Quem aponta “paralisia” na antipresidência de Bolsonaro está cego – ou se faz de cego – para a velocidade assombrosa da implantação do projeto autoritário
O “mártir” governa
Olavo de Carvalho, o guru do antipresidente Jair Bolsonaro, segue apostando na estratégia de falsificar a realidade para criar realidades. Desde que seu mais famoso olavete assumiu a presidência, o escritor tem tentado plantar a mentira de que Bolsonaro estaria sendo impedido de governar. São várias as afirmações neste sentido ao longo dos mais de 100 dias do Governo. Em vídeo divulgado no canal de Bolsonaro no YouTube, no final de semana, o guru repetiu mais uma vez seu repisado mantra: “Bolsonaro é um mártir”.
Com um canetaço, o Mártir decidiu deletar centenas de conselhos sociais com participação popular. Estes conselhos – formados por representantes da gestão e representantes da sociedade civil, gente com experiência nas respectivas áreas, entidades com atuação reconhecida – acompanhavam, debatiam e influenciavam as políticas públicas. São especialmente importantes em áreas invisibilizadas, como as relacionadas à população de rua, indígenas e LGBTI. Sem serem remunerados para isso, os conselheiros só recebiam transporte e diária. Eram a voz da sociedade no Governo. E a voz da sociedade foi silenciada. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
A reforma da Previdência é apresentada como a salvação do país. Tudo indica que o Armageddon pode ser antecipado caso a reforma não for aprovada. Mas quando é exigido que o Governo apresente os dados técnicos em que se baseou para construir a proposta levada ao legislativo, o Mártir, pelas mãos do Posto Ipiranga Paulo Guedes, decreta sigilo sobre o material até a aprovação. A lei altera a vida de todos os brasileiros, mas aos brasileiros é negado o direito de conhecer as informações que poderiam justificar a lei. São informações públicas, obtidas por funcionários públicos com dinheiro público, mas o Mártir determinou que nem os legisladores nem o povo podem vê-las. Aprova primeiro, prova depois. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.
O filho zerotrês, que também é deputado federal, não gosta apenas de ameaçar fechar o Supremo. Como diz o Mártir, pai orgulhoso de seus “garotos”, (embora sobre zeroum ande meio calado), ele também “gosta muito de viajar”. Por isso andou pela Itália e Hungria na semana passada. Contou numa rede social que aprendeu muito com o presidente de extrema direita Viktor Orbán, especialmente “no trato da imprensa sem o politicamente correto”. Orbán construiu uma imprensa formada majoritariamente por aliados, transformando grande parte da mídia independente em porta-voz do governo. Ou seja: a liberdade de imprensa na Hungria é uma ficção e o Governo autoritário tem controle sobre a divulgação das informações. Orbán também criou uma corte paralela, sob o controle do seu ministro da Justiça, que, vejam só que conveniente, lida com questões como eleições, corrupção e direito a manifestações. O Governo do Mártir tem dois chanceleres, um deles é zerotrês, sem oficialidade no cargo mas com muita efetividade na prática, um garoto que gosta muito de viajar para conhecer a democracia de países como a Hungria.
Porque o Brasil é uma democracia, os eleitores do Mártir têm toda a liberdade para afirmar que foram “enganados”, como muitos, cada vez mais, têm afirmado. Nesta semana mesmo, ouvi de um evangélico: “Ele mentiu! Ele enganou o pastor. Ninguém sabia que ele ia fazer isso”. E, quem tem apreço pelos fatos, precisa defender até mesmo o Mártir. Ele não mentiu. Bolsonaro não cometeu estelionato eleitoral. Está sendo exatamente o que sempre foi, fazendo exatamente o que disse que faria. Com método e com velocidade.
A “paralisia” do Governo por conta das “crises” provocadas por Bolsonaro e sua corte, apontada por alguns analistas, não está contando nem a rapidez do desmonte das políticas públicas nem o atraso proposital dos compromissos assumidos anteriormente que o Governo atual não quer cumprir. Olavo, o guru, é tudo o que já percebemos, mas burro não é. Escolheu a palavra “mártir” com muito propósito. Mártir é aquele que se sacrifica pela causa. Temos aí mais uma perversão. Bolsonaro não se sacrifica pela causa – ele sacrifica a causa em nome próprio.
Pela contagem regressiva, há mais 1.347 dias. Caso termine. O tamanho e a profundidade do martírio dependerão da nossa capacidade de sair da frente da “live” do novelão e passar a ser protagonista do Brasil real. [Transcrevi trechos]