Que pode oferecer uma mulher além da flor do sexo
PENÉLOPE
1
Dia após dia
as mãos hábeis
de Penélope
teciam o silêncio
a solidão
Dia após dia
as mãos de Penélope
varriam a casa
a vida vazia
2
No início
era assim
a casa lavada
e arrumada
a roupa lavada
e passada
o corpo lavado
e perfumado
como se de repente
o amante entrasse
quarto a dentro
3
A fidelidade uma cobrança
Ulisses como recompensa
a resguardasse com os antigos olhos
que a descobriram
entre tantas moças
Os penetrantes olhos
postos em suas coxas
Os antigos olhos
que a desnudaram
no primeiro instante
tornando-a mulher
em cada dobra do vestido
em cada curva do corpo
em cada devaneio inibido
4
O medo
uma constante
à vida vivida
sob a mira
do proibido
Desde criança
os passos contidos
A casa
a escola
a igreja
marcavam
o espaço
permitido
Algumas vezes
os sonhos
transpunham
o limiar
da porta
os olhos
se perdiam
por estranhos
territórios
Um copo de vinho
podia ser o passe
para uma caminhada
mais distante
Uma música lenta
de amor ardente
podia acordar os sentidos
mas os desejos
vinham e iam
quais marés
sonolentas
5
Que pode oferecer
uma mulher
além da flor
do sexo
Do homem a vantagem
o mistério das cicatrizes
a coroa de herói
a legenda de mártir
inscrita nos cárceres
De Penélope a sina
de tecer tecer
o que nunca termina
O fazer refazer
das obrigações femininas
De Penélope a submissão
da espera
O homem lhe complete
a vida vazia
6
Na imprensa nenhuma notícia
Na polícia tudo corria
em segredo de justiça
Com o passar dos dias
o esvaecer da esperança
Nem no aniversário
compensa tecer as tranças
de azul pintar
os olhos
tomar um banho
de perfumadas rosas
amainar o corpo
nos ventos alísios
Não havia alegria
em vestir um vestido novo
Os desejos passaram a dormir
no fundo de um poço
7
Ouvira os padres profetizarem
um outro mundo
o marido falar
de um mundo novo
As palavras as palavras
não podiam tudo
Havia o testemunho
do espelho de prata
a dor de não saber
guardar o verdor do corpo
perante o tempo corrosivo
Nenhum deus poderia impedir
os dias devorassem
os belos traços do rosto
os peitos pendessem
como frutos podres
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Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps 154/160