Nesta quinta-feira, 1º de setembro, o Tribunal Permanente dos Povos vai divulgar a sentença do julgamento do presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade e violações cometidos por ele e seu governo durante a pandemia de Covid-19.
A leitura da sentença acontece a partir das 10h, na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco, centro de São Paulo.
O julgamento da denúncia contra o presidente Bolsonaro foi realizado em maio deste ano, simultaneamente no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e em Roma, na Itália, sede do Tribunal Internacional.
O órgão acusa o presidente de ter recorrido à máquina pública para propagar intencionalmente a pandemia de Covid-19 no país, gerando morte e o adoecimento de milhares de pessoas, além de promover genocídio dos povos indígenas pela ausência de políticas públicas para a proteção dos indivíduos e seus territórios.
Durante o julgamento, a CNTS, FNE e CNTSS foram convocadas como testemunhas das graves violações dos direitos dos trabalhadores da saúde durante a pandemia. As entidades relataram os problemas que os profissionais enfrentaram durante este período, como a falta de equipamentos de proteção de segurança adequados, falta de treinamento, más condições de trabalho, jornadas de trabalhos exaustivas, que acarretou em 872 mortes de profissionais da Enfermagem reportados junto ao Cofen.
A denúncia foi feita em conjunto pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coalizão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos (PSI).
Sobre o Tribunal – Criado em Roma em 1979, o Tribunal Permanente dos Povos – TTP é considerado um sucessor do Tribunal Russell, que foi estabelecido em 1967 para investigar crimes de guerra no Vietnã. Ainda que não tenha efeito condenatório do ponto de vista jurídico, constitui um alerta para que graves situações não se repitam e uma referência na formulação de legislações nacionais e internacionais.
Rascunho de sentença de tribunal condena Bolsonaro pela gestão da covid
Um rascunho da sentença do Tribunal Permanente dos Povos aponta que Jair Bolsonaro será condenado por graves violações de direitos humanos e que, em algumas instâncias, os fatos poderiam ser considerados crimes contra a humanidade.
Ao tratar da questão da pandemia da covid-19, a decisão poderá ampliar a pressão internacional contra Bolsonaro. O órgão internacional, criado nos anos 70, não tem o peso do Tribunal Penal Internacional e nem a capacidade de tomar ações contra um estado ou chefe de governo. Mas uma eventual condenação é considerada por grupos da sociedade civil, ex-ministros e juristas como uma chancela importante para colocar pressão sobre o Palácio do Planalto e expor Bolsonaro no mundo.
Depois de uma audiência e de troca de informações ao longo dos últimos meses, a corte marcou a leitura de sua decisão para esta quinta-feira, dia 1º de setembro. Uma reunião entre os juízes está marcada para ocorrer um dia antes, na quarta-feira, para que se possa bater o martelo sobre a sentença.
Três fontes diferentes da corte, na Europa, confirmaram que um primeiro rascunho sobre a decisão já foi elaborado. Mas o processo ainda envolve uma reunião na quarta-feira para que todos os juízes possam apresentar seus argumentos e votar.
Diante de uma gestão sem precedentes, os juízes tinham de tomar uma decisão sobre o que fazer com Bolsonaro. Dentro do Tribunal, não existe dúvida de que ele será condenado. Mas o debate é sobre como encaixá-lo.
Segundo o UOL apurou, o rascunho que será submetido aos demais juízes aponta para "graves violações de direitos humanos" e, em algumas ocasiões, atos que poderiam significar crimes contra a humanidade.
Não há, pelo menos por enquanto, uma indicação de que os crimes de Bolsonaro devam ser considerados como genocídio. Apesar da opção ter ficado de fora do rascunho, o conceito pode ainda voltar a ser debatido. Alguns dos membros da corte mantém uma postura favorável à consideração também dessa classificação de crime.
A denúncia contra Bolsonaro foi apresentada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Internacional de Serviços Públicos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e a Coalizão Negra por Direitos.
Os grupos acusaram Bolsonaro de ter, "no uso de suas atribuições, propagado intencionalmente a pandemia de covid-19 no Brasil, gerando a morte e o adoecimento evitáveis de milhares de pessoas, na perspectiva de uma escalada autoritária que busca suprimir direitos e erodir a democracia, principalmente da população indígena, negra e dos profissionais de saúde, acentuando vulnerabilidades e desigualdades no acesso a serviços públicos e na garantia de direitos humanos".
A acusação foi liderada pelos advogados Eloísa Machado de Almeida, Sheila de Carvalho e Maurício Terena.
A denúncia esteve concentrada em demonstrar que houve uma prática de incitação do genocídio, principalmente contra os povos indígenas e movimento negro.
O que é o Tribunal
Com sede em Roma, na Itália, e definido como um tribunal internacional de opinião, o TPP se dedica a determinar onde, quando e como direitos fundamentais de povos e indivíduos foram violados. Dentro de suas atribuições, instaura processos que examinam os nexos causais de violações e denuncia os autores dos crimes perante a opinião pública internacional.
Embora seja um tribunal de opinião, cujas sentenças não são aplicadas necessariamente pelos sistemas de Justiça oficiais dos Estados, os vereditos do TPP são relevantes. Eles indicam o reconhecimento de crimes e deveres de reparação e Justiça que, de outra forma, sequer seriam considerados pelos sistemas legais oficiais.
Outra de suas funções é embasar processos penais, servindo de subsídio para a elaboração de leis e tratados internacionais, com o objetivo de coibir a repetição dos crimes.
Um exemplo de sua relevância remete à sessão sobre a Argentina, na década de 1980, quando foi apresentada a primeira lista de desaparecidos políticos do regime militar no país.
Criado em novembro de 1966 e conduzido em duas sessões na Suécia e na Dinamarca, o tribunal pioneiro foi organizado pelo filósofo britânico Bertand Russell, com mediação do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre e participação de intelectuais da envergadura do político italiano Lelio Basso, da escritora Simone de Beauvoir, do ativista norte-americano Ralph Shoenman e do escritor argentino Julio Cortázar. Na ocasião, o tribunal investigou crimes cometidos na intervenção militar norte-americana no Vietnã.
Nos anos seguintes, tribunais semelhantes foram criados sob o mesmo modelo, investigando temas como as violações de direitos humanos nas ditaduras da Argentina e do Brasil (Roma, 1973), o golpe militar no Chile (Roma, 1974-1976), a questão dos direitos humanos na psiquiatria (Berlim, 2001) e as guerras do Iraque (Bruxelas, 2004), na Palestina (Barcelona, 2009-2012), no leste da Ucrânia (Veneza, 2014).
Essa não é a primeira vez que o tribunal irá lidar com o Brasil no período democrático.
Em 1989, ele realizou uma audiência dedicada ao tema da impunidade nos crimes de lesa-humanidade na América Latina. Naquele momento, ele colocou em evidência a falta de punição dos responsáveis por violações cometidas durante a ditadura militar brasileira e a negação do direito à memória coletiva como condição para evitar novas formas de autoritarismo.
A situação de crianças e adolescentes na sociedade brasileira e a questão carcerária no país foram temas tratados em 1991. A sessão sobre a Amazônia, no ano seguinte, mostrou a trágica distância entre realidade e direitos preconizados pela Carta de 1988, no manejo do território e nas garantias de autonomia dos povos locais.
E, no ano passado, em sua 49ª Sessão, o tribunal acolheu denúncias de ecocídio e violação de direitos dos povos do cerrado brasileiro. A sentença, porém, ainda não foi divulgada.
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Tribunal dos Povos deve condenar Bolsonaro por crimes na pandemia
Será uma condenação simbólica, é verdade, uma vez que o Tribunal Permanente dos Povos, desprovido de competência judicial, não pode aplicar qualquer tipo de sanção aos criminosos julgados por ele. Inspirado no Tribunal Bertrand Russell, que em 1967, também de maneira simbólica, julgou os crimes praticados pelos Estados Unidos na guerra do Vietnã, o Tribunal Permanente dos Povos foi criado em 1979 para ser um tribunal "de opinião".
"A finalidade é reafirmar a autoridade da voz dos povos quando Estados e instituições internacionais falham em proteger os direitos dos povos", declarou o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro acerca dos tribunais de opinião na abertura desta 50ª sessão, na última terça-feira (24). Segundo Pinheiro, professor titular aposentado de Ciências Políticas na USP e ministro dos Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso, é este o caso do Brasil.
Mesmo sem poder de sanção, uma sentença condenatória no Tribunal Permanente dos Povos terá o condão de ampliar a visibilidade sobre as violações de direitos praticadas por Bolsonaro e seu governo, bem como de incentivar novas investigações e contribuir para a adoção de políticas protetivas dirigidas aos povos por ele ameaçados.
Sobretudo, a iminente condenação de Jair Bolsonaro neste tribunal poderá constrangê-lo ainda mais no cenário internacional, ao mesmo tempo em que o amplo material reunido pela acusação ajuda a sistematizar desde já indícios, provas e testemunhos que poderão engrossar, num futuro próximo, ações movidas contra ele na Justiça comum.
Crimes contra a humanidade
Bolsonaro virou réu no Tribunal Permanente dos Povos por iniciativa de quatro instituições que representaram contra ele: a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Coalizão Negra por Direitos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Internacional dos Serviços Públicos (PSI).
Duas advogadas e um advogado se revezaram na acusação: Eloísa Machado, que também é professora de Direito na FGV-SP; Sheila de Carvalho, que atua junto à Coalizão Negra por Direitos e coordena o Núcleo de Violência Institucional da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP; e Maurício Terena, advogado indígena da Apib.
O argumento central é de que o réu incorreu em graves violações de direitos humanos e praticou crimes contra a humanidade - como o homicídio, o extermínio e atos desumanos - que atingiram, de forma deliberada, a população negra, povos indígenas e trabalhadores da saúde durante o período mais delicado da pandemia de Covid-19.
Muito mais do que negligência
Os números são impressionantes. Os pronunciamentos compilados pelas entidades e reunidos num vídeo exibido durante a audiência, nauseantes. Cito alguns exemplos.
Estudos realizados em 2021 mostraram que 63% dos profissionais de saúde não tinham equipamento de proteção individual adequado para atuar na linha de frente da Covid, parte deles nem sequer máscaras cirúrgicas. Foi preciso cobrar na Justiça para que o EPI começasse a chegar.
Em março daquele ano, entidades de classe computaram a morte de um profissional de saúde a cada nove horas no país.
Houve hierarquização de vidas na distribuição de vacinas aos profissionais de saúde num amplo conjunto de unidades: primeiro vacinavam-se os médicos e médicas; se sobrassem vacinas, eram aplicadas nas equipes de enfermagem. Nas raras vezes em que havia excedente, imunizavam-se profissionais de serviços gerais, atendimento, limpeza.
O governo decidiu deliberadamente suspender a contagem dos casos de contágio e de óbito após os primeiros meses, o que obrigou veículos de imprensa a organizar um consórcio a fim de sistematizar os dados que o governo se negou a sistematizar.
Faltou oxigênio em Manaus. Quando chegou oxigênio, não havia medicamentos essenciais para a sedação. Para tentar salvar a vida dos pacientes, enfermeiros precisaram amarrá-los nas macas e intubar sem sedação, ato equivalente à tortura.
Com 2,7% da população mundial, o Brasil somou 11% das mortes por Covid.
Não houve testagem ampla, sobretudo nas classes mais baixas. Pessoas com renda acima de quatro salários-mínimos fizeram testes de Covid quatro vezes mais vezes, em média, do que cidadãos com renda de até meio salário-mínimo. Mais da metade da população brasileira jamais testou.
Pelo menos 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas apenas no primeiro ano da pandemia somente com medidas não farmacológicas, ou seja, com lockdown, distanciamento, uso de máscaras e uma política de busca ativa e testagem em massa.
Necropolítica
Enquanto isso, Jair Bolsonaro não dizia apenas que a Covid era uma gripezinha, mas envidava esforços reiterados para demover a população das três coisas que mais poderia salvar vidas: o distanciamento, as máscaras e as vacinas. Mais do que isso, sempre segundo a acusação: pressionou pelo uso de medicamentos ineficazes, protelou a aquisição de imunizantes a despeito das muitas ofertas feitas por laboratórios que já começavam a produzir comercializar vacinas no segundo semestre de 2020, e fez o que pôde para levar adiante o projeto perverso de buscar a imunidade de rebanho induzindo o contágio de muitos.
Aglomerações promovidas por Bolsonaro, na terra ou no mar, sempre sem máscaras - chegando ao cúmulo de abaixar a máscara de uma criança de colo com a qual fazia uma selfie - completam a extensa lista de ações ora catalogadas como indícios de uma ação deliberada de espalhar a doença e a morte.
"Bolsonaro impõe a todos nós desde 1º de janeiro de 2019 um governo de morte e destruição", afirmou Eloísa Machado, da acusação. "O que ele fez foi encontrar na pandemia uma oportunidade de levar esse projeto a cabo." Entre outras ações, incitou o descumprimento das medidas sanitárias e boicotou a vacina de todas as maneiras que possíveis. Declarou, por exemplo, que a vacina poderia alterar o código genético - e transformar a gente em jacaré, quem lembra? - e transmitir o vírus da Aids.
"O surgimento da pandemia foi algo repentino, imprevisível, é claro", acrescenta Eloísa. "Mas aqui o que estamos destacando não é a resposta imediata, mas toda a gestão, a forma com que ele lidou com a doença ao longo de mais de dois anos".
Para Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública, um extenso e cuidadoso trabalho de levantamento de todas as medidas provisórias, portarias, decretos e vetos presidenciais deflagrados nos últimos dois anos com algum impacto na saúde revelou que a atuação de Bolsonaro na gestão da pandemia não pode ser chamada de negligente ou de equivocada, apenas.
"O que houve foi um projeto deliberado para impedir a adoção de medidas de contenção da doença e promover seu alastramento", diz Deisy. "Isso aconteceu de diversas formas, mas principalmente por meio de campanhas de desinformação e perseguição, inclusive judicial, a governos estaduais que adotaram medidas de proteção mais restritivas. Imunização por rebanho nada mais é que um outro nome para assassinato em massa".
Genocídio negro
A população negra foi particularmente impactada por esse extermínio deliberado, segundo a denúncia, o que pode ser constatado quando se faz um recorte de raça e cor na relação das vítimas.
Profissionais do sistema de saúde sem equipamento de proteção individual, últimos a receber vacina, eram majoritariamente negros.
A população de Manaus, onde a imunidade de rebanho foi particularmente encorajada e onde a população ficou sem oxigênio e sem sedação, num cenário apocalíptico que acabou merecendo ampla divulgação na imprensa, é 75% parda e preta, segundo o IBGE: uma das capitais mais negras do país.
Na visão da advogada Sheila de Carvalho, a má gestão dos impactos da pandemia na população negra é reflexo da desumanização do povo negro que Bolsonaro promove desde antes de ser eleito, quando já circulavam vídeos em que ele se referia ao peso dos negros em arroba (unidade utilizada para calcular o peso de animais, em particular do gado bovino).
Wania Sant'Anna, da Coalizão Negra por Direitos, lembrou que a primeira vítima fatal da Covid no Brasil foi uma emprega doméstica que contraiu o vírus dos patrões. "Não é à toa que uma das primeiras pressões governistas foi buscar caracterizar o trabalho doméstico como essencial", ela diz. "O STF não deixou".
Genocídio indígena
O terceiro grupo especialmente impactado pelas violações de direitos praticadas pelo réu durante a pandemia - uma vez que o tribunal dos povos elege como cerne de sua atuação a defesa dos direitos coletivos de grupos específicos - é formado pelo conjunto dos povos indígenas: 305 em todo o Brasil, segundo o advogado indígena Maurício Terena, um dos três responsáveis pela acusação.
Aqui, o que está em análise é a ação deliberada do governo federal em torno de decisões, investiduras e movimentos que têm como meta ou como resultado o desaparecimento desses grupos - tanto por meio de políticas de extermínio quanto por meio de pressões incontornáveis para que deixem de existir enquanto grupo étnico, linguístico, cultural.
Dinaman Tuxá, coordenador da Apib, destacou que a política de genocídio teve início no primeiro dia de mandato, quando o presidente empossado confirmou sua decisão de descumprir a Constituição Federal. Segundo a Carta Magna, é obrigação do Estado demarcar terras indígenas, coisa que Bolsonaro prometeu não fazer, nem um centímetro, até o fim de seu governo. Por isso uma de suas primeiras ações foi tirar da Funai a prerrogativa de demarcar terras indígenas e entregá-la para o Ministério da Agricultura, agora nas mãos do agronegócio, personificado na figura da ministra Tereza Cristina.
Bolsonaro cumpriu a promessa.
O advento da pandemia de Covid logrou multiplicar o ímpeto devastador do presidente. O plano nacional de imunização apresentado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2020, por exemplo, colocou a população indígena como prioritária, mas considerou apenas os moradores de terras homologadas. Ao deixar de fora os indígenas que viviam em áreas ainda não homologadas ou em cidades, o plano desprezava metade da população indígena total.
Antes das campanhas de vacinação, missões evangélicas foram denunciadas por entrar em terras indígenas, com a proteção e o incentivo do presidente, para difundir ali o mesmo discurso negacionista e anticientífico divulgado por Bolsonaro em suas lives. Espalhavam que tomar vacina era arriscado e que as máscaras eram ineficazes. Que eram todos fortes demais para se importar com uma "gripezinha". E que medicamentos como a cloroquina eram capazes de curar causando menos riscos que a vacina.
Os resultados foram catastróficos. Algumas etnias, como os korubos, tiveram mais de 70% de sua população contaminada, por agentes de saúde, missionários, ou, em muitos casos, pela presença cada vez mais próxima e intensa de garimpeiros, madeireiros e pecuaristas. "Não há nenhuma política de Estado que tenha como objetivo a proteção dessas comunidades", diz Dinaman.
Segundo o advogado Maurício Terena, a formação de uma barreira sanitárias nas aldeias foi uma reivindicação da Articulação dos Povos Indígenas garantida por imposição judicial, mas que nunca chegou a ser feita. "Nem sequer o fornecimento de água potável às aldeias o governo cumpriu", diz.
O acusador lembra também que os 305 povos indígenas que vivem no território brasileiro praticam cerca de 170 línguas diferentes e que parte dos indígenas não compreende o português. "Nenhuma comunicação oficial sobre as medidas sanitárias ou as campanhas de imunização foi feita nessas terras nas línguas próprias dos indígenas", diz.
Há, nesse interim, o risco iminente da devastação de povos isolados. Do povo Piripkura, há apenas dois sobreviventes. Do povo Tanaru, apenas um. "Perdemos para a Covid 19 o último Juma que havia no Brasil", lamenta Maurício Terena, com a voz embargada. Aruká Juma morreu aos 86 anos em fevereiro de 2021.
A ausência de barreiras nas aldeias e os constantes ataques oficiais à política de restrição de acesso, por um governo que insiste em dizer que os indígenas são vagabundos e que eles devem ser todos incorporados às cidades e aderir ao modo de vida "ocidental", apenas potencializa o risco.
Num testemunho emocionante, a indígena Auricélia Fonseca, do povo Arapiun, no Pará, falou de sua revolta ao precisar viajar até Brasília em abril de 2021, no auge da pandemia com cerca de 3 mil mortes diárias. "Tivemos de ir porque não podíamos permitir que nos matassem", ela diz. "Eram vários os projetos de morte, não apenas a Covid. Garimpo, marco temporal, agrotóxicos, desmatamento, o envenenamento dos mundurucus e ianomâmis por mercúrio, nossas crianças mortas pelas dragas nos garimpos, as mulheres estupradas. Estão nos matando de muitas formas. A boiada passou e continua passando."
Sentença
Todos os fatos e números apresentados nos dois dias de audiência estão consolidados na peça de acusação encaminhada ao Tribunal Permanente dos Povos. Eles se apoiam em farto material de pesquisa.
O Governo Federal não enviou representantes. Paulo Sérgio Pinheiro, a quem coube presidir essa sessão, afirma que recebeu uma reposta oficial segundo a qual o Governo considerou que não lhe cabe dar satisfação, uma vez que esse tribunal não está previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Ficou sem advogado de defesa e sem testemunhas.
O júri é formado por doze membros, de nacionalidades distintas, com trajetória reconhecida no âmbito do direito ou nas áreas de ciências sociais e saúde. O presidente do júri é o ex-juiz e eminente jurista italiano Luigi Ferrajoli, referência mundial em Direitos Humanos.
Milhares de municípios, abastecidos por empresas públicas, serão forçados a considerar propostas de privatização. Maiores mananciais do mundo são cobiçados por corporações como Coca-Cola e Nestlé. Congresso entrega – e mídia cala-se
O país atravessa uma crise hídrica que afeta diretamente o nível dos reservatórios dos subsistemas elétricos. De acordo com o último boletim divulgado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), divulgado em 10/09/21, os reservatórios das Usinas Hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste estão operando com apenas 22,7% de sua capacidade de armazenamento. Esses reservatórios, que são responsáveis por cerca de 70% da geração hídrica do país, apresentam os níveis mais baixos dos últimos 91 anos. Os especialistas mencionam redução do nível dos reservatórios que pode chegar à 10%, o que seria muito grave, já que o sistema elétrico brasileiro nunca operou abaixo de 15%.
Devido à sua indiscutível essencialidade a água está sempre no centro da luta entre as classes na sociedade, aqui e no mundo todo. O fato do Brasil deter os maiores mananciais do mundo não nos livra de uma guerra pelo uso da água, ao contrário. Em junho do ano passado (24/6/20), o Senado Federal aprovou a lei 4.162/2019, que trata da privatização do setor de saneamento no Brasil. Segundo essa lei, a partir de março de 2022, todos os contratos de prestação de serviços de saneamento (o que inclui distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos) existentes entre os municípios brasileiros e as estatais de saneamento, em sua maioria, poderão ser revisados e reavaliados. Ao invés de continuarem a existir os contratos de programa, será obrigatório a realização de editais de licitação entre empresas públicas e privadas, o que poderá significar, a partir do ano que vem, a privatização da maioria dos serviços de saneamento no país.
Como funciona o sistema de fornecimento de água nas cidades, atualmente? As cidades firmam acordos direto com empresas estaduais de água e esgoto pelo chamado contrato de programa, que contêm regras de prestação e tarifação, mas permitem que as estatais assumam os serviços sem concorrência. O novo marco extingue esse modelo, transformando-o em contratos de concessão com a empresa privada que vier a assumir o serviço, e torna obrigatória a abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas. Cerca de 71% dos Municípios brasileiros possuem contratos de programa com os respectivos Estados da Federação em relação a tratamento e abastecimento de água, enquanto apenas 2% fizeram licitações para concessões plenas e 27% fornecem esses serviços de forma autônoma. Ou seja, há um enorme espaço para empresas privadas ganharem dinheiro.
O novo marco legal unifica a direita “civilizada” e a extrema direita que está no governo federal. Ele transforma serviços que devem ser considerados direitos humanos básicos e universais – como o acesso à água potável, a destinação correta de resíduos e o tratamento de esgoto de modo a preservar o meio ambiente – em passivos que devam gerar lucros e dividendos. As empresas privadas apenas terão interesse em atuar em regiões lucrativas, deixando regiões não rentáveis de fora da cobertura. O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do Projeto de Lei 4.162/2019, é direta e financeiramente interessado na privatização dos serviços de água e saneamento no Brasil. É a legítima raposa cuidando do galinheiro. Ele é um dos sócios do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13 fábricas e 36 centros de distribuição.
Água é a matéria-prima mais cara para a produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida produzido, por exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não existe nenhuma transparência nas informações divulgadas, mas ao que se sabe, as empresas de alimentos e bebidas contam com uma condição privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo, por exemplo, descontos. Mas foram essas mesmas empresas que estiveram à frente da aprovação do novo marco regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o setor privatizado, pagarão ainda menos pelos serviços.
O Brasil foi abençoado com as maiores reservas de água do mundo. Os principais aquíferos do país são: Guarani, Alter do Chão – os maiores do mundo –, Cabeças, Urucuia-Areado e Furnas. No começo de 2018, o golpista Michel Temer encontrou-se com o então diretor presidente da Nestlé, Paul Bulcke, para uma conversa “reservada”. Não é preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa foi um pouco além de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao Congresso uma Medida Provisória 844, que forçava os municípios a concederem os serviços, medida que não foi aprovada. No último dia de mandato Temer editou a MP 868, que tratava basicamente do mesmo assunto. Esta MP perdeu validade, mas o PL 4.162/19, aprovado no senado no ano passado, basicamente retomou o que constava daquelas medidas provisórias.
A pressão para privatização da água é muito forte, conta com organizações financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do setor de alimentos e bebidas, e conta com cobertura do Banco Mundial. Sabe-se que a Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões humanitárias. Tem vários casos envolvendo a Coca-Cola no mundo. Há relatos de que no México, regiões inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México, nos quais os bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns momentos, em determinados dias da semana, obrigando muitas vezes a população a comprar água extra. O resultado é que, em determinados bairros, os moradores tomam Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de conseguir, além do preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes locais que consomem 2 litros de refrigerante por dia, com consequências graves e inevitáveis sobre a saúde pública.
Sobre o projeto de privatização das fontes de água no Brasil quase não se ouve posições contrárias (como acontece com tudo que é importante). Estas são devidamente abafadas pelo monopólio da mídia comercial (uma das mais entreguistas do mundo). Exceto nos sites especializados e independentes. É que na área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no Congresso Nacional, nos Governos, nas associações de classes, empresariado, universidades.
Os encontros realizados para discutir o assunto são patrocinados por gigantes, verdadeiros monopólios em seu setor, como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses completamente antagônicos aos da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma parcela de seus lucros com propaganda, vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade ambiental e iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar de tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros, enganam muitos incautos.
O fato de que, no país que detém 12% de todas as reservas de água doce do mundo (a maior reserva entre todos os países), uma parcela significativa da população não tenha acesso regular à água potável e barata, já revela o tamanho do problema.
Rondonia: uma radiografia do fogo e violência
Porto Velho se desenha como nova fronteira agrícola. Região, reduto do bolsonarismo no Norte da Amazônia, é a capital brasileira de queimadas. Indígenas e ribeirinhos convivem com ameaças e invasões de jagunços, grileiros e madeireiros
Na contramão de países avançados, governo reduziu 29% o orçamento em pesquisa. Em plena pandemia, investiu menos que em 2009. Acadêmicos trabalham de graça e migram do país. Volume para empresas inovadoras caiu pela metade
Sob a fumaça e o cheiro espesso do diesel no ar, o dia a dia de trabalhadores precários que extraem ouro no rio Madeira. Entre jornadas extenuantes, um atrativo perverso desta atividade que devasta cultura ribeirinha: os ganhos compensam os riscos
Pandemia elevou preços em todo mundo. Enquanto países regulavam, Brasil reduziu estoques. Alta do dólar elevou exportação – e esvaziou mercado interno. Castigo ao consumidor deve perdurar, em meio a safras recordes
Inflação de alimentos e taxa de exploração no Brasil
Preço de itens básicos dispara, mas inflação — a maior em 21 anos — é apenas parte do problema. Para que lucros dos capitalistas sigam intocados, custo de vida sobe vertiginosamente, os salários despencam e direitos sociais são eliminados
A hegemonia rentista no Brasil está abalada. Regressão produtiva e crise tornam discurso de “austeridade” cada vez mais insustentável. Modelo primário-exportador é fortalecido — e agronegócio tornou-se central ao projeto ultraliberal
Prefeito de Cerro Grande do Sul (RS), Gilmar João Alba, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro
247 - Falta seis dias para o golpe anunciado de Jair Bolsonaro.
A Polícia Federal (PF) flagrou na última quinta-feira (26) o prefeito de Cerro Grande do Sul (RS), Gilmar João Alba (PSL), com R$ 505 mil no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. O dinheiro foi encontrado armazenado em caixas de papelão durante a inspeção por raio-x. A PF disse que, ao ser abordado, o prefeito, conhecido como "Gringo Loco", afirmou não saber o valor total transportado. Na sequência, teria dito que carregava R$ 1,4 milhão. A informação foi publicada pelo blog do Fausto Macedo.
"Em virtude da dúvida sobre a origem lícita do numerário, o montante foi apreendido pela Polícia Federal, todavia, durante a contagem, foi constatado que a soma era de R$ 505.000,00 (quinhentos e cinco mil reais), contrariando as versões do passageiro", informou a corporação em nota.
A notícia ganhou repercussão na CPI da Covid, nesta quarta-feira (1). "Esse prefeito viria num avião fretado, imaginando que não houvesse controle da Polícia Federal", destacou o senador Humberto Costa (PT-PE). "Os indícios são de que os recursos viriam para financiar o ato contra a democracia o dia 7 de setembro", afirmou o parlamentar, que pediu ao presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), um encaminhamento da denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF).
"Gostaria de pedir a Vossa Excelência que pudesse enviar ao ministro Alexandre de Moraes (do STF), para que ele possa tomar as medidas cabíveis", continuou.
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), endossou o petista. "Essa informação dá conta do financiamento de crimes contra a ordem democrática, contra o Estado democrático de direito que deve acontecer nos próximos dias. É urgente um encaminhamento que a presidência da CPI encaminhe aos cuidados do ministro para a tomada de todas as providências. Essa denúncia pode dar conta de um esquema criminoso, de financiamento contra a democracia".
Vários partidários da extrema direita, em diiferentes cidades, estão oferecendo passagem, alimentação e hospedagem (tudo gratis) para os eventos golpistas de Bolsonaro em Brasília e São Paulo.
Bolsonaro pretente juntar 4 milhões de pessoas em Brasília.
Sobra dinheiro para as motociatas, para as festanças golpistas, parada de tanques e 7 de setembro da ditadura policial-militar.
Falta comida na mesa do pobre.
Milhões de brasileiros sem alimentos, água, luz, saneamento
Nosso repórter conta como os moradores têm dificuldades para dormir, conseguir combustível, água potável e até dinheiro em espécie diante do apagão de energia que já dura cinco dias
Em um dia comum, a temperatura de quase 40 graus e as medidas restritivas para conter a proliferação da covid-19 seriam mais do que suficientes para evitar a aglomeração de pessoas nas ruas do Amapá. Contudo, apesar da preocupação com a saúde e o desconforto provocado pelo calor, a população precisou escolher entre correr os riscos de contaminação ou atender necessidades básicas, como comer e dormir.
A escolha desagradável se deu por conta do cenário de caos que se instalou no estado na última terça-feira (2), após o apagão que deixou 89% da população sem energia elétrica — algo entre 765 mil pessoas. Conseguir água potável, combustível, sinal de celular e dinheiro em espécie é um desafio para as pessoas que moram em Macapá e nos outros 12 municípios afetados pela maior crise no sistema elétrico dos últimos anos na região.
O apagão aconteceu dois dias após o Governo do Amapá manter — por mais sete dias — algumas medidas restritivas no estado em função do aumento de casos e internações por covid-19.
“Ou a gente corre risco de pegar o corona ou corre risco de ficar com fome”, disse a autônoma Deura Costa, que estava há mais de sete horas em uma fila para tentar sacar dinheiro em um dos poucos caixas-eletrônicos que funcionam na capital. “Tenho em casa minha mãe de 81 anos e um neto de dois anos, mas na minha geladeira não tem nada”, lamentou.
O relato da autônoma reflete a realidade de milhares de moradores desesperados para conseguir dinheiro e comprar, além de comida, materiais de higiene e itens indispensáveis neste período, a exemplo de lanternas, pilhas e cubas de isopor para armazenar alimentos. Cartões de débito e crédito podem ser usados em alguns supermercados que funcionam a base de gerador na região central de Macapá e Santana, cidade localizada a 17 quilômetros da capital. Mas para fazer uma compra simples – de um quilo de arroz, por exemplo – é necessário ter paciência e enfrentar uma fila imensa.
Passar tantas horas na busca por um serviço é uma realidade que todos precisaram se adaptar, inclusive eu. Para abastecer o carro que usei na produção da reportagem, passei cinco horas na fila de um posto de combustível, onde conheci um jovem de 25 anos, que preferiu não se identificar. Sem máscara e em tom de revolta com a atual situação, ele disse ter esquecido da pandemia para sobreviver. “A gente tá mais preocupado em não morrer de fome e de sede do que com o vírus”, ressaltou.
Por conta do longo tempo de espera, os motoristas preferem ficar com os veículos desligados para ir empurrando os carros e motos para frente até chegar na bomba de combustível. “É um jeito de evitar o desgaste do carro nesse liga e desliga e ainda economizar o pouco combustível que a gente tem”, explicou o vendedor Carlos Gonçaves, de 43 anos, que utiliza o carro para o trabalho. “A gente não consegue táxi e nem motorista de aplicativo. E se acabar a gasolina de casa e a gente precisar ir, sei lá, para o hospital?”.
Para quem já está dentro do hospital a preocupação é outra. A rede particular funciona com geradores e a rede pública foi energizada em uma medida de emergência adotada pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). Mesmo assim, o fornecimento ainda é problemático.
“Só hoje foram quatro vezes [que o fornecimento de energia foi interrompido]. Ela vai e volta [a energia elétrica] e a gente fica preocupado com os pacientes”, contou uma enfermeira do Hospital de Emergências de Macapá, onde também são atendidas pessoas diagnosticadas com covid-19.
“No dia [que iniciou o apagão] foi difícil para todo mundo. A gente ‘tava’ fazendo manualmente o oxigênio porque o equipamento estava desligado”, explicou a enfermeira, sobre o processo para ambuzar oxigênio por meio de um equipamento manual para estabilizar um paciente.
Em frente ao Hospital de Emergências também encontrei a Luceide Serrano. Mesmo tendo 70 anos e, com isso, fazendo parte do grupo de risco de contaminação em meio a pandemia, ela não conseguiu ficar em casa por conta da preocupação com irmão, internado por causa da covid-19.
“Ele precisa de uma UTI e até agora não conseguimos”, contou a aposentada sobre a busca por uma vaga no Hospital Universitário (HU), onde são concentrados os atendimentos de alta complexidade para os pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.
“Eu não sei se a energia tá comprometendo o atendimento dele, eu não sei. Mas a gente fica preocupado, né?”, indagou a idosa, reclamando da falta de informações para os familiares dos pacientes.
O último boletim do Governo do Estado indica mais de 52 mil casos confirmados de covid-19 e 751 mortes. Atualmente, em isolamento hospitalar nas redes pública e privada são 202 pacientes, sendo 128 casos confirmados e 74 suspeitos.
À noite, a iluminação no hospital é da porta para dentro. Nas ruas ao redor, a escuridão é quase que total se não fosse pelos faróis dos carros, lanternas e velas dos moradores. Com uma dessas velas nas mãos, Eliezer Bezerra me recebeu na porta da casa dele, no Centro de Macapá. Aos 65 anos, ele diz só ter presenciado uma situação semelhante na infância. “Naquela época era tudo muito difícil. Mas agora?”.
Eliezer, como os outros moradores, tem dificuldade em dormir à noite. No Amapá, ar condicionado e ventilador são necessidades, não luxo. O clima quente e úmido faz qualquer pessoa suar muito em um lugar sem refrigeração. Mesmo com todas as janelas de casa abertas, ter uma noite confortável é impossível. “Tô me acostumando a dormir só de ‘manhãzinha’, quando fica menos quente”, relatou o aposentado.
Hotéis que possuem gerador esgotaram todas as vagas ainda na primeira noite de apagão. A administração de um dos hotéis com o qual entrei em contato, me informou ter montado “um serviço diferenciado para abrigar novos hóspedes”. Pagando uma taxa diária de R$ 100, uma pessoa pode dormir em um colchonete — que precisa ser comprado pelo hóspede – em um salão com dezenas de outras pessoas, mesmo em período de pandemia. Até a oferta deste serviço está esgotada.
“Não daria para pagar um serviço de hotel para toda a minha família, mesmo que tenhamos um salário razoável”, lamentou a dona de casa Zânia Ferreira. “Melhor ficar no calor em casa, do que ficar aglomerado e pegar covid-19 depois”, disse a mulher, que faz parte do grupo de risco por ter feito um transplante de rim e, consequentemente, tem imunidade baixa por causa das medicações para que o organismo não rejeite o órgão transplantado.
Sem água, sem bateria e sem sinal
As tomadas dos supermercados e dos dois shoppings de Macapá que funcionam com sistemas isolados estão cada vez mais disputadas. Uma única tomada chega a ser usada por até cinco pessoas, que se acomodam do jeito que podem: sentadas no chão, escoradas em colunas e, quando não há alternativa, o jeito é ficar em pé esperando o celular carregar.
“Foi o jeito que encontrei para tentar entrar em contato com a família e meus amigos”, contou o professor Clauber Rosivan, de 38 anos. Ele passou uma manhã inteira em um shopping no Centro de Macapá na esperança de, após carregar o telefone, conseguir o sinal da operadora para fazer ligações. “São poucas pessoas com quem eu consegui falar. Poucas mesmo. Dá uma aflição não saber se todos estão bem.”
Poucos moradores estão tendo o fornecimento regular de água da Companhia de Água e Esgoto do Amapá (CAESA). Mesmo assim, a água da torneira não é a ideal para o consumo. Por isso, milhares de pessoas — sem transporte próprio — precisam andar quilômetros para comprar garrafões de água mineral em distribuidoras e minimercados.
“A nossa água encanada vem meio barrenta, então não tem outro jeito. Tenho um neném em casa e ele precisa de água mineral”, destacou a dona de casa Ediane Gemaque, que precisou ir para outro bairro andando na busca por água para ela e a família.
O apagão
O apagão foi consequência de um incêndio em uma subestação da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), por volta das 21h de terça-feira (2), na Zona Norte de Macapá. Os três transformadores da subestação foram danificados, provocando a interrupção no fornecimento de energia elétrica.
Na sexta-feira (6), o governador Waldez Góes (PDT) assinou um decreto que estabeleceu situação de emergência no Amapá. O Ministério de Minas e Energia (MME) lançou três planos para normalizar o fornecimento de energia elétrica em até dez dias. A curto prazo, um dos transformadores – o menos danificado – passa por reparos e, caso o resultado seja positivo, é previsto o restabelecimento de até 70% do fornecimento. Os testes iniciaram na noite de sexta-feira e no sábado alguns bairros de Macapá tiveram o fornecimento restabelecido. Porém, com os problemas de comunicação no estado, não é possível precisar a quantidade de bairros onde houve a normalização.
Um segundo transformador foi transportado do município de Laranjal do Jari – município a 170 quilômetros de Macapá – para a capital. Os testes, segundo o MME, devem iniciar neste domingo. Um terceiro transformador será adquirido de Boa Vista (RR) e deve ser instalado em até 30 dias.
Conforme o plano apresentado pelo Governo Federal, o funcionamento de dois transformadores será suficiente para garantir 100% do fornecimento de energia elétrica.
Moradores que conseguem ligação para a CEA são informados que será iniciado um “rodízio de fornecimento” de energia de seis em seis horas nos bairros do estado. O Governo do Amapá montou o Comitê de Crise para amenizar os impactos provocados pelo apagão. São abastecidos a cada 6 horas os geradores dos hospitais, além de um abrigo de idosos e o sistema penitenciário, ainda segundo o Governo do Amapá.
Fornecimento nunca foi bom
A CEA é uma empresa de economia mista, tendo como o principal acionista o Governo do Amapá. O processo de federalização iniciou em 2013. Desde então, o Governo Federal é o responsável pela presidência, diretorias de administração e financeira, além de indicar os gestores de Gestão e Planejamento e Expansão.
A federalização foi uma saída para a empresa que estava ameaçada de caducidade após contrair uma dívida de quase R$ 1,2 bilhão com a União no acumulado de uma década. Foi necessário um empréstimo com a Caixa Econômica Federal para o pagamento da dívida.
Mas o fornecimento de energia elétrica na região nunca foi satisfatório para a população. São frequentes as interrupções, principalmente, no período chuvoso. Moradores convivem com eletrodomésticos queimados por causa das quedas de energia, além de outros problemas.
“Nunca foi bom. Três, até quatro vezes por semana a gente fica sem energia em casa. A gente fica uma, duas horas e, às vezes, até mais”, disse a jovem Thais Pelaes, que mora na Zona Sul do município de Santana. “Nunca foi fácil, mas agora essa situação já tá precária demais.”