O BUROCRATA
1
A marcar passo
todo santo dia
a marcar o ponto
no desencanto
de cada segundo
o burocrata passa
o modorrento tempo
carimbando calhamaços
matando moscas azuis
com o alfinete de prata
que enfeita a gravata
A gravata o alfinete
emprestam certa nobreza
ao paletó comprado
em tempo de festa
A boa aparência
o diploma de bacharel
supostas condições
para conseguir
a bajulada promoção
que (re)tarda
No carregar do andor
pelos corredores dos palácios
no arrastar do tempo
que tudo desgasta
o paletó triste mortalha
vestida em vida
Vida desbotada e puída
lentamente consumida
Sedentária vida
que deforma o corpo
descarnado e oco
Vida contida
de quem se con
tenta em possuir
de tudo um pouco
um pouco de amor
um pouco de sexo
um pouco do bolo
sobejo do lobo
Enquanto a morte não vem
na cadeira do birô
o paletó lembra um
espantalho
2
Na velação
todo morto
um santo
e quanto
mais morto
mais santo
Incelenças cantam
as virtudes
Uma vida dedicada
à família
ao trabalho
Uma vida
de mãos limpas
sem escrita
na folha corrida
Incelenças cantam
a pobreza
cobiçada moeda
dos mortos
como garantia
da conquista
do paraíso
3
Na vida e na morte
despertamos a ganância
a invídia
Ninguém consegue ser
totalmente desprovido
totalmente deserdado
fatalmente aparecerá um oportunista
para tirar vantagem
o belchior
o penhorista o sebista
Fatalmente aparecerá um sabido
4
Não esfriou o cadáver no caixão
começaram a repartir os despojos
Na repartição os colegas
jogam os dados da sorte
reivindicando o posto
o birô
a cadeira
o alquime das comendas
Não esfriou o cadáver no caixão
apresentaram-se os pretendentes
para dormir na cama do morto
Ávidos olhos cortejam a fêmea
a beleza realçada pelo negro vestido
negro pesado luto exibido
como sinal de renúncia
aos prazeres do mundo
5
Olhos fechados
a mulher desmancha
a presença
na cama de casal
o falecido estirado
na quietude
do relaxado descanso
esterilizado e santo
do sexo dominical
Olhos fechados a mulher reza
como se temesse o morto
pudesse ler-lhe os pensamentos
levantar-se do esquife
para diferidas perguntas
que não teve coragem em vida
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Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps 78/ 83