Padre Julio Lancellotti, Via-Sacra em São Paulo, ameaçado por PMs
A oração do Papa na Via-Sacra: Senhor, desarmai a mão levantada do irmão contra o irmão.
Policiais abordaram Via Sacra em São Paulo e ameaçaram levar padre Lancellotti a outro local para se explicar: "senti como uma forma de intimidação"
A Via-Sacra voltou a ser realizada no Coliseu de Roma, com a participação de milhares de fiéis. Um momento tocante foi representado por duas mulheres, uma ucraniana e outra russa, que juntas carregaram a Cruz na XIII Estação, que narra a morte de Cristo.
A Paixão de Cristo encarnada na vida das famílias: o Coliseu de Roma concentrou hoje as alegrias e cruzes dos lares, durante a Via-Sacra desta Sexta-feira Santa, com a participação de dez mil pessoas.
Adentrando na cotidianidade de pais, avós e filhos, foram tocados temas da atualidade, como a educação, a pobreza, a migração, a pandemia, a doença e também a guerra. De fato, um dos momentos mais tocantes foi vivido durante a XIII Estação, que narra a morte de Jesus. Neste momento, a Cruz é carregada por duas famílias, uma ucraniana e outra russa, em especial por duas mulheres amigas que trabalham juntas em Roma. A câmera flagra o olhar de cumplicidade entre elas, enquanto o Pontífice cobre com a mão o seu rosto em profunda oração.
O texto da meditação foi modificado no decorrer da celebração, para dar mais espaço à oração e ao silêncio, como explicou a Sala de Imprensa da Santa Sé: "Diante da morte, o silêncio é mais eloquente do que as palavras. Detemo-nos, portanto, num silêncio orante e cada um, no coração, reze pela paz no mundo."
Ao final das 14 estações, o Papa Francisco recitou a seguinte oração:
Pai misericordioso,
que fazeis nascer o sol sobre bons e maus,
não abandoneis a obra das vossas mãos,
pela qual não hesitastes
em entregar o vosso único Filho,
nascido da Virgem,
crucificado sob Pôncio Pilatos,
morto e sepultado no coração da terra,
ressuscitado dentre os mortos ao terceiro dia,
aparecido a Maria de Magdala,
a Pedro, aos outros apóstolos e discípulos,
sempre vivo na santa Igreja,
o seu Corpo vivo no mundo.
Mantende acesa nas nossas famílias
a lâmpada do Evangelho,
que ilumina alegrias e sofrimentos,
fadigas e esperanças:
cada casa espelhe o rosto da Igreja,
cuja lei suprema é o amor.
Pela efusão do vosso Espírito,
ajudai a despojar-nos do homem velho,
corrompido pelas paixões enganadoras,
e revesti-nos do homem novo,
criado segundo a justiça e a santidade.
Segurai-nos pela mão, como um Pai,
para que não nos afastemos de Vós;
convertei ao vosso coração os nossos corações rebeldes,
para que aprendamos a seguir desígnios de paz;
fazei que os adversários se deem as mãos,
para que saboreiem o perdão recíproco;
desarmai a mão levantada do irmão contra o irmão,
para que, onde há ódio, floresça a concórdia.
Fazei que não nos comportemos como inimigos da cruz de Cristo,
para participar na glória da sua ressurreição.
Ele que vive e reina convosco,
na unidade do Espírito Santo,
para sempre.
Amém
Na Sexta-Feira Santa, PMs enquadram procissão liderada pelo Padre Júlio Lancelotti
Seguindo a tradição católica da Semana Santa, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, encenou nesta Sexta-Feira Santa (15/4), nas ruas do centro da cidade de São Paulo, a Via Sacra, rito que relembra o sofrimento de Jesus Cristo no seu caminho até a pena de morte, conforme o Evangelho de São Mateus (27:30-31): “E cuspindo nele, tomaram o caniço e batiam-lhe na cabeça. Depois de caçoarem dele, despiram-lhe a capa escarlate e tornaram a vesti-lo com as suas próprias vestes, e levaram-no para o crucificar”.
Assim como ocorreu há mais de dois mil anos, agentes de segurança do Estado também estiveram no local, intimidando fiéis que acompanhavam a procissão.
A celebração católica se caracteriza por caminhar e fazer paradas em lugares específicos para relembrar momentos vividos por Jesus antes de ser pregado na cruz. A procissão organizada pelo padre Júlio, com a presença de moradores de rua que vivem na região, teve início no Largo de São Bento e em sua quarta parada, em frente ao prédio da Prefeitura de São Paulo, no Viaduto do Chá, foi abordada por quatro policiais militares.
Toda ação no local havia sido pacífica, segundo Lancelotti. “A população de rua pendurou cobertores nas grades em frente à Prefeitura como forma de protestar contra as operações do “rapa” [retirada de pertences por agentes do Estado]. Quando os cobertores foram retirados, foram jogadas flores naquele espaço. E várias dessas pessoas estavam manifestando o seu sofrimento e realidade que vivem”, contou o padre àPonte.
“Quatro policiais militares entraram no meio da manifestação e queriam saber quem era o responsável. Quando chegaram até mim, queriam me levar para outro local. Eu disse que não iria porque estava comandando a procissão. Eles insistiram e eu concordei em falar com eles ali. Queriam saber o que era aquilo que estava ocorrendo, para onde iria, até que horas iria e tiraram foto dos meus documentos”, detalhou Lancelotti.
Policiais ameaçaram levar padre a outro local para se explicar, mas desistiram | Foto:Daniel Kfouri
De acordo com o religioso, os policiais acompanharam a procissão até o final. O padre acredita que a presença da PM foi uma forma de intimidar um ato que, ao mesmo tempo que respeitava as tradições da Igreja Católica, também serviu como forma de manifestar o incômodo das pessoas que moram atualmente nas ruas da maior capital do país.
“Eu senti a presença dele como uma forma de intimidação. Nossa procissão teve várias reivindicações da população em situação de rua, denunciando a violência da polícia, por isso tem uma natureza diferente das vias sacras que ocorreram em outras paróquias da cidade. Claro que a polícia vai se incomodar muito mais com uma manifestação feita por essas pessoas”, aponta Lancellotti.
Cena da Via Sacra da população de rua, realizada na Sexta-Feira Santa | Foto:Daniel Kfouri
O padre ressaltou que os cristãos estão vivendo, ao final desta semana, um momento de reflexão sobre a morte de Jesus e, por isso, é tempo de pensar nos mais necessitados. “Que sejamos comprometidos na defesa da vida dos descartados e torturados pela violência e miséria que atormenta nosso povo”, disse o Lancelotti como mensagem de Páscoa.
O número de pessoas vivendo nas ruas da capital paulista aumentou 31% nos últimos dois anos, saltando de 24.344 em 2019 para 31.884 em 2021, conforme oCenso da População de Ruadivulgado pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Também aumentou o número de famílias que deixaram de contar com um teto sobre suas cabeças: os entrevistados que relataram estar em situação de rua com uma pessoa da família, que eram 20% em 2019, eram 28,6% em 2021.
O que diz o governo
A reportagem questionou a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), sobre o que motivou os policiais militares a abordarem o padre Júlio Lancelloti durante uma procissão. A resposta foi a seguinte:
A Polícia Militar acompanhou manifestação realizada nesta sexta-feira (15) que se deslocaram pelas principais vias do centro até à Secretaria da Segurança Pública (SSP) e posteriormente à Catedral da Sé, onde era realizado um teatro ao ar livre comemorativo a Semana Santa, seguido da celebração de uma missa. O ato reivindicatório por justiça e moradia aos cidadãos em situação de rua transcorreu de forma pacífica e não houve interdição das vias. Após o evento, os participantes se dispersaram.