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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Nov20

Bolsonaro comemora suspensão dos testes da vacina Coronavac: ‘ganhei’

Talis Andrade

 

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Marcelo Hailer /Revista Forum

O presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) voltou a politizar a questão em torno das vacinas de combate ao coronavírus e, ao compartilhar a notícia de suspensão dos testes da vacina Coronavac, afirmou ter ganhado mais uma do governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

O comentário foi uma resposta a um usuário que perguntou se o Brasil poderia produzir e comprar a vacina. Bolsonaro respondeu citando os possíveis efeitos adversos da Coronavac – embora a Anvisa não tenha detalhado quais são.

“Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, escreveu o presidente.

A vacina Coronavac é produzida a partir de uma parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan, que é ligado ao governo do Estado de São Paulo.

Desde o início da pandemia o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, tem travado brigas públicas sobre políticas em torno do combate ao coronavírus e da elaboração e compra de vacinas.

Suspensão de testes

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Cabe destacar que a suspensão de testes é uma prática comum quando ocorre algum tipo efeito adverso. Antes da Coronavac, a vacina elaborada pela Oxford e Astrozeneca também passam por um período de suspensão por motivo similar. Posteriormente, os testes foram retomados.

A Anvisa emitiu uma nota na noite de ontem (9) e relatou uma série de efeitos adversos que levam à interrupção dos testes, mas, não detalhou quais foram os efeitos da vacina em questão.

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, afirmou que se trata de um óbito sem relação com os testes da vacina.

O governo do estado de São Paulo emitiu uma nota onde afirma lamentar “ter sido informado pela imprensa e não diretamente pela Anvisa” sobre a suspensão dos testes da Coronavac. A nota do governo também ressalta que o “Butantan aguarda informações mais detalhadas do corpo clínico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária sobre os reais motivos que determinaram a paralisação”.

O líder da Minoria da Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT/CE), protocolou, na manhã desta terça-feira (10), Requerimento de Informações em que solicita uma justificativa para a interrupção de testes da Coronavac.

Guimarães questiona, entre outros pontos, por que a paralisação foi solicitada pela Anvisa, uma vez que o próprio diretor geral do Instituto Butantan, Dimas Covas, declarou a ausência de relação entre o óbito do voluntário e a vacina.

“Há uma clara politização em jogo. Enquanto Bolsonaro se esforça para comprovar sua tese frustrada de ineficácia da Coronavac, o povo continua se contaminando e morrendo. O governo brasileiro age como se a vida das pessoas fosse objeto de disputa eleitoral. Irresponsabilidade! Absurdo!”, afirma Guimarães.

 

 

05
Set20

Processo administrativo disciplinar contra Dallagnol no CNMP deve ser retomado

Talis Andrade

Image

O não julgamento de um réu eventualmente culpado configura situação mais grave do que o julgamento e a absolvição de um réu eventualmente inocente. Com esse entendimento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, deferiu pedido do advogado-Geral da União, Augusto Aras, para sustar todos os efeitos da decisão liminar que havia suspendido um processo administrativo disciplinar (PAD) contra o procurador Deltan Martinazzo Dallagnol, em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A decisão é desta sexta-feira (4/9). Acrescenta o Consultor Jurídico:

O PAD foi instaurado pelo CNMP após representação do senador Renan Calheiros (MDB-AL), para quem Dallagnol, por meio de postagens em redes sociais, tentou influenciar as eleições para a presidência do Senado, em 2019. Na ocasião, o procurador apontou que, caso o emedebista fosse eleito, dificilmente uma reforma contra a corrupção seria aprovada.

Dallagnol recorreu ao STF pleiteando liminarmente a suspensão do processo, o que foi deferido pelo relator do caso, ministro Celso de Mello. O AGU, então, interpôs agravo regimental, alegando existência de perigo de demora inverso, pois a pretensão punitiva pode prescrever na próxima quinta-feira (10/9).

Assim, em razão da licença médica de Celso de Mello, Gilmar Mendes valeu-se de dispositivo do Regimento Interno da Corte que autoriza a substituição do relator, pois a licença médica encerra-se, a princípio, em 11/9, após o prazo prescricional.

Ironia
Gilmar Mendes abre sua decisão citando excerto de Rui Barbosa sobre "alucinações coletivas": a irritação pública deixa de enxergar a verdade com lucidez, fazendo que todas as alegações contra o acusado ecoem apenas aplausos. A esse excerto, o ministro coteja outro, da lavra do próprio Dallagnol: "Nosso sistema prescricional, aliado ao congestionamento dos tribunais, é uma máquina de impunidade". Máquina essa que estaria à beira de o deixar impune. Mais uma vez: em outro caso, o CNMP deixou de abrir um PAD contra Dallagnol, pois a pena já estava prescrita. O julgamento do caso foi adiado 42 vezes, e visava também os procuradores Julio Carlos Motta Noronha e Roberson Pozzobon. Eles participaram do chamado episódio do "PowerPoint" — em setembro de 2016.

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Dallagnol, em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo, disse que errou ao criar uma fundação secreta com 2,5 bilhões desviados da Petrobras, e depositados em uma conta gráfica no dia 30 de janeiro de 2019.

fundação lava jato.png

 

O procurador também confessou que "faria diferente" o power-point usado para queimar a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e que foi uma peça utilizada na campanha midiática para permitir o golpe de estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff, a prisão política de Lula, a destruição das empresas brasileiras de engenharia, a queda sem precedentes do PIB, a perda da soberania nacional e a ascensão da extrema-direita no País.

"Hoje faria diferente. Agora, é importante dizer que o que se disse naquela entrevista coletiva, com um esforço para ser acessível e didático para leigos, constava, de modo mais técnico, na denúncia apresentada, que embasou a condenação do ex-presidente pelo Judiciário", afirma Deltan. Hoje, já é praticamente consenso entre os maiores juristas do Brasil e do mundo que Lula foi um preso político num processo de lawfare coordenado pelos Estados Unidos para que o Brasil se tornasse um país sem soberania e mais pobre.

Consta da decisão de Gilmar desta sexta-feira que, segundo o relator do PAD no CNMP, conselheiro Otavio Luiz Rodrigues Jr., a pena aplicável a Dallagnol é de censura, que prescreve em um ano. Portanto, de fato, em 10/9. Anteriormente, Dallagnol havia afirmado nos autos que a prescrição seria apenas em 10/9/2021, pois a pena seria de suspensão, que prescreve em dois anos. 

"Diante disso, entendo que as informações colidentes juntadas aos autos geram incerteza quanto ao prazo prescricional, situação que justifica o deferimento da medida de contracautela – o risco gerado pela insegurança quanto ao prazo prescricional encontra-se no âmbito de incidência da medida contracautelar pleiteada pela AGU, reafirmando a necessidade de sua concessão", afirmou Gilmar.

O ministro do STF também destacou a gravidade das imputações oferecidas contra Dallagnol. "Parece-me que a maior violação ao devido processo legal, no caso em apreço, seria justamente impedir o julgamento do agravado por seus pares, possibilitando-se dirimir, finalmente, com a devida verticalidade de cognição que o julgamento de mérito pressupõe, as questões que envolvem o caso", disse.

Lula entrevista

Em entrevista ao Fórum Onze e Meia desta sexta-feira (4), em edição especial do aniversário de 19 anos da Fórum, o ex-presidente Lula comentou a saída do procurador Deltan Dallagnol do cargo de coordenador da força-tarefa da Lava Jato, em meio a denuncias de irregularidades que ele teria cometido durante a operação em tramitação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

“Me perdoe, mas eu acho que o Dallagnol, se esconder atrás de uma doença, da filha dele, para poder justificar a saída”, criticou Lula. “Se ela estiver doente, que deus ajude porque eu tenho pela filha dele o respeito que ele não teve pelo meu neto, quando morreu com seis anos de idade, quero que ele saiba disso. Mas ele não merece respeito da minha parte. Não tem dignidade, não tem caráter. É fujão”, completou o ex-presidente.

Dallagnol anunciou sua saída do cargo na última terça-feira, pouco depois de ter as ações contra ele arquivadas no CNMP, que agora são alvo de recurso. Em vídeo nas redes sociais, o procurador alegou que precisava de mais tempo com a família devido a uma doença da filha.

A contracautela deferida por Gilmar Mendes vale até que seja julgado o mérito do agravo do AGU.

PET 9.068
Clique aqui para ler a decisão

26
Jul20

Bolsonaro pertence a uma escola: a da ditadura

Talis Andrade

BOLSONARO-CENTRO-ESPIRITA- desaparecidos ditadura.

 

 

por Marcia Tiburi / Carta Capital

Em 17 de abril de 2016, na votação do farsesco impeachment contra Dilma Rousseff, Bolsonaro se tornou o Ubu rei nacional. Ubu Rei é o personagem de uma peça homônima de Alfred Jarry que data do final do século 19. Nela, o personagem principal é um sujeito que quer ser rei para comer muito, matar, enriquecer ilicitamente e fazer todo tipo de maldade e grosseria que estiver ao seu alcance.

O Ubu Rei é um personagem fundamental que nos ajuda a perceber como e por que as figuras mais grotescas fazem muito sucesso na política. Quando a política não se realiza como tragédia, ela se realiza como farsa e a farsa, no sentido do teatro do grotesco que produz efeitos de poder justamente por ser desqualificado e violento, é o que vivemos há um bom tempo no Brasil. Pelo menos desde o golpe de 2016.

Nero e Hitler, Trump e Erdogan fazem parte da estirpe do Ubu. Bolsonaro consegue ser mais surpreendente do que todos eles. De mentalmente inimputável a presidente da República, Bolsonaro deu um salto que faz lembrar as pulgas que, não tendo tamanho para ir tão longe, vão mesmo assim. Como ele conseguiu tal façanha? Sendo empurrado por muitos, pelos poderes coniventes que saqueiam o Brasil, mas não só. Todos reconhecem que ele tem brilho próprio. Bolsonaro conseguiu transformar as dezenas de deputados grotescos em cena na votação de 17 de abril de 2016 em figuras coadjuvantes diante da sua verve. Em 2018, muitos se elegeram com o mesmo método no teatro atual da política, mas nenhum se compara a ele. De Janaina Paschoal a Kim Kataguiri, de João Doria a Wilson Witzel, todos se garantiram na eleição e provaram que não basta fazer uso da tecnologia política do ridículo, é preciso arrasar no papelão. A infâmia só é capital quando consegue produzir efeitos de poder sobre as massas: um efeito estupefaciente, de droga pesada, de hipnose.

Bolsonaro é imbatível na produção desses efeitos, seja com suas frases, seja com suas cenas. Mostrando o Golden Shower, debochando dos coveiros e dos mortos por COVID, se lambuzando com um cachorro-quente ou fazendo propaganda de cloroquina, o que Bolsonaro faz é causar efeitos pelo choque. Em intensidades diversas, essa é a técnica que ele domina. Seja ameaçando de morte, seja sendo cínico, ele é único no seu papel. E ao que ele deve tamanha habilidade? Ora, ele teve escola e isso é sempre o que mais importa.

Foi em nome de uma escola que Bolsonaro criou sua fama tendo sido em 17 de abril de 2016 o grande orador da turma. Melhor aluno da escola, ele recebeu a faixa presidencial do Ubu rei anterior, na verdade um Ubu meio esmaecido, mas igualmente funesto que era Michel Temer. Mas o sucesso pertence a Bolsonaro, que não perdeu de vista o “dia de glória” e, no contexto de uma violência simbólica espetacular, fez o elogio de ninguém menos que “Carlos Alberto Brilhante Ustra”, o famoso torturador da ditadura militar que ele tinha como mestre. Mas ele precisava se superar no parque temático do Congresso Nacional. Não bastava a coleção de asneiras, nem apenas o elogio ao torturador, era preciso adicionar um aspecto ao discurso que faria toda a diferença no inconsciente político do povo. E, para isso, ele foi ao ponto ao falar do “terror de Dilma Rouseff” trazendo de volta das catacumbas apodrecidas da história a pedagogia que durante anos tocou o terror no Brasil: a tortura.

Podemos dizer que, nesse dia, Bolsonaro colocou grande parte da nação em uma imensa síndrome de Estocolmo. Se de um lado, ele escandalizou a muitos que não acreditaram que ele poderia avançar, de outro lado, em sua catarse demoníaca, ele seduziu uma imensa parte da população para o seu lado. Em sua atitude, as bases da psicopedagogia da tortura. Costumamos associar um torturador a um psicopata, a um sádico, o que ele não deixa de ser, mas ela é, antes de mais nada, uma técnica organizada pelos Estados e Igrejas, da Europa aos Estados Unidos, e aplicada em todo mundo há séculos por tais instituições do poder. Ora, uma dimensão, talvez a mais fundamental da tortura, é justamente o seu caráter psicológico. Daí que se possa falar de psicopedagogia da tortura como uma técnica de psicopoder. A tortura sempre mexe com o medo das pessoas. E, mais além, com o pavor e angústia políticas que precisam ser elaboradas e que, no Brasil, jamais foram.

Quem ouviu Bolsonaro naquele dia 17 de abril ficou estupefato. Grande parte da população se deixou tocar pelo “pavor” do qual Dilma Rousseff estava sendo cobaia mais uma vez. Aí é que surgiu o que define a “síndrome de Estocolmo”, o estado psicológico que envolve algozes e vítimas por um elo complexo no qual a vítima se identifica com o agressor. Porém, ela não se identifica por empatia, mas muito mais por medo. Colocando-se ao lado do agressor, defendendo-o, o sujeito exorciza o medo de ser maltratado por ele. O operador da síndrome é o medo que, manipulado, faz o indivíduo ceder. Por isso, podemos dizer que Bolsonaro naquele dia 17 de abril, num gesto de perversão radical, colocou o Brasil no pau-de-arara, na cadeira do dragão, sob choque elétrico, em estado de pavor e, no dever de confessar alguma coisa, mesmo que ela não fosse verdade. A confissão chegou nas urnas dois anos depois como um diploma, prova de que a pedagogia deu certo.

Bolsonaro pertence a uma escola, a escola da ditadura, sobre a qual ficamos sabendo nos depoimentos de torturadores e torturados. Quem consegue esquecer dos depoimentos de pessoas contando sobre choques elétricos e toda sorte de horrores vividos em seus corpos durante as sessões de tortura? Quem conseguirá esquecer de Lúcia Murat contando sobre a função de baratas amarradas em barbantes passeando sobre seu corpo? E quem conseguirá esquecer dos jacarés que foram usados contra Dulce Pandolfi servindo de exemplo em uma aula de tortura?

A tortura foi um método de produção de confissão, mas antes de mais nada foi um método para imprimir pavor. Os militares brasileiros eram imediatistas, não estavam interessados em fazer pesquisas como os americanos fizeram com técnicas de tortura com o objetivo da lavagem cerebral. Os americanos sempre exportaram conhecimento para o Brasil, podemos dizer ironicamente. Os militares brasileiros nunca tiveram tanta paciência para a pesquisa, sempre puderam contar com a televisão e sua programação torturante (sou da época em que se dizia com desgosto “não tem nada na televisão no domingo” e, mesmo assim, as pessoas continuavam assistindo como se estivessem treinando para o desprazer, como se tivessem se tornado capazes de suportar qualquer sofrimento).

O Brasil caiu nas mãos do seu torturador e segue sendo torturado por ele. Todo o deboche, toda a maldade, todo o descaso e, agora, o COVID19 fazem parte das técnicas de tortura em escala nacional. Quem precisa buscar jacarés, ratos ou cobras quando se dispõe do coronavírus que não dá muito trabalho e elimina uma parcela gigante da população odiada pelo fascismo nacional?

Muita gente morreu na ditadura sob a ordem de torturadores como Ustra, o herói de Bolsonaro. Muita gente segue morrendo sob a nova tortura elevada a forma de governo.

Bolsonaro é o resultado de uma parte muito séria da história do Brasil que não foi resolvida até agora. Assim como a escravização, a ditadura militar pesa na vida brasileira e muitos se esforçam para não tocar nesse assunto porque ela faz voltar do passado horrores insuportáveis e responsabilidades que uma nação de oligarquias e poderes coniventes não quer assumir.

Essas oligarquias seguem, junto com Bolsonaro, torturando e matando o povo brasileiro.

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11
Jun20

PODERES IMPUROS

Talis Andrade

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Colaboração transnacional mostra lobby e estratégias de grupos religiosos e ultraconservadores durante a pandemia de coronavírus na América Latina


por Nelly Luna Amancio, Kennia Velázquez, Gloria Ziegler, Andrea DiP, Mariama Correia

_ _ _ 

“É muito provável que, com essa vacina [que está sendo desenvolvida contra a Covid-19], queiram colocar dentro do nosso corpo um nanochip com geolocalização”, disse há algumas semanas o pastor argentino Alberto Savazzini, aspirante à presidência do Peru, admirador de Jair Bolsonaro e líder da organização Deus é Amor (I.D.E.A, da sigla em espanhol), uma pequena igreja evangélica localizada na cidade de Buenos Aires. A declaração de Savazzini expõe um dos pontos que os grupos religiosos mais fundamentalistas da América Latina têm reforçado durante a pandemia, apelando para o medo e para a culpa: o coronavírus foi inventado em laboratório, a vacina que está em desenvolvimento será um instrumento de controle da humanidade e essa crise é o resultado de uma série de pecados.

Um dos principais traços desta crise sanitária é a incerteza. Sem cura específica, com tratamentos clínicos experimentais, conhecimento progressivo sobre o vírus e com unidades de tratamento intensivo em colapso, milhares de mortos e uma crescente crise econômica para os tantos que ficaram sem emprego por conta das medidas de isolamento, organizações fundamentalistas religiosas têm se utilizado do contexto para difundir medidas e ações que colocam, inclusive, a saúde das pessoas em risco. Seus líderes têm questionado as medidas sanitárias e chamado de pecados direitos adquiridos como o aborto legal, o casamento igualitário e a educação com foco em questões de gênero. E neste momento esses grupos têm encontrado ainda aliados perigosos: os movimentos antivacina.

A reportagem registrou ações no Peru, Argentina, Brasil e México que vão desde recomendações antissanitárias, discursos contra direitos adquiridos, falsos remédios e argumentos sem evidência científica que colocam os seguidores em risco, até iniciativas legais para impedir o acesso ao aborto em países onde este é legal. Esta série de reportagens mostra também que as medidas de isolamento não interromperam o pagamento de dízimos. Em todos os países, há uma forte campanha para que os fiéis continuem contribuindo financeiramente, mesmo que tenham sido afetados pela quarentena ou perdido o emprego devido às medidas restritivas.

Além da agenda política, duas ações promovidas por algumas dessas organizações colocaram em risco a saúde dos fiéis. No Brasil e no Peru, quando os casos de Covid-19 ainda não haviam chegado aos dolorosos números atuais – mais de 30 mil e 4 mil mortos, respectivamente –, um grupo de igrejas evangélicas continuou realizando cultos massivos e recomendando aos fiéis a fé como a única cura. “Não se preocupem com o coronavírus, porque essa é a tática de Satanás”, chegou a dizer o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, organização investigada por lavagem de dinheiro e fraude de mais de US$ 765 milhões arrecadados de dízimos de seus fiéis.

exorcismo religião dizimo pastor .jpg

 

Não só estimularam a aglomeração massiva de pessoas como também divulgaram falsos remédios nas semanas seguintes. “Vou te ungir com álcool em gel, com nardo puro, e você estará pronto para vencer o coronavírus”, disse Héctor Aníbal Giménez, fundador da igreja Cumbre Mundial de los Milagros e um dos pastores evangélicos mais conhecidos da Argentina. No México, o deputado do estado de Sonora pelo Partido de Encuentro Social, organização política de centro-direita fundada pelo ex-pastor evangélico Hugo Eric Flores Cervantes, chegou a dizer que a Covid-19 “não é tão grave como dizem” e “que pode ser curada tomando chá de canela de manhã, ao meio-dia e à noite”. (Transcrevi trechos. Leia mais)

 

 

18
Mar20

Estado mínimo: cobertor mais curto para coronavírus

As autoridades agora terão que fazer a chamada “escolha de Sofia” diante do crescimento da procura

Talis Andrade

saúde thiago.jpg

 

 

por Marcelo Auler

 

Em condições normais de pressão e temperatura, a crise provocada pelo coronavirus provoca dificuldades em qualquer sistema de saúde pública. No Brasil tais dificuldades tendem a aumentar, apesar de termos o Sistema Unificado de Saúde – SUS, que em muito nos ajudará.

A política neoliberal do Estado Mínimo, adotada a partir de 2016 no governo de Michel Temer e que o desgoverno de Jair Bolsonaro continua abraçando, via o ministro da Economia Paulo Guedes, nos causará problemas bem maiores.

Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, na expectativa de atender às futuras vítimas do coronavírus, as autoridades da saúde programam suspender diversos atendimentos médicos essenciais – como hemodiálises e transplantes renais – que funcionam, de forma já precária, no Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), no Rio de Janeiro. Ou seja, com um cobertor curto, o estado corre o risco de, ao tentar salvar pacientes da pandemia, deixar ao desabrigo outros doentes crônicos.

É verdade que esta “escolha de Sofia” também ocorreu em outros países, como a China e a Itália. Vítimas mais idosas deixaram de ser atendidas, dando as vagas nos leitos de UTIs para os mais novos. Mas a situação brasileira agrava-se pelo descaso a que foi relegada a saúde pública nos últimos anos.

Bem próximo do Hospital Federal de Bonsucesso está, por exemplo, o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, na ilha do Fundão. Ele já vem sendo preparado para atender nessa crise de coronavírus. Muito embora ainda precise também de investimentos para ampliação do número de leitos. Não é o único caso na região de hospital com capacidade ociosa, por falta de investimentos.

Como bem lembrou Helena Chagas, em artigo nos sites Divergentes e Brasil 247 – Vírus rico e vírus pobre – nada será como antes – “Se há alguma coisa que o coronavírus parece estar ensinando ao mundo é que o Estado é mais necessário do que muita gente pensava”. Necessário e essencial, desde que funcione a contento. O que já não ocorre entre nós há algum tempo. Por isso, agora, na crise, o prejuízo tende a ser muito maior.

A situação dos hospitais federais do Rio, entre os quais o de Bonsucesso sempre teve posição de destaque, reflete a devastação clara que a política neoliberal provocou na saúde pública. Afinal, estes mesmos hospitais federais, até dezembro de 2017, davam cobertura a 70% da população da cidade do Rio de Janeiro, segundo consta de documento assinado por dez entidades sindicais de trabalhadores no sistema de saúde em geral.

paulo guedes rentista .jpg

 

Trata-se da mesma política que o ministro da Economia, Paulo Guedes, insiste em enfatizar ao, em pleno início de uma crise sem precedente, defender suas pretensas reformas para reduzir o tamanho do estado. O que soa basicamente até como uma espécie de chantagem.

De 2017 para cá, estes hospitais sofreram constantes perdas de profissionais provocadas pela corrida à aposentadoria. Consequência direta do anúncio de outra reforma neoliberal, a da Previdência. Tentada no governo de Michel Temer e executada em 2019, já sob a gestão de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, sem levar em conta os interesses dos trabalhadores.

Foram profissionais que saíram sem serem substituídos. Ainda de acordo com a cartilha neoliberal, em nome do corte de despesas do governo, a bandeira do estado mínimo prevaleceu. Deixaram de convocar os concursos necessários para o preenchimento das vagas abertas.

“O HFB e os demais hospitais da rede federal do Rio estão há anos judicializados devido à falta de recursos humanos suficiente sequer para o funcionamento normal”, lembra Carlos Vasconcellos, diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro.

O preenchimento de vagas em aberto vem sendo pleiteado inclusive por meio de Ações Civis Públicas. Foram iniciativas do Ministério Público Federal, no Rio. Visam o preenchimento dos cargos existentes apenas para o funcionamento normal do hospital, com seus atendimentos especializados. Não previam, como não poderia ser, a criação de outro serviço, como o que se impõe com a crise do coronavírus.

Mesmo com um quadro de pessoal incompleto na rede federal do Rio, no último dia 15, Marcelo Lambert, diretor de Programa do Ministério da Saúde, no Rio, anunciou o fechamento de um pavilhão inteiro do HFB, onde ocorrem atendimentos especializados importantes, para destiná-lo ao atendimento exclusivo de pacientes com coronavírus.

Neste Pavilhão, segundo descrição feita em ofício assinado pelo secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores no Combate às Endemias e Saúde Preventiva no Estado do Rio de Janeiro (SINTSAÚDE-RJ),  Sandro Alex de Oliveira Cezar (íntegra abaixo), funcionam serviços importantes que deixarão de ser prestado, tais como: Nefrologia Clínica; Transplante Renal; Hemodiálise; Diálises Peritoneal e Pediátrica; CTI; Cirurgia Vascular; Ortopedia; Clínica Médica; Pneumologia; Hematologia; Endocrinologia; Endoscopia Digestiva; Unidade Coronariana; Eletrocardiograma; Ecocardiograma adulto e pediátrico; Cirurgia Torácica; Cirurgia Cardíaca; Serviço de Cabeça e Pescoço; Urologia; Neurocirurgia; Otorrinolaringologia e Oftalmologia.

O ofício do SINTSAÚDE-RJ é dirigido à Procuradoria da República no Rio, pedindo providências para que não fechem “nenhuma unidade de saúde no Estado do Rio de Janeiro, em especial no caso do Hospital Federal de Bonsucesso”. Defende que “a União possa, de imediato e com a urgência que o tema requer, tomar providências para recompor a força de trabalho dos hospitais federais”. Também requer que se “possibilite a abertura de novos leitos e que, supletivamente, se for necessário lance mão de leitos da rede privada de saúde, nos exatos termos da portaria que regulamenta as ações de enfrentamento da Doença do COVID 19”.

Comunidades cobram

“Eles desmontam um hospital referência de atendimento no subúrbio e depois, onde ficam esses doentes de outras moléstias e traumas?”, questiona João Ricardo de Mattos Serafim, presidente da Associação de Moradores de Vigário Geral, comunidade onde residem cerca de 45 mil pessoas. Não é a única na região. Antes pelo contrário, são muitas comunidades no entorno do HFB.

Na Região há outros hospitais, mas eles também são vítimas do descaso com a saúde pública. O também tradicional Hospital Estadual Getúlio Vargas, no bairro da Penha, como lembra Serafim, hoje é “um hospital de funcionamento precário com número reduzido de atendimento e emergências, pois foi um que mais sofreu com os cortes de verbas e funcionários. É estadual e funciona com funcionários terceirizados que sofrem com atrasos de salários e falta de insumos para trabalharem”.

O presidente da Associação de Moradores lembra que um outro hospital federal, o Francisca Souza Telles, em Irajá, também atendia àquela região que é uma das áreas mais sobrecarregadas, pois abriga as rodovias mais movimentadas como as Linhas Vermelha e Amarela, a Avenida Brasil e a Rodovia Presidente Dutra. O hospital Francisca de Souza Telles, porém, mesmo com emergência, “funciona precariamente, com fechamento constante por superlotação. Por isso, o hospital de Bonsucesso ainda é o local confiável a nível de emergência e de outros procedimentos”, conclui Serafim.

O quadro de desleixo na saúde pública daquela região é consequência da política de Estado Mínimo. Estruturas bem montadas – ainda que antigas – estão sendo subaproveitadas ou quase estão desativadas por falta de pessoal. Na crise do coronavírus, isto sobressai, na medida em que faltarão leitos e profissionais de saúde para o crescimento da demanda, que já não é pequena por ali.

Como o cobertor é curto, as autoridades agora terão que fazer a chamada “escolha de Sofia” diante do crescimento da procura. Mas o problema seria minorado se criminosamente não tivessem deixado a situação chegar onde chegou. Com quadro de servidores incompleto, em nome da redução dos gastos públicos.

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