OS BÓIAS-FRIAS
1 (O Recrutamento)
Nas carrocerias de velhos caminhões
os bóias-frias são despachados
para longínquas terras
Vão trabalhar por alguns trocados
no cultivo dos latifúndios
Os bóias-frias jamais verão os rostos
ou conhecerão os nomes dos patrões
Os bóias-frias inclusive ignoram
o itinerário dos caminhões
2 (O Acampamento)
A fome
remoendo as tripas
e no peito
a roncadeira
A tosse
corta o silêncio
A tosse
a tosse
úmido pássaro
das madrugadas
3 (A Resignação)
Como odiar um inimigo
de desconhecido nome
escondido
rosto
Como enfrentar um comando
a agir por trás dos biombos
das sociedades anônimas
Como discordar das ordens de serviço
que vêm além dos mares
além dos ares
de insuspeitos lugares
Como exigir do companheiro
a revolta a luta
se a cotidiana ambição constitui
um pedaço de pão
e depois dormir dormir
a rede estendida
navegando a escuridão
4 (O Eito)
Antes de aparecer o sol
manso gado
embarcado pelos traficantes
de escravos
os bóias-frias seguirão
com a docilidade da sujeição
de um animal ao seu dono
por desconhecidas trilhas -
os caminhos sem termo
do sofrer eterno
no fogo seco
no fogo grego
do inferno
Vastos os caminhos
da fome e solidão
Vastos os caminhos
que temos de arar
quando se nasce
na servidão
---
Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps. 61/64