O Estado acelera a fabricação de cadáveres e propulsiona os números de futuros desaparecidos
II - Causa mortis determinada: a prisão
por Fábio Mallart e Fábio Araújo
Le Monde
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Diante do atual momento, no qual observa-se a disseminação do novo coronavírus pelos quatro cantos do país, e em que as prisões começam a registrar os primeiros óbitos confirmados – o que não significa que casos anteriores não tenham ocorrido, visto que o manejo dos dados prisionais é sempre nebuloso –, tal massacre tende a ganhar velocidade.
Da sarna à tuberculose (que atinge a população carcerária 35 vezes mais do que as pessoas em liberdade), passando pelos surtos de sarampo e casos de meningite meningocócica, os cárceres – imundos, superlotados, com racionamento de água, sem assistência médica e falta de produtos de higiene e limpeza – são ambientes ideais para a propagação da Covid-19. Ademais, soma-se ao vírus novas camadas de opacidade no fluxo dos cadáveres.
Em 20 de março, em pleno contexto de pandemia, Ygor Nogueira do Nascimento partiu do Presídio Ary Franco (Água Santa) em direção à unidade Paulo Roberto Rocha, no complexo de Gericinó. Transferido de uma cadeia com sarampo para uma prisão que, cerca de um ano antes, computou casos de meningite meningocócica, o jovem, de 22 anos de idade e que sequer havia sido julgado, veio a óbito no mesmo dia. O périplo da família apenas começava. A notícia da morte, como se não bastasse, trazia consigo uma série de traços de horror, a começar pelo fato de que os seus familiares não sabiam que Ygor fora transferido – informação obtida pelos parentes somente quando do comunicado do óbito. “Pra mim, ele ainda estava em Água Santa”2.
Segundo relatos de familiares de um outro preso, transferido junto com o primeiro, antes mesmo de chegar à nova unidade, Ygor já passava mal, sentindo muita falta de ar. Entre ligações, idas ao complexo e informações desencontradas – “um joga pro bombeiro, o outro joga pro IML [Instituto Médico Legal]” – a dor da morte, pouco a pouco, se somou à angústia por não conseguir retirar o cadáver do presídio. “Aí, na segunda-feira [mais de 48 horas após a morte] voltei lá de novo; aí fiz cartaz pra uma reportagem da Record, saiu notícia no Extra, na UOL, saiu notícia em vários lugares…e nada. Eu falei: Jesus, o que é que vou fazer agora, que eu não consigo tirar o Ygor?”. Ressalta-se, ainda, que juntamente com a impossibilidade de enterrar o corpo – que continuava preso mesmo depois de morto –, confluiu a desinformação sobre a causa do óbito. “Quando eu liguei pra lá perguntando qual a causa da morte, eles disseram: é indefinida”. Apenas em 25 de março, mais de 96 horas depois da morte, Ygor Nogueira do Nascimento foi sepultado. A certidão de óbito, além de reafirmar o processo de obscuridade do falecimento (CAUSA INDETERMINADA), materializa, através da escrita do Estado, o que significa uma vida considerada sem valor (CPF: SEM INFORMAÇÃO; COR: PARDA; ELEITOR: NÃO; OBSERVAÇÕES/ANOTAÇÕES A ACRESCER: NÃO DEIXOU FILHOS, NÃO DEIXOU BENS, NÃO DEIXOU TESTAMENTO).
Como bem notam os membros do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ), a publicação da nova resolução, que discorre sobre a competência da definição da causa mortis, tende a aprofundar algo que já se passa no sistema prisional fluminense, a saber, as subnotificações e o encobrimento da causa das mortes. Acresça-se a isso a portaria firmada, em 30 de março, entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Saúde (MS), que instituiu novos padrões para sepultamento e cremação de corpos. Esse documento, voltado aos mortos com ausência de familiares ou de pessoas conhecidas ou em razão de exigência de saúde pública, autoriza o enterro ou a cremação sem o registro civil de óbito, requerendo só a declaração de óbito, que deve ser arquivada no equipamento de saúde junto com o prontuário e eventuais documentos. No que tange ao sistema carcerário, os integrantes do MEPCT/RJ, visto que as pessoas confinadas atrás das grades são mais vulneráveis a serem desaparecidas, sobretudo quando se observa que as prisões estão em um regime de isolamento ainda mais severo, destacam que a referida portaria poderá tornar ainda mais difícil a identificação dos corpos no sistema.
Privação alimentar; racionamento de água ou provimento de água podre; bloqueio da comunicação entre presos e familiares, e entre os presos e as instituições fiscalizadoras dos cárceres; falta de medicamentos ou excesso de substâncias psiquiátricas, mobilizadas como instrumento de tortura; exposição a doenças infectocontagiosas; desaparecimento de presos. Tudo isso é parte de uma racionalidade governamental que opera a partir de uma política da aniquilação e do sofrimento, que distingue aqueles que merecem daqueles que não merecem viver – distribuindo a tortura e a morte de modo diferencial.
Seja do prisma da produção de novas mortes pelo coronavírus – fomentado pelas condições abomináveis do confinamento, – seja em virtude das mudanças nebulosas no fluxo dos mortos, o Estado acelera a fabricação de cadáveres e propulsiona os números de futuros desaparecidos. O registro que emerge nos atestados de óbito como causa mortis indeterminada, tem a sua determinação na prisão e nos agenciamentos que ela produz de forma articulada a outros dispositivos, tais como o sistema de justiça, o aparato policial e o sistema de saúde. A causa mortis, portanto, é determinada. Quem matou Igor Nogueira do Nascimento foi a prisão.
1 Mallart, Fábio. “Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo”. 2019. Tese de Doutorado em Sociologia (Universidade de São Paulo, USP).
2 Todas as palavras colocadas entre aspas se referem às narrativas de um parente de Ygor do Nascimento, a quem agradecemos por compartilhar conosco fragmentos de uma história tão dolorosa