Relatos de mulheres presas pela ditadura militar atualizam resistência a autoritarismo no Brasil
Documentário “Torre das Donzelas” resgata histórias de presas políticas, companheiras de Dilma Rousseff em presídio de São Paulo, e inspira novas gerações a enfrentar onda de conservadorismo que acomete o país; filme estreou no circuito comercial nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro
por Maria Martha Bruno
O que era para ser memória se tornou resistência. O que parecia ter ficado no passado chegou ao presente. “Eu achei que ia contar uma história, mas estou vivendo essa história na pele. Eu fico arrepiada de falar. É muito assustador”, resume a cineasta Susanna Lira, em conversa com a Gênero e Número, antes de uma das exibições de seu novo filme, “Torre das Donzelas”, no Festival do Rio.
O documentário, que chegou à mostra de cinema da capital fluminense depois de passar por festivais em Brasília e São Paulo, resgata a história das mulheres detidas no conjunto de celas femininas do Presídio Tiradentes, em São Paulo, durante a ditadura militar (1964-1985). Uma semana após as eleições que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República, a sessão especial que contou com a presença de algumas das ex-presas políticas arrancou da plateia lágrimas e cinco minutos ininterruptos de aplausos. Elas ainda distribuíram ao público flores de papel brancas e roxas, adornadas com a palavra “resistência” em uma folha.
O trabalho, que começou a ser concebido em 2011 e estreou em circuito nacional no primeiro trimestre de 2019, teve um timing surpreendente. Naquele ano, Dilma Rousseff, uma das personagens do filme, havia tomado posse como primeira presidenta do Brasil. Em 2018, durante as primeiras exibições de “Torre das Donzelas” em salas brasileiras, o país escolhia Bolsonaro como sucessor eleito de Dilma. “Fico na dúvida se esse timing é bom ou ruim. Para quem assiste ao filme, é um alento para continuar acreditando que a democracia é o melhor sistema de governo. Ao mesmo tempo, as forças que vêm por aí são tão duras, que eu nem sei…”, suspira Lira. Ela lembra que, quando começou a realizar o filme, apologias à tortura e nostalgias do regime militar soavam como uma “barbaridade”.
Ao falar da forte relação estabelecida com as personagens do filme, a cineasta resgata as principais mensagens que elas – e sua obra – têm a transmitir. Lira lembra que, ao observar o fortalecimento do autoritarismo, ela chegou a se queixar com algumas das “donzelas”: “Elas me olhavam e diziam: ‘A gente lutou. Qual é o problema de você ter que lutar também?’ Elas reagem de maneira muito mais madura, firme e resistente”.
“Não manjo isso de sororidade”
Uma das ex-presas que ajudou a situar a diretora nos novos tempos confessa que não esperava se deparar com o atual cenário político. Mas, na iminência de se tornar avó pela segunda vez, a farmacêutica aposentada Ana Miranda se mantém otimista quanto ao futuro. “Imediatamente após o resultado das urnas eu fiquei muito abatida. Mas a gente precisa ter um certo controle sobre o medo, se não vira paranoia. Não podemos sofrer por antecipação”, afirma.
Fundadora do Coletivo Memória, Verdade e Justiça, Miranda também é muito próxima ao Levante Popular da Juventude. Presa um ano e meio na torre (foram quatro anos de detenção no total, se contados outros lugares por onde passou), ela revela que aquela foi “a melhor experiência de sua vida”. A declaração pode parecer surpreendente, mas é possível entendê-la vendo o filme. “Até nos momentos mais difíceis há pequenos espaços em que a gente pode se movimentar e viver. Foi uma experiência coletiva incrível. E olha que não manjo isso de sororidade”, diz ela, aos risos.
Elas me olhavam e diziam: ‘A gente lutou. Qual é o problema de você ter que lutar também?’ Elas reagem de maneira muito mais madura, firme e resistente
— Susanna Lira, diretora do documentário “Torre das Donzelas”
São várias as cenas que exemplificam as experiências memoráveis de Ana. Desde as aulas de idiomas ministradas por presas que sabiam francês ao desfile de vestidos caríssimos que elas insolitamente receberam de presente em uma mala. “Nós demos felicidade para nós mesmas na pior situação possível. Fugimos de uma visão penitente da cadeia”, diz Dilma Rousseff, em depoimento às câmeras. A diretora Susanna Lira lembra que em tempos de outros tipos de feminismo, “não havia competitividade entre elas em hipótese alguma. Elas ensinavam umas as outras, trocavam saberes para ficarem mais fortes juntas, e seguirem em frente”.
Lira conta que sua própria história foi um dos pontos de partida para o filme. Ela é filha de uma mulher que se envolveu por dois meses com um equatoriano de passagem pelo Brasil durante a ditadura. “Quando minha mãe disse que estava grávida, ele disse que era procurado pelo Dops [Departamento de Ordem Política e Social] e que não poderia de forma alguma me assumir. Eles decidiram fazer um aborto. Mas no meio do caminho, ela quebrou esse pacto”, relata a diretora. Até hoje ela não sabe o nome o pai, nem se ele está vivo ou morto, já que não deixou rastro depois que seu “aparelho” (esconderijo de militantes de esquerda na época) foi descoberto no Rio de Janeiro. Sua história será tema de seu próximo documentário, “Nada sobre meu pai”.
Aos filhos de agora e do futuro, Ana Miranda deixa uma mensagem melancólica sobre o passado recente e alentadora sobre o que virá: “A tristeza é que dificilmente as pessoas da minha geração verão de novo um ciclo virtuoso como a gente viveu, de uma semidemocracia em que havia espaço para mudanças sociais. Mas eu sou um pouco otimista. Acho que até meus netos crescerem ou quem sabe até meus filhos poderão viver em um mundo melhor. As sementes estão plantadas”.