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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Nov20

Vidas matáveis expostas ao vírus e ao genocídio cotidiano

Talis Andrade

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Por Lucas da Silva Santos

 

A violência policial é fartamente direcionada contra as populações pobres e periféricas, as incursões mortíferas não são práticas de exceção, pelo contrário, a regra é o extermínio dos corpos pobres e negros sob as patas do Estado Brasileiro. Evidentemente, essa política fundada em táticas de guerra, truculência, violência(s) e letalidade sobre os corpos indesejáveis ou definidos como inimigos, são resquícios históricos desde o Brasil colonial e suas heranças escravocratas. 

Salienta-se que os policiais também são vítimas dessa política de Estado, nessa guerra contra a “criminalidade” e às drogas, as vítimas e os vitimizados são os mesmos, em outras palavras: gente pobre matando gente pobre para  assegurar-se os interesses do Estado e do Mercado.

A (in)segurança pública é um projeto de poder, no qual o Estado atua fortemente nas regiões precarizadas, neste jogo permanente de se “fazer guerra” contra a população pobre e negra, vende-se o discurso da pacificação. As operações mortíferas da polícia na sociedade pós-abolição (formal) da escravidão, se atualizam nos dias atuais na definição da população negra, pobre e periférica, sobretudo masculino, enquanto “inimigo da ordem”, ademais, o esquecimento dos períodos autoritários e violentos do Estado brasileiro, resultam-se na naturalização e normalização do extermínio dessas populações.[1]

Esses legados históricos: escravidão, Brasil colonial, ditaduras militares, retratam o atual contexto da sociedade brasileira, no qual verifica-se o imobilismo social frente ao cenário de intensificação da violência estatal desigual. O ano de 2020, a partir da pandemia do Covid-19, as favelas, comunidades e periferias no Brasil, para além dos inúmeros problemas sociais: desemprego, falta de saneamento básico, educação, acesso à saúde, e o “novo” problema mortal o Covid-19.

No entanto, os moradores/as das favelas também tiveram que enfrentar o desafio de sobreviver ao aumento das incursões letais da polícia brasileira. Esse crescimento da letalidade policial em tempos de pandemia e de isolamento social, reverberam que essa atuação não se trata apenas de um erro de procedimento, ou ainda de efeitos colaterais em razão do aumento da criminalidade.

A sociedade brasileira é indiferente a violência desigual operacionalizada diariamente pelo Estado, talvez, um ideário mais ingênuo pudesse crer que durante o período da pandemia do Covid-19, a política de morte do Estado seria atenuada e não surgissem novos casos emblemáticos de extermínio policial. 

Pelo contrário, o fato é que surgiram novos casos e novos nomes ganharam destaque pela mídia hegemônica, a brutalidade visível (aparente) da polícia brasileira, e ao mesmo tempo invisibilizada historicamente aos olhos da população, fez novas vítimas, talvez, pelo momento atual de crise sanitária, os casos de João Pedro, Ágatha Félix, Kaué Ribeiro dos Santos e Kauan Rosário, receberam maior atenção e geraram o mínimo de indignação social.

Não se pode olvidar que essas crianças foram mortas a partir de operações policiais (criminosas) no Rio de Janeiro, ocorridas recentemente, corroborando o “pé na porta”, inclusive em tempos de quarentena. O caso de João Pedro, representa o atual estágio da violência policial nas favelas, o adolescente foi morto pela polícia dentro de sua própria casa no complexo de favelas do Salgueiro, no Rio de Janeiro[2], sob a justificativa de combate ao narcotráfico. 

Importante ressaltar que os moradores das favelas do Rio de Janeiro, assemelham-se a uma espécie de “campo de concentração a céu aberto”[3], no ano de 2020, são expostos ao vírus e a(s) violência(s) permanentes que recaem prioritariamente sobre seus corpos, afirma-se isso, em virtude da desigualdade racial no Brasil. Segundo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2020, no ano de 2019, 79,1% das vítimas de intervenções policiais eram negros.[4]

O Estado do Rio de Janeiro, serve como exemplo emblemático desse “desafio” dos moradores da favela em resistirem ao vírus e a polícia, visto que mesmo frente a diminuição de crimes, em especial,  roubo e homicídio, as operações mortíferas cresceram durante o período da pandemia. Destaca-se que somente no mês de abril de 2020, foram 177 mortes decorrentes de atuações policiais, um aumento de 43% em relação ao mesmo período do ano de 2019, sendo assim, a cada quatro horas, ocorreu uma morte a partir de intervenção da polícia. Considerando os primeiros quatro meses de 2020, foram 606 mortes, um crescimento de 8%.[5]

Em complemento, a escalada abrupta de mortes decorrentes de operações policiais em meio a pandemia, também se operacionalizou na Polícia Militar do Estado de São Paulo, os agentes policiais somente no mês de abril de 2020, executaram 116 pessoas, apesar de período de quarentena, tais números representam recorde dos últimos 14 anos[6], todavia, a pergunta que merece ser levantada: quem assina essa violência? 

A responsabilidade dessas mortes não é exclusiva dos policiais que apertaram o gatilho, mas também do Estado que ratifica a institucionalização da violência como forma de “combate” ao crime e ao criminoso. As operações violentas e letais somente foram reduzidas em virtude de decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, proibindo as incursões durante a quarentena, isto é, evidenciando como o controle interno e externo das polícias são protocolares.

A realidade que insiste em bater em nossa porta, revela como é cruel e massacradora essa política de Estado, basta, para tanto, analisar os números de assassinatos da população negra e pobre no Brasil,  sem contar a cifra oculta, em 2019: foram 6.357 mortes por intervenções policiais (79,1% negros), igualmente, 172 policiais foram assassinados. [7]

O massacre direcionado contra essa população não pode ser considerada como “uso excessivo da força”, essas práticas policiais militarizadas nas favelas e territórios periféricos representam a realidade e não a exceção, visto que a polícia brasileira é conhecida internacionalmente como a mais letal do mundo[8], bem como a polícia que mais vitimiza seus agentes. 

Em síntese, para além das inúmeras violações direcionadas contra essas pessoas, trata-se de tarefa urgente “enxergar aquilo que se vê”, destarte, que o Estado brasileiro através dessa política de morte vitimiza sua população. Portanto, o mundo idealizado do “dever ser” no qual a polícia segue os parâmetros normativos e democráticos, ou de uma polícia cidadã e civilizatória, não chega nos espaços e regiões periféricas como as favelas[9], a população pobre e negra é perversamente inserida nessas violências cotidianas e naturalizadas no Brasil, vamos insistir em negar essa realidade cruel até quando?  

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Notas:

[1] WERMUTH, Maiquel ngelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309. p. 295.

[2] BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.

[3] Expressão utilizada por Edson Passetti. 

[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[5] RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.  

[6] BRASIL DE FATO. Na quarentena, PM de SP mata 102 em abril e bate recorde dos últimos 14 anos. Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/11/na-quarentena-pm-de-sp-mata-102-em-abril-e-bate-recorde-dos-ultimos-14-anos. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[7] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[8] ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional informe 2017/18: O estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[9] FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018. 

Referências:

– ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional informe 2017/18: O estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

– BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.

– BRASIL DE FATO. Na quarentena, PM de SP mata 102 em abril e bate recorde dos últimos 14 anos. Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/11/na-quarentena-pm-de-sp-mata-102-em-abril-e-bate-recorde-dos-ultimos-14-anos. Acesso em: 10 nov. 2020.

– FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

– FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018. 

– RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em:http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.  

– WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309.

 
08
Jun20

Quando vemos corpos negros nas chacinas: "ali era marginal, e marginal tem que morrer"

Talis Andrade

 

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IV - Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra 'como supremacia branca funciona no Brasil', diz historiadora 

Camilla Costa entrevista Luciana Brito

 

BBC News Brasil - E a abolição da escravatura no Brasil?

Luciana Brito - Depois que os EUA aprovaram a abolição, em 1865, os jornais de lá passaram a cobrir quase que diariamente a situação no Brasil, que tinha recebido muito mais negros traficados. Eram 400 mil nos Estados Unidos e quase cinco milhões aqui. Chamava atenção que o Brasil conseguisse arrastar a escravidão por tanto tempo.

Mas os diplomatas e políticos brasileiros se justificavam dizendo que aqui a escravidão era branda, que não havia conflito de cor. Outra justificativa comum era: "vamos chegar na abolição, mas estamos fazendo isso de maneira pacífica, porque aqui não tem guerra".

O Brasil acabou com a escravidão e entrou no pós-abolição com esse mito de "não temos conflito racial como nos Estados Unidos". E outros mitos como "o negro aqui não trabalha, é preguiçoso". Aí foram criminalizadas as atividades negras pela lei da vadiagem, do Código Penal de 1890. Não tinha nada lá falando sobre negro, mas a capoeira era crime, o candomblé era crime. Ficar na rua, algo comum para as pessoas negras libertas que não tinham emprego ou tinham empregos informais, era crime.

Então, depois da abolição, o Brasil não criou leis claramente segregacionistas, mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com a população negra, que transformaram o racismo em algo não dito.

A educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito deixou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível.

Raramente uma pessoa negra no Brasil tentou entrar num restaurante e ouviu "preto não entra aqui". Nós sabemos, e vivenciamos isso, que aqui você ouve "as mesas estão todas ocupadas". Você entra em uma loja e não é expulso, mas a vendedora lhe ignora. Quem não lhe ignora é o segurança.

Nós não tivemos uma formação, desde a infância, na qual somos treinadas e treinados para perceber o racismo no momento em que ele está acontecendo, sem ser nomeado.

Isso faz com que vejamos coisas como o avô de Ágatha (Félix, de 8 anos, morta por tiros de fuzil de um policial militar em 2019) dizendo a jornalistas na porta do IML (Instituto Médico Legal): "Ela fazia inglês, ela fazia balé, ela era boa aluna".

Porque ele acredita que a família fez tudo certo. Nesse pacto civilizatório brasileiro, nessa ideia da família de bem, é preciso dizer "ela não merecia", como se fosse uma questão de merecimento.

Somos treinados, inclusive as pessoas negras, para que, quando vemos corpos negros na televisão sendo arrastados pela delegacia ou as chacinas nas comunidades, pensemos: "ali era marginal, e marginal tem que morrer".

O Brasil foi resolvendo seu problema racial assim: com muita força policial, muita repressão e sem falar abertamente do conflito. E construímos uma identidade nacional como uma democracia racial pacífica, acreditando que o problema racial é um problema do outro.

O nosso olhar, sobretudo o da grande imprensa, sobre o conflito nos EUA, continua sendo esse: "Olha que absurdo o policial branco que matou o negro". Mas dizendo subliminarmente, pelo silêncio, que no Brasil não tem isso.

 

BBC News Brasil - Mas ao mesmo tempo em que falamos do racismo estrutural nos EUA como um dos fatores que provocaram a onda de protestos, no Brasil, estudos mostram que 75 a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil são negras, inclusive em intervenções policiais. Estatisticamente, negros também têm menos escolaridade, menor renda e menos acesso à saúde, assim como lá. É possível dizer, mesmo subliminarmente, que "no Brasil não tem isso"?

Luciana Brito - É cada vez mais difícil sustentar esse discurso.

Mas sempre tem alguém que usa um argumento do tipo: "Lá nos Estados Unidos o policial que matou o homem negro foi branco, mas aqui no Brasil não há essa dicotomia, porque os policiais também são negros".

Esse é o nó que o mito da democracia racial dá nas nossas cabeças.

Eu vi um vídeo de um policial branco nos EUA atacando uma jovem negra. A superior do policial, também uma mulher negra, interrompe a ação dele, o empurra violentamente para longe da menina e o repreende na frente dos colegas.

No Brasil, essa mulher ou esse homem negro, quando veste a farda, é capaz de abater uma pessoa negra, e é racismo mesmo assim. Porque, aqui, o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o "negro de bem".

O racismo no Brasil é mais ardiloso. A população negra é maioria, mas é confundida como um inimigo que faz parte da sua vida, mas que não é declarado.

Por exemplo, não são todas as famílias negras que se identificam com a dor da família de Ágatha ou de João Pedro. Ou mesmo de Miguel. Elas pensam: "Poxa, que má sorte aquela criança estar ali".

Aí vêm os argumentos: "Ah, mas estava ali fazendo o quê?" ou "Ah, foi um acidente". Todos esses "poréns" solapam uma realidade que grita, que é o fato de que essas pessoas estão sendo abatidas por serem negras, por serem consideradas menos cidadãs. Menos seres humanos.

As pessoas no Brasil até aceitam dizer: "É porque era pobre". Parece que é mais aceitável atribuir determinadas desigualdades à pobreza do que ao racismo.

 

BBC News Brasil - Como a classe influencia a percepção sobre o racismo no Brasil?

Luciana Brito - É interessante pensar que os ganhos que a população negra teve, fruto de conquistas do movimento negro, como a Lei de Cotas Raciais e a PEC das Trabalhadoras Domésticas, mexeram nas estruturas da sociedade brasileira e criaram uma reação violenta. E foram leis que se relacionam muito à formação de uma classe média negra no Brasil.

As trabalhadoras domésticas passaram a ter direitos trabalhistas, os filhos de muitas entraram nas universidades, ou elas mesmas encontraram outras possibilidades de emprego — eu tenho hoje colegas que foram trabalhadoras domésticas. E aumentaram as possibilidades para a juventude negra através da educação universitária.

Essa possibilidade de que negros pudessem transitar, em maior quantidade, pra outra classe social, incomodou muito as estruturas do racismo brasileiro. Porque a diferença de classe social no Brasil se estrutura na raça.

Só que para uma pessoa negra — e aí falo da minha própria experiência e dos meus amigos — transitar para a classe média significa apenas que você acessa os bens de consumo da classe média. Você mora legal, tem carro bacana, seu filho vai para escola particular, mas você continua emaranhado no racismo estrutural.

Quando entro em uma loja de creme de cabelo, o segurança ainda me segue. Quando eu vejo uma criança como Ágatha ou João Pedro serem alvejados, isso me afeta diretamente, porque tenho uma criança com aquelas características. Eu tenho medo de meu marido dar um passeio na rua à noite sozinho.

Além disso, o restante da minha família não é classe média. Eu sou a única. É por isso que dizemos que não há saída individual para sair desse racismo, embora muitas pessoas negras acreditem que isso é possível.

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05
Jun20

Cara gente branca: quantos mais teremos que morrer?

Talis Andrade

Whasington contra o racismo que matou Jorge Floyd (Koshu Kunii/Unsplash)

Protestos em Whasington contra o racismo que matou Jorge Floyd

(Koshu Kunii/Unsplash)

 

O racismo que alvejou a casa de João Pedro, matando-o, e o racismo que asfixiou Floyd, primeiro limita acessos, depois cria arquétipos sobre esses corpos que – cobertos por um véu – não são enxergados além da imagem criadas sobre eles

por Marllon da Rocha

Le Monde

Nos últimos dias temos observado a eclosão de protestos cada vez maiores por todo território dos EUA, em razão da violência policial estadunidense contra a população negra. A morte de George Floyd, homem afro-americano de 46 anos, marcou o estopim para manifestações, por algo que não é novo: o assassinato de mais um corpo negro de maneira banalizada, expressando a descartabilidade de algumas vidas em detrimento da reafirmação de uma superioridade racial em um país que é marcado pela opressão e violência aos cidadãos de cor, desde sua formação. Na vertigem dos protestos, que não têm data para acabar, como a morte de George se relaciona com a violência policial no Brasil?

Em 18 de Maio de 2020, João Pedro Mattos Pinto, jovem negro de apenas 14 anos foi morto em sua residência no complexo do Salgueiro (RJ), após ter sua casa violentamente alvejada com mais de 70 tiros. Tiros, estes, disparados por um agente do Estado.  O caso de João Pedro poderia ser tratado como a ação isolada de um policial, em uma operação específica da polícia, se não fosse pelo fato da recorrência destes casos. Somado a mais quatro outras crianças negras, João entra para estatística como a quinta criança morta durante uma ação policial em comunidades do Rio de Janeiro, no último ano.

De 2002 a 2017, mais de 250 mil pessoas negras foram assassinadas no Brasil. Isto falando apenas dos casos registrados. De acordo com informativo IBGE (2019), sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, até 2017, a população negra tinha 2,7 mais chances de ser assassinada do que pessoas brancas. A curva de vulnerabilidade de pessoas negras está em constante ascensão, enquanto a violência contra pessoas brancas se manteve estável. A taxa de homicídios entre jovens de 15 a 19 anos, para pessoas brancas é de 34 indivíduos a cada 100 mil habitantes. Ao retratar pessoas negras, o índice sobe para 98.5 por 100 mil habitantes. Falando apenas de homens negros, há uma crescente para 185 vidas interrompidas a cada 100 mil habitantes. Em números gerais, 75% dos assassinatos que acontecem no Brasil, acontecem sobre a população negra. Além disso, a expectativa de vida para uma pessoa negra é 5 anos menor do que a expectativa de vida entre pessoas brancas, em um país onde a cada 23 minutos uma pessoas negra é morta.

Precisamos entender, no entanto, que a morte se expressa enquanto solução final no processo de exploração dos corpos negros. Os assassinatos de João Pedro, ou George Floyd, representam a ponta de um iceberg maior. Isto é, o fim de uma vida. Porém, o racismo não está apenas na morte biológica do corpo, senão acontece anterior até mesmo ao nascimento do indivíduo. Ou seja, o racismo que alvejou a casa de João Pedro, matando-o, e o racismo que asfixiou Floyd, primeiro limita acessos, depois cria arquétipos sobre esses corpos que – cobertos por um véu – não são enxergados além da imagem criadas sobre eles. Neste sentido, o imaginário sobre o substantivo negro é explorado para atender às aspirações do projeto de Estado que é praticado no Brasil, ou nos EUA: um Estado branco.

Conforme disposto pela filósofa Sueli Carneiro, há uma expressão do genocídio em um processo contínuo. Desde a experiência colonial nas américas, foi-se preciso criar mecanismos que permitissem maior controle de alguns indivíduos sobre outros, conferindo-lhes, inclusive, poder de morte. Este processo é perpassado pela apagamento das narrativas diferentes do padrão estabelecido e mais do que inferiorizar o conhecimento gerado por grupos marginalizados, ele também subalterniza pela culturalidade. Caracterizando, assim, o epistemicídio.

Ser antirracista, portanto, não deve se limitar apenas à repulsa às mortes de pessoas negras, o que deve gerar comoção social. Porém, devemos começar a repensar a maneira como somos organizados socialmente e como vivem essas pessoas enquanto corpos capazes de respirar. Depois de pensarmos em como outros seres humanos vivem, precisamos agir mais assertivamente para que corpos negros não precisem mais cair.

Em memória de: Ágatha Félix; 8 anos. Kauê dos Santos; 12 anos. Jennifer Gomes; 11 anos. Kauã Rozário; 11 anos. Kauã Peixoto; 12 anos e João Pedro Mattos; 14 anos.Image

Referências

CARNEIRO, Sueli. “A CONSTRUÇÃO DO OUTRO COMO NÃO-SER COMO FUNDAMENTO DO SER “. (2005). Diponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf

DuBois. W.E.B. “Worlds of Colour” . (1925). Disponível em: https://cominsitu.files.wordpress.com/2019/02/du-bois-worlds-of-color.pdf

06
Jan20

Letalidade policial, massacres e criminalização da pobreza

Talis Andrade

Polícia mata cada vez mais nas periferias; mortes batem recorde em presídios do Norte; caso Marielle segue sem solução

Igor Carvalho
 
Manifestantes denunciam ação policial resultou na morte de nove jovens frequentadores do baile funk em Paraisópolis, em São Paulo (SP) - Créditos: Igor Carvalho
Manifestantes denunciam ação policial resultou na morte de nove jovens frequentadores do baile funk em Paraisópolis, em São Paulo (SP) / Igor Carvalho
 

Com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência e de Sergio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o discurso da truculência e da violência ganharam eco em todo o país. O reflexo da filosofia pregada pela família que passou a habitar o Palácio do Planalto pode ser visto nas polícias do país. Durante o ano de 2019, foram diversos os casos de letalidade policial e abordagens violentas que chocaram a população. 

São Paulo e Rio de Janeiro puxam a fila de casos emblemáticos de letalidade policial. Não é à toa. Os governadores João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC), mesmo tendo desfeito durante o ano a aliança que haviam formado com Bolsonaro para se eleger, mantiveram o discurso de uso da força para controle social.

massacre de Paraisópolis, em São Paulo, encerrou um ano de críticas à atuação policial no estado. O desaparecimento de Lucas Eduardo Martins, de 14 anos, é a radiografia que revela o comportamento adotado pela corporação paulista. 

No Rio de Janeiro, Witzel chegou a afirmar que a polícia “deveria mirar na cabecinha e… fogo”. As instruções parecem surtir efeito na PM carioca, que em dez meses matou mais do que em qualquer ano inteiro desde o início dos registros, em 1998.

A violência nos presídios do norte do país também seguiu como anunciada. Somados, os massacres nas penitenciárias de Manaus, no Amazonas, e Altamira, no Pará, chegam a 112 execuções. As brigas entre facções pelo controle das unidades prisionais escancaram a ausência do Estado e a falência da política de encarceramento em massa. 

No início do ano, um massacre em uma escola da Suzano, na região metropolitana de São Paulo, deu uma ideia de como pode comportar-se uma sociedade armada. No Congresso Nacional, o governo tentou garantir o porte e posse de armas para os cidadãos, mas foi derrotado. 

Esta retrospectiva vai tratar dos acontecimentos mais marcantes da área de segurança pública neste primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.

Marielle Franco

Quando o assassinato da ex-vereadora Marielle Franco completava um ano, no dia 12 de março deste ano, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) interromperam o silêncio e a inércia de 12 meses e prenderam o policial reforma Ronnie Lessa, de 48 anos, e o ex-policial militar Élcio Queiroz, de 46 anos, pela execução da parlamentar e seu motorista, Anderson Gomes. 

A detenção dos dois suspeitos de assassinarem Marielle desencadeou os próximos passos da investigação. A pressão para que o nome do mandante fosse revelado surtiu efeito e a Polícia Federal indicou o ex-deputado estadual Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, como principal suspeito de ordenar o crime político. 

Brasil de Fato revelou que a família de Brazão recebeu passaportes diplomáticos do Itamaraty, órgão subordinado ao Ministério das Relações Exteriores, já no governo de Jair Bolsonaro. 

Meses depois, em novembro, o depoimento do porteiro do condomínio de Ronnie Lessa, onde também vive Jair Bolsonaro, dominou a mídia brasileira e internacional ao associar o nome do presidente ao assassinato da ex-vereadora. 

De acordo com o porteiro, Élcio Vieira de Queiroz, acusado de dirigir o carro que perseguiu e encurralou as vítimas, foi autorizado a entrar no condomínio na tarde do assassinato depois de dizer ao porteiro que iria visitar a casa de Bolsonaro, no número 58.

Massacre de Suzano

O município de Suzano, na região metropolitana de São Paulo, acordou no dia 13 de março surpreendido pela notícia de tiros disparados no interior da Escola Estadual Raul Brasil. Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25, entraram atirando nas salas de aula e corredores da unidade. 

Os dois ex-alunos do colégio assassinaram sete pessoas, dois estudantes e duas funcionárias da escola. Minutos antes de invadirem o colégio, já haviam assassinado o proprietário de uma loja de carros na região. Após o massacre, Taucci matou Castro e se suicidou. 

Tiros contra músico negro

O músico Evaldo dos Santos Rosa morreu após militares dispararem mais de 80 vezes contra o seu carro, em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro, no dia 7 de abril. O catador Luciano Macedo, que passava pelo local, também foi atingido e faleceu. 

Os agentes do Exército afirmaram que Macedo portava uma arma e assaltava um carro na região. Para o Ministério Público, a versão dos oficiais é “fantasiosa”. Nenhuma arma foi apreendida na operação. 

Chacinas em presídios 

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no Amazonas, foi palco da primeira grande chacina do ano nos presídios brasileiros. Ao todo, 55 presos morreram na unidade, que é privatizada. A disputa entre membros da mesma facção pelo controle do grupo culminou nas execuções. 

Em julho, no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, 57 presos morreram no confronto entre duas facções pelo controle da unidade. Do total, 16 homens foram decapitados. O massacre é o maior ocorrido em um mesmo presídio desde o episódio do Carandiru, quando 111 pessoas morreram. 

Posse de arma

Promessa de campanha de Jair Bolsonaro, o decreto que amplia a posse e porte de arma foi barrado pelo Senado em 19 de junho deste ano, por meio de um projeto legislativo.

Com o placar de 47 votos a 28, os senadores impuseram uma dura derrota ao governo, ao não permitir que diversas categorias, como jornalistas, caminhoneiros, advogados, entre outros, pudessem carregar armamento letal. O texto seguiu para a Câmara, onde é objeto de negociações entre governo e oposição e deve ser votado em 2020. 

Criminalização da pobreza

Acusados de extorsão e formação de grupo para prática criminosa, quatro integrantes de movimentos de moradia de São Paulo, foram presos no dia 29 de junho. Sidney Ferreira da Silva, Edinalva Silva Ferreira, Angélica dos Santos Lima e Jacine Ferreira da Silva, conhecida como Preta Ferreira. A prisão de Preta motivou uma campanha por sua liberdade que ganhou as redes sociais e as ruas. 

Preta Ferreira e Sidney Ferreira da Silva passaram 109 dias presos e foram soltos em 10 de outubro. “Eu estou livre, sou inocente. Deus é justo. Agora, vamos trabalhar para provar minha inocência e as dos demais.”

 



Ágatha Vitória Sales Félix, de oito anos foi baleada por um tiro de fuzil, no Complexo Alemão 

Ágatha

O caso mais emblemático da política de segurança pública adotada pelo governador Wilson Witzel (PSC) é o assassinato da menina Agatha Vitória Sales Félix, de oito anos. 

A criança foi baleada pelas costas, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, quando estava dentro de uma Kombi que fazia o transporte de moradores da comunidade. O caso ganhou grande repercussão nacional. 

Caso Ricoy

Um jovem negro, desnudo, sendo chicoteado com fios elétricos por seguranças do Ricoy Supermercado é uma das cenas mais impressionantes de 2019. O caso foi revelado em setembro, mas não há, ainda, precisão sobre a data do episódio. A vítima era acusada de ter furtado uma embalagem de manteiga. 

Semanas depois, o Brasil de Fato revelou outro caso de tortura dentro de outra unidade do Ricoy Supermercado, também na zona sul de São Paulo. Dessa vez, seguranças do comércio torturam psicologicamente uma criança e repetem as sessões de chicotamento de outro homem. 

No dia 12 de dezembro, o juiz Carlos Alberto Côrrea de Almeida Oliveira, da 25ª Vara Criminal de São Paulo, inocentou os seguranças do crime de tortura e condenou os réus por lesão corporal. 

::Ricoy, Extra e Habib’s: A violência da segurança privada no Brasil::

 



Protesto em frente ao supermercado Ricoy, em setembro (Foto: Igor Carvalho)

Caso Lucas

Quinze dias separaram o desaparecimento de Lucas Eduardo Martins dos Santos, de 14 anos, em Santo André, na região do ABC Paulista, da confirmação de sua morte. 

No dia 13 de novembro, ele saiu para comprar refrigerante em uma quitanda próxima de sua casa e teria sido abordado, de acordo com testemunhas, por policiais militares do 41º Batalhão da Polícia Militar.

Um exame de DNA, cujo resultado foi revelado no dia 28 de novembro, confirmou que um corpo encontrado em um lago do Parque do Pedroso, também no município paulista, era o de Lucas. Dois PMs foram afastados da corporação, suspeitos de atuarem no assassinato do adolescente. 

Paraisópolis

No dia 1 de dezembro, uma tragédia. Após ação policial, nove adolescentes e jovens, que se apinhavam pelas ruas de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, durante o Baile da DZ7, morreram após uma operação da PM.

Policiais utilizaram bombas de gás lacrimogêneo e agrediram os frequentadores da festa de funk. O laudo pericial indicou morte por “asfixia mecânica”. Assim, os agentes devem ser indiciados por crime culposo, quando não há intenção de matar. 

Pacote "anticrime"

No dia 4 de dezembro, o governo conseguiu aprovar, finalmente, o pacote "anticrime" apresentado ao Congresso Nacional por Sergio Moro, ministro da Justiça ainda no começo do ano, em 4 de fevereiro. 

Apesar da aprovação, o texto final significa uma derrota parcial para o Palácio do Planalto. Pontos considerados cardeais para o ex-juiz, como o excludente de ilicitude e a prisão em segunda instância, foram excluídos do pacote aprovado. 

Edição: Rodrigo Chagas

22
Nov19

Jurista critica investida de Moro, chefe da Polícia Federal, para pressionar porteiro de Bolsonaro no caso Marielle

Talis Andrade

Para Irapuã Santana, professor de direito processual, investigar fala em que porteiro cita o presidente não cabe ao ministro da Justiça e Segurança Pública, chefe da Polícia Federal, mas ao STF ou à PGR

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Não cabe ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, interferir nas investigações sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, após um porteiro citar o nome do presidente Jair Bolsonaro como ligado a um dos suspeitos de terem cometido o crime. É como avalia o advogado Irapuã Santana, doutorando em Direito Processual na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e membro da Educafro. Santana já atuou como assessor do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux.

Depois de 595 dias, as investigações dos assassinatos, na noite de 14 de março de 2018, estão avançando. Na noite desta terça-feira (29/10), o Jornal Nacional, da Rede Globo, ligou o nome do presidente da república com uma suposta visita do ex-PM Élcio Queiroz ao condomínio onde Bolsonaro tem uma casa na zona oeste do Rio de Janeiro. No mesmo conjunto vive Ronnie Lessa, preso junto de Queiroz no dia 12 de março de 2019, suspeitos de terem cometido o crime. O ex-PM teria recebido aval da casa de Bolsonaro para entrar no condomínio e, depois, foi à casa de Lessa.

A denúncia gerou reação do presidente, atacando o jornalismo feito pela emissora em vídeo no Facebook (veja abaixo) diretamente da Arábia Saudita, onde faz visita diplomática ao príncipe saudita Mohammed bin Salman, acusado de mandar matar um jornalista. Além de criticar a Globo, Bolsonaro afirmou que o depoimento foi “ordem e determinação” do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), disse que a voz não era sua e ordenou que o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, interviesse. Por sua vez, Moro citou um “possível equívoco” na investigação da morte de Marielle e solicitou que a Procuradoria Geral da República, comandada por Augusto Aras, crie um inquérito para investigar o depoimento do porteiro do condomínio.

Para Irapuã Santana, não é Moro quem deve intervir na investigação, mas o STF (Supremo Tribunal Federal) ou a PGR (Procuradoria Geral da República). “No caso do [Sergio] Moro, temos a questão de que ele é o chefe da Polícia da Federal, que poderia alterar os pontos para puxar a atribuição do presidente. Não seria a justiça federal em primeira instância a verificar essa questão. Só a PGR junto ao Supremo para investigar alguma coisa”, explica.

 

Paloma Vasconcelos entrevista Irapuã Santana

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Ponte – Com o presidente na mesma semana atacando partidos políticos e o STF, e vendo seu nome envolvido numa investigação de homicídio, já se pode falar em impeachment? Em tese, haveria base jurídica para isso?
Irapuã Santana – Eu acredito que ainda não, porque não tivemos ainda um crime de responsabilidade dentro das partes da Constituição Federal. Mas é bom ficar realmente de olho com quebra de decoro, algo nesse sentido. O presidente chegou a apagar as postagens e isso é complicado. Mas por enquanto, particularmente, eu não consigo vislumbrar.

 

Ponte – E o que representa o nome do presidente aparecer nessa investigação sobre o assassinato de Marielle e Anderson?
Irapuã – Por enquanto ele foi mencionado e, agora, vai para o STF [Supremo Tribunal Federal] analisar se isso atrai a competência dele. Somente o Supremo para observar mesmo se isso gera alguma investigação ou não. Eles precisam checar o áudio do interfone e verificar se há o envolvimento direto do presidente.

 

Ponte – Segundo declarou, Bolsonaro foi avisado sobre a citação pelo governador do RJ, Witzel. O presidente acionou Moro para ouvir o porteiro e o ministro repassou o pedido de investigação sobre o depoimento à Procuradoria Geral da República. O que representa essas interferências? Isso é normal? 
Irapuã – Realmente as interferências institucionais são complicadas. Até por que é necessário termos uma independência ali da polícia e do Ministério Público para que eles possam promover as investigações de maneira que a Constituição estabelece. No caso do [Sérgio] Moro, ainda temos a questão de que ele é o chefe da Polícia da Federal, que poderia alterar os pontos para puxar a atribuição do presidente. A questão é que, como se colocou a questão do presidente, isso fica entre a PGR [Procuradoria Geral da República] e o Supremo. Não seria a justiça federal em primeira instância a verificar essa questão. Só a PGR junto ao Supremo para investigar alguma coisa. 

 

Ponte – O Psol, partido de Marielle, se posicionou contra a federalização do crime por temerem que a Polícia Federal interfira nas investigações de uma forma que alivie as denúncias sobre Bolsonaro. Qual o devido caminho para as investigações?
Irapuã – Nós ficamos entre a cruz e a espada. Querendo ou não, a Polícia Federal tem uma independência maior que a polícia e o Ministério Público do Rio de Janeiro. Temos um problema das milícias do RJ, em que deputados estaduais, governantes e autoridades estão envolvidas. Isso acaba trazendo um problema em relação às investigações. Federalizando o caso fica mais fácil de sair desses buracos que tem aparecido nas investigações e conseguimos enxergar o que tem acontecido de fato.

 

Ponte – Falando no estado brasileiro, você protocolou no início de outubro uma medida cautelar na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e uma petição na ONU (Organização das Nações Unidas), em nome da Educafro, denunciando o Brasil pela violência contra a população negra. Qual objetivo com essas ações?
Irapuã – Essa medida começou a ser elaborada quando a menina Ágatha foi morta, pois se verificou que a segurança pública dos estados tem sido desastrosas e vem vitimando várias pessoas inocentes. Com relação a isso, ficou a nossa indignação na Educafro e começamos a nos articular para promover e fazer um pedido de ajuda de maneira internacional. Verificamos que são questões relativas especificamente ao próprio estado brasileiro e que não temos a possibilidade de fazer uma queixa-crime. Por isso fomos atrás diretamente dessa medida cautelar visando uma manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da ONU tendo em vista que o caso é urgente.

 

Ponte – Quais informações baseiam a denúncia?
Irapuã – 
Todos os dias estão morrendo um monte de gente, especificamente com esse recorte racial. Mais de 75% dos mortos são negros. Tudo isso dentro de uma instituição de pessoas que não tem nada a ver com a questão, que não estão em confrontos, que não são bandidos nem policiais. Isso tem a ver com a política pública de combate às drogas que está defasada. Por isso fizemos esse estudo mostrando que, mesmo que aumente a taxa de letalidade da polícia, isso não tem uma relação direta com a diminuição do número de crimes. Temos tentando demonstrar isso para criar uma política pública mais eficaz, mostrando que é possível sim combater o crime sem que haja danos colaterais tão expressivos como vem tendo.

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10
Nov19

Especialistas discutem se superlotação carcerária é "intencional ou estrutural"

Talis Andrade

prisao6.jpgSistema prisional brasileiro é marcado histórico de barbárie e pela superlotação

 

Por Fernanda Valente e Rafa Santos 

ConJur

 

A cena de presos jogando futebol com a cabeça de outro detento na Casa de Privação Provisória de Itatinga (CE), em 2016, é um resumo do grau de barbárie em boa parte dos presídios brasileiros.

Não por acaso, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, sempre que questionado, compara a situação no cárcere com uma masmorra medieval.

O sistema carcerário foi reconhecido pelo STF como “estado de coisas inconstitucional”, no julgamento da ADPF 347, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

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Apesar de incorporada ao tecido social, a barbárie vivenciada nos presídios não deixa de causar espanto e respingar na sociedade. Um exemplo disso foi a morte da menina Ágatha Felix, de 8 anos, em uma operação policial em 20/9 no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

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A situação reacendeu o debate sobre a política de segurança pública adotada no país.

De acordo com a advogada Dina Alves, mestre em Ciências Sociais na área de antropologia pela PUC-SP, embora o Estado brasileiro sempre tenha produzido condições desfavoráveis ao desenvolvimento social de grupos historicamente discriminados, é na administração do sistema prisional que essa política se manifesta de forma mais explícita.

Para a especialista, a política defendida pelo governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), por exemplo, é uma forma de necropolítica.

O termo, cunhado pelo filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe, trata da capacidade do Estado de definir quem vive e quem morre por meio de suas políticas públicas.

“Podemos dizer que a distribuição desigual e intencional das mortes e das punições na gestão do sistema prisional é uma necropolítica exacerbada nos governos atuais”, afirma a advogada, que integra um grupo de estudos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) sobre necropolítica. 

Ela cita os autos de resistência, confrontos, política de drogas com viés racial, as torturas em prisões como “formas contemporâneas de subjugar a vida ao poder da morte, reconfiguradas a partir da política do terror estatal”.

Para a especialista, a taxa de assassinato da população negra é um importante diagnóstico para demonstrar como a gestão das unidades prisionais é baseada na gestão da morte: “uma necrogestão”. 

“O aprisionamento caminha lado a lado com os discursos sobre 'eficientismo' penal, ancorados numa concepção 'racializada' da lei e da ordem para justificar ações recrudescedoras, a ampliação do estado penal e consequentemente a indústria lucrativa prisional”, diz a advogada.

 

Presunção de inocência

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A situação dos detentos no sistema prisional foi um dos principais temas das sustentações orais no julgamento do Supremo Tribunal Federal das ADCs 4344 e 54, que questionavam o entendimento da Corte sobre execução antecipada da pena após condenação em segunda instância. A decisão de 2016 não era bem recebida por advogados e juristas, que veem inconstitucionalidade na execução antecipada.

A advogada Sílvia Souza resumiu a situação na tribuna: “um debate tão sério tem sido pautado como se afetasse apenas os crimes de colarinho branco, quando na verdade sabemos a quem se endereça”.

Dina Alves acredita que o problema ultrapassa as fronteiras do entendimento firmado pelo Supremo, já que o Brasil tem quase metade da população carcerária presa provisoriamente. “Ou seja, tecnicamente, são presos inocentes. Este é um exemplo da flagrante violação do princípio da presunção de inocência que o Brasil é signatário em diversos tratados internacionais e convenções”, considera.

Segundo a advogada, o pêndulo da administração da justiça está do lado mais punitivista para uma série de problemas sociais que o Estado é incapaz de oferecer respostas. “A farra do aprisionamento captura sem-tetos, desempregados, ativistas pela educação, pelos direitos humanos, analfabetos, favelados, indígenas e cada vez mais mulheres negras”, diz.

Na opinião do professor de Direito Constitucional da Damásio Educacional Paulo Peixoto, o problema é estrutural. “O Estado tem responsabilidade de manter a integridade física e moral dos detentos, mas não dá para afirmar que o Estado busque a morte e destruição de indivíduos. Nesse ou em qualquer governo”, explica.

Para o constitucionalista, a audiência de custódia é uma das ferramentas que pode ajudar a diminuir o encarceramento. “Os números que apontam que poucas pessoas conseguem a liberdade nesse momento. Isso é uma questão que depende muito do caso concreto. É difícil generalizar. Mas, podemos imaginar por hipótese, que existe uma tendência em manter as prisões nessas audiências”, diz.

Pacote “anticrime”

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Principal bandeira do Ministério da Justiça encabeçada por Sergio Moro, as medidas batizadas de “pacote anticrime” visam endurecer ainda mais a política de segurança pública no país. Dina Alves critica que a iniciativa foi elaborado sem o devido debate público.

Já Paulo Peixoto diz que o punitivismo defendido por parte da sociedade e dos operadores de Direito não pode ser apontada pela crise humanitária nas prisões brasileiras.

“Em que pese que existam ideias mais punitivistas nos últimos tempos. não se deve deixar de lado as proteções constitucionais. Punitivismo ou garantismo são ideias. A sociedade pode até escolher se punitivista e prender mais. Só que, ao prender, o Estado tem uma série de obrigações com essas pessoas. E isso acaba esbarrando novamente no problema estrutural. Por isso, eu acredito que o problema é muito mais de gestão da política prisional e da segurança pública do que jurídico”, argumenta.

Dina, por sua vez, acredita que o sistema de Justiça tem papel fundamental nessa lógica de violência. “A administração da justiça é a principal produtora e reprodutora de violências. Atualmente vivemos o recrudescimento da barbárie capitaneado pelas políticas de segurança pública que tem como oxigênio dessa barbárie o pacote anticrime. Essa é uma demonstração por excelência da reatualização da necropolítica no Brasil”, pontua Dina Alves.

 

Barbárie além das grades

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A violência perpetrada por agentes públicos no Brasil está longe de ficar restrita aos presídios. Levantamento da ONG Rio de Paz, divulgado em setembro deste ano, aponta que 52% das crianças mortas por balas perdidas no Rio entre 2007 e 2019 foram vítimas de tiroteios entre policiais e bandidos.

Para Dina Alves, um dos motivos para o que chama de “desastre social e humanitário” é a guerra às drogas. A intensificação da repressão policial nas periferias contra pessoas consideradas “traficantes”, diz a advogada, “vitimiza criança como Ágatha ou Evandro que foi executado com mais de 80 tiros de fuzil, pelo Exército. Nos dois casos, a guerra às drogas foi a justificativa das execuções”.

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04
Out19

Já eram assassinos, agora são uma quadrilha covarde

Talis Andrade
 

Fernando Molica, na Veja, traz a bomba: policiais militares entraram no Hospital Getúlio Vargas, na Penha, para tentar “dar sumiço” na bala que havia sido retirada do corpo sem vida da menina Ágatha Félix, de oito anos, morta por um tiro de fuzil ao chegar em casa, com a mãe, na Fazendinha, no Complexo do Alemão.

Assassinos e, pior ainda, covardes que desejavam fazer desaparecer as provas da barbaridade que haviam feito.

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O tiro, sim, pode ter sido uma irresponsabilidade letal, de gente acostumada à ideia de que morte de gente pobre é “efeito colateral” de sua guerra suja.

Mas ir profanar o corpo de uma criança para ocultar sua bala assassina é coisa de verdadeiros canalhas, de uma quadrilha de canalhas que nem sequer têm culpa ou remorso do homicídio que cometeram.

Sim, quadrilha, por que se reuniram para perpetrar e cometer um crime abominável, sobre o qual nem se pode dizer que foi involuntário.

Não sei se os PMs estão sob prisão administrativa, mas deveriam estar, porque o ato foi cometido em serviço.

Nem venham com o papo repetitivo de que são maus policiais, que não honram as fardas.

Honram à honrada desonra que lhes é permitida e estimulada por governantes que os mandam atirar primeiro e ter certeza depois, o governador Wilson Witzel e o presidente Bolsonaro, que diz que 20 mortes nas costas de um policial são pouco, que deveriam ser 50.

Quantas delas, Jair, deveriam ser Ágathas?

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