O escândalo em torno dessa fortuna de pouco mais de meio salário mínimo originalmente não declarada por Boulos, um professor e político que ganhou expressão pública como liderança de um forte movimento em defesa da cidadania como é o direito à moradia, ocorre coincidentemente com o crescimento de sua candidatura e da queda de Celso Russomanno (Republicanos), aliado de Jair Bolsonaro, que, de acordo com a última pesquisa do Datafolha (também divulgada na quinta-feira, 22), perdeu a liderança para o atual prefeito, Bruno Covas, do PSDB. Na mesma noite em que “denunciava” Boulos, a Folha anunciava a preferência de Covas por Russomanno no segundo turno.

Claro que a preferência é apenas dessa candidatura, porque a Folha não tem lado, não faz campanha para ninguém.

No domingo, a ombudsman da Folha dedicou praticamente toda a sua coluna a esse tema. Preferiu atribuir essa escolha ao investimento no “caça-cliques”, equiparando-a a armadilhas banais como a dos anúncios que prometem transformar gordura em músculos rapidamente. Anotou a escolha dos verbos “confrontar” e “omitir”, junto ao substantivo “patrimônio”, associados a “um candidato que, em crescimento nas pesquisas, tem como uma de suas estratégias exibir como único bem um carro popular”, mas considerou essa escolha apenas uma estratégia para chamar “enormemente a atenção”. Destacou a capacidade crítica de alguns leitores, que inclusive recordaram a maneira muito distinta com que o jornal se referiu a uma fraude – ou melhor, “falta de transparência”– do candidato Filipe Sabará, do Partido Novo, que “retifica declaração de bens e passa de R$ 15 mil para R$ 5 milhões”. Trata-se, como diz a reportagem, do “herdeiro do Grupo Sabará, gigante da indústria química voltada à fabricação de cosméticos, com faturamento acima de R$ 200 milhões em cada um dos últimos anos”. Mas foi apenas “um lapso”, de acordo com a justificativa de seu advogado, segundo o jornal.

Alguém “passa” assim, de R$ 15 mil para R$ 5 milhões, comete esse pequeno “lapso” na contabilidade de zeros à direita, e o jornal apenas registra o fato, da mesma forma que registra o conflito entre esse candidato e seu partido – que, por outro motivo, já o expulsou, embora ele mantenha sua candidatura e alegue ser alvo de perseguição interna. O principal candidato da esquerda não declara o saldo irrisório de sua conta bancária e isso é tratado como omissão, ou seja, uma tentativa de fraude. Mas essa discrepância não é motivo de comentário.

Fake news? Não, fake sense

Não se trata de informação falsa: como diz a ombudsman, “o conteúdo é verdadeiro” e, “ao expor o achado (uma conta com um pouco mais de meio salário mínimo), oferece quase uma espécie de aval ao candidato, que sai da ‘denúncia’ sob a auréola da idoneidade moral”.

Ou seja, o título capcioso, que “induz ao erro e promete muito mais do que entrega”, seria até benéfico ao candidato.

É mesmo notável este argumento, considerando que, bem antes da internet, já se sabia o impacto causado pelos títulos, e que a maioria das pessoas deixava-se ficar apenas por eles, o que ocorre com muito mais frequência agora, diante da velocidade com que as informações (e desinformações) circulam.

Curiosamente, a ombudsman parece preocupada apenas com a reação dos leitores do jornal, como se ignorasse que o que cai na rede ultrapassa largamente esse círculo restrito. Além do mais, como lembra o jornalista Hugo Souza – que foi muito contundente em sua crítica em seu site Come Ananásaqui e aqui –, a Folha impõe o paywall, o que significa que só vai ler quem for assinante (do jornal ou do UOL) ou pagar pelo acesso. Sabe-se que essa matéria figurava entre as mais lidas no site do jornal, mas não se sabe quantos, entre os que clicaram, foram além do título.

O fato de não se tratar de uma informação falsa, “apenas” utilizada com um sentido muito preciso de levantar suspeitas sobre um candidato de esquerda, faz lembrar a famosa e premiada publicidade desse mesmo jornal, de mais de trinta anos atrás, que enaltecia as ações positivas de Hitler para a sociedade alemã e concluía: “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.

Em suma, o que é fake não é a informação, mas o sentido que o jornal tentou dar a ela.

E isso também deve dizer algo sobre os critérios das agências de checagem, como já tive a oportunidade de comentar aqui, há mais de dois anos.

A ombudsman assinala que o jornal, “para reforçar suas credenciais de apartidarismo”, tenha aparentemente buscado, com essa matéria sobre Boulos, demonstrar “ser capaz de tratar todos os candidatos com o mesmo ímpeto investigativo”, o que, “em tese, parece ótimo”, embora não se possa fazer isso “vendendo-se gato por lebre”.

De fato não se pode (ou não se deve) iludir o público, mas a ilusão principal é anterior, porque o “mesmo ímpeto investigativo” pressupõe que estamos vivendo um período de normalidade democrática, o que simplesmente não é verdade desde o golpe que depôs Dilma e inviabilizou fraudulentamente a candidatura que liderava as pesquisas em 2018, abrindo caminho para a tragédia que enfrentamos hoje. Contextualizar a informação exige, portanto, uma avaliação sobre o… contexto que se vive.

Não bastasse essa questão de fundo, o “mesmo ímpeto investigativo” implica supor que todos os candidatos se equivalem, o que tampouco é verdade. Obviamente não significa fazer vista grossa a fraudes, quando houver: é preciso acusá-las, venham de onde vierem, mas isso também exige avaliar a gravidade de cada uma, para noticiá-la com a devida ponderação.

Por isso essa história da fortuna do saldo bancário “omitido” por Boulos me fez lembrar o escândalo da tapioca, quando o então ministro do Esporte, Orlando Silva, utilizou R$ 8,30 do seu cartão corporativo para comprar esse quitute. Foi em 2008 e abalou os alicerces da República.

Boulos não cometeu nenhuma fraude, como o próprio jornal reconhece. Mas alguém tem dúvida de como o título original da matéria que levanta suspeita contra ele será usado na campanha?

Haja estômago.Latuff e a detenção de Guilherme Boulos - Sul 21