Os filhos abandonados da ONU no Haiti
As histórias de 265 crianças haitianas que seus pais, Capacetes Azuis (dentre eles brasileiros), deixaram para trás após manterem relações com suas mães, muitas vezes em troca de comida

Uma missão envolvida em polêmica
polêmicaA Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), a operação mais extensa desenvolvida pela organização no país caribenho (2004-2017), foi concebida originalmente com o objetivo de colaborar com instituições locais em um contexto de instabilidade política dominada pelo crime organizado. O mandato foi prolongado devido às catástrofes naturais: em 2010, o Haiti sofreu um terremoto, e em 2016 padeceu os arrasadores efeitos do furacão Matthew, acontecimentos que aumentaram a insegurança da situação política do país. Depois de 13 anos de missão, a MINUSTAH chegou ao fim em outubro de 2017, dando lugar à mais modesta Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH).
A MINUSTAH foi uma das missões mais polêmicas da ONU. Foi o foco de inumeráveis acusações de exploração e abusos sexuais: não são poucos os militares e funcionários que foram relacionados com violações dos direitos humanos que incluem exploração sexual, estupros e inclusive homicídios. (Ao longo desta reportagem, empregaremos indistintamente os termos pessoal, Capacetes Azuis e pacificadores para nos referirmos a membros estrangeiros, tanto militares quanto civis, associados à MINUSTAH.)
No que diz respeito à saúde pública, não existe nenhuma dúvida (de fato, a ONU reconheceu oficialmente) sobre a introdução acidental do cólera no Haiti por parte dos Capacetes Azuis. Mais de 800.000 habitantes do país precisaram de atendimento médico, e pelo menos 10.000 morreram por causa da doença.

Numerosos meios de comunicação já revelaram que membros do pessoal da ONU ofereciam alimentos e pequenas quantidades de dinheiro a garotas menores de idade em troca de relações sexuais. Além disso, apontou-se a relação entre a MINUSTAH e um grupo secreto que realizou abusos sexuais de todo tipo com aparente impunidade: supostamente, pelo menos 134 Capacetes Azuis procedentes do Sri Lanka exploraram sexualmente nove meninas entre 2004 e 2007. Depois que esses fatos vieram à tona graças ao trabalho da Associated Press, em 2017, a MINUSTAH se tornou um paradigma da falta de contundência perante acusações de abusos sexuais. Como consequência daquela reportagem, 114 Capacetes Azuis foram obrigados a voltar ao Sri Lanka, mas nenhum foi processado ou julgado depois da repatriação.
Estudos exaustivos evidenciam que crianças concebidas em situações de guerra costumam crescer no seio de famílias monoparentais que sofrem condições econômicas extremamente precárias provocadas pelo conflito. As circunstâncias de que o pai estrangeiro esteja ausente e que o nascimento da criança ocorra fora do casamento geralmente desembocam em situações de estigma e discriminação.
Ainda não dispomos de muitos dados sobre as consequências de ser uma criança mestiça, filha de pai militar estrangeiro, e menos ainda conhecemos as experiências pessoais dos chamados filhos da MINUSTAH, crianças haitianas cujos pais são Capacetes Azuis. Esta é, justamente, uma das razões pelas quais decidimos atrair o foco para as histórias das pessoas afetadas pelas missões executadas pelas Nações Unidas. [Transcrevi trechos]