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O CORRESPONDENTE

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O CORRESPONDENTE

02
Mai18

O BUROCRATA

Talis Andrade

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1

A marcar passo

todo santo dia

a marcar o ponto

no desencanto

de cada segundo

o burocrata passa

o modorrento tempo

carimbando calhamaços

matando moscas azuis

com o alfinete de prata

que enfeita a gravata

 

 

A gravata o alfinete

emprestam certa nobreza

ao paletó comprado

em tempo de festa

 

A boa aparência

o diploma de bacharel

supostas condições

para conseguir

a bajulada promoção

que (re)tarda

 

No carregar do andor

pelos corredores dos palácios

no arrastar do tempo

que tudo desgasta

o paletó triste mortalha

vestida em vida

 

 

Vida desbotada e puída

lentamente consumida

Sedentária vida

que deforma o corpo

descarnado e oco

 

Vida contida

de quem se con

tenta em possuir

de tudo um pouco

um pouco de amor

um pouco de sexo

um pouco do bolo

sobejo do lobo

 

 

Enquanto a morte não vem

na cadeira do birô

o paletó lembra um

espantalho

 

2
Na velação

todo morto

um santo

e quanto

mais morto

mais santo

 

Incelenças cantam

as virtudes

Uma vida dedicada

à família

ao trabalho

Uma vida

de mãos limpas

sem escrita

na folha corrida

 

Incelenças cantam

a pobreza

cobiçada moeda

dos mortos

como garantia

da conquista

do paraíso

 

3
Na vida e na morte

despertamos a ganância

a invídia

 

Ninguém consegue ser

totalmente desprovido

totalmente deserdado

fatalmente aparecerá um oportunista

para tirar vantagem

o belchior

o penhorista o sebista

 

Fatalmente aparecerá um sabido

 

4
Não esfriou o cadáver no caixão

começaram a repartir os despojos

Na repartição os colegas

jogam os dados da sorte

reivindicando o posto

o birô

a cadeira

o alquime das comendas

 

Não esfriou o cadáver no caixão

apresentaram-se os pretendentes

para dormir na cama do morto

Ávidos olhos cortejam a fêmea

a beleza realçada pelo negro vestido

negro pesado luto exibido

como sinal de renúncia

aos prazeres do mundo

 

5
Olhos fechados

a mulher desmancha

               a presença

na cama de casal

o falecido estirado

              na quietude

do relaxado descanso

esterilizado e santo

do sexo dominical

 

Olhos fechados a mulher reza

como se temesse o morto

pudesse ler-lhe os pensamentos

levantar-se do esquife

para diferidas perguntas

que não teve coragem em vida

 

---

Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps 78/ 83

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