de renda das famílias acaba comprometendo o futuro do jovem.

Criados pela avó, ficaram órfãos na pandemia

A professora de língua portuguesa da rede estadual do Paraná chama atenção para um outro aspecto da realidade das escolas na volta às aulas presenciais depois da pandemia: um grande número de alunos que ficaram órfãos de pais ou avós e passaram a viver sob cuidado de outros parentes.

"Tenho um aluno do 7º ano e a irmã dele está no Ensino Médio no mesmo colégio. Eles foram criados pela avó e, no ano passado, ela faleceu devido à covid. Eles simplesmente ficaram órfãos", conta.

"Eles não têm nenhum recurso, ficaram na casa de parentes. E nós temos vários casos assim, são muitos casos por turma. A escola está tentando monitorar para ver se essas crianças estão bem, quem ficou responsável por elas e se elas contam com alguma rede de proteção."

A professora da rede municipal do Rio de Janeiro cuja aluna desmaiou em sala de aula relata também a precarização na situação de moradia de muitos alunos, diante da perda de renda dos pais.

"A favela em si é um lugar vulnerável, mas dentro dela tem lugares onde realmente não tem estrutura nenhuma, não tem saneamento básico, nada", diz a professora da Zona Norte carioca.

"Muitos alunos que antes moravam na favela em locais considerados razoáveis tiveram que se mudar para esses locais mais vulneráveis, porque lá não paga aluguel, não paga nada. Mas as casas são de madeira, em lugares muito complicados, como barrancos. Então está havendo uma migração interna, dentro da própria favela, de famílias que não estavam conseguindo se manter nos lugares por conta dessa crise econômica toda."

'Solução do problema está além do nosso alcance'

Nesse cenário de pauperização dos alunos na volta às aulas presenciais, os professores fazem o que podem para tentar minimizar o sofrimento dos estudantes em dificuldade.

Uma professora de ginástica acrobática de um centro público de treinamento desportivo localizado em uma comunidade carente do Distrito Federal conta que a doação de cestas básicas se tornou rotina no local.

"Teve o caso de uma aluna que começou a passar mal", conta a professora de ginástica. "Encaminhamos à assistência social e essa criança, de 10 anos, contou que estava com fome, que não tinha jantado no dia anterior, nem tomado café da manhã naquele dia."

"A criança recebeu um lanche a mais e a mãe foi chamada para uma conversa com a psicóloga. Essa mãe relatou que estava sem o que comer em casa, então começamos a distribuir cesta básica para a família", diz a professora, acrescentando que cresceu no período recente o número de crianças que buscam o centro de treinamento não pelo esporte, mas pelo lanche do intervalo, e como uma alternativa de cuidado para mães que precisam procurar emprego.

Uma professora de Rio Claro, no interior de São Paulo, relata um caso semelhante.

"Dentro do processo de tutoria, em que cada aluno é acompanhado de perto por um professor, uma aluna de 13 anos, com dois irmãos menores e uma irmã bebê, relatou que precisava de ajuda, que precisava de alimento, porque não tinha comida dentro da casa dela", conta a professora de língua portuguesa.

"A equipe de professores se mobilizou, fizemos uma vaquinha e um dos professores foi ao mercado e fez uma compra. Eu levei até a casa dela, uma casa bem humilde. A recepção foi de gratidão, a mãe depois nos escreveu agradecendo a ajuda."

A professora de Rio Claro conta que, apesar da mobilização dos professores, há um sentimento de impotência com relação à crise social que se reflete nas escolas.

"É uma tristeza profunda, uma preocupação gigante. Há uma vontade de tentar fazer algo por essas pessoas, a gente tenta se mobilizar dentro das nossas possibilidades, mas sabemos que não é fazendo uma cesta básica hoje que a gente resolve o problema dessa família", diz a educadora.

"A gente atende uma necessidade emergencial, mas resolver o problema é uma questão muito maior, uma questão social e política, que vai além do nosso alcance."

'Não existe desenvolvimento infantil pleno com barriga vazia'

O conselheiro tutelar da Zona Oeste do Rio de Janeiro avalia que a fome das crianças nas escolas é um sintoma da ausência do Estado.

"O Estado não está cumprindo com sua parte em garantir não só renda, mas que a economia gere empregos para essas famílias", avalia o profissional, que relata um aumento no número de atendimentos do conselho durante a pandemia, devido ao maior número de casos de violência, em decorrência da convivência das famílias em espaços insuficientes e de problemas estruturais, como o estresse causado pela fome ou pelo desemprego.

"Não existe desenvolvimento infantil completo com barriga vazia. A fome não atinge apenas o estado emocional, ela é da carne, é do corpo. É muito difícil pensarmos que uma criança vai ter acesso a direitos, conseguir ter uma vida plena, se ela está sentindo fome. O acesso à cultura, à educação, ao lazer, tudo isso é impactado quando essa criança não está tendo o mínimo, que é se alimentar", afirma.

"Isso vai afetar não só o desenvolvimento pessoal dessa criança — sua autoestima, seus valores — mas a forma como ela se relaciona com a sociedade", avalia o conselheiro.

"São crianças que, por causa da fome, estão tendo sentimentos e aprendendo sensações muito dolorosas e muito cruéis para o tempo delas nessa vida. Como vamos pedir que essa criança tenha concentração dentro da escola, se a barriga dela está roncando?"

 

 

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