Nunca aprendemos a morrer
III - O direito universal à respiração
Por Achille Mbembe
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Nestas condições, uma coisa é preocuparmo-nos com a morte de outro, ao longe. Outra, é de súbito tomar consciência da própria putrescibilidade, de viver na vizinhança da própria morte, de contemplá-la enquanto possibilidade real. À partida, é esse o terror suscitado pelo confinamento a muita gente, a obrigação de, por fim, responder pela sua vida e nome.
Responder aqui e agora pela nossa vida sobre a Terra com outros (incluindo os vírus) e pelo nosso nome em comum: é isto que o momento patogénico impõe à espécie humana. Momento patogénico, mas também momento catabólico por excelência, o da decomposição dos corpos, da triagem e da eliminação de todo o tipo de detritos-de-homens — a «grande separação» e o grande confinamento, em resposta à surpreendente propagação do vírus e em consequência da extensiva digitalização do mundo.
Não importa o quanto nos tentemos livrar dele. No final, tudo nos traz de volta ao corpo. Tentámos enxertá-lo noutros suportes, fazer um corpo-objecto, um corpo-máquina, um corpo digital, um corpo ontofánico.
Ele regressa sob a forma angustiante de uma enorme mandíbula, veículo de contaminação, vector de pólen, de esporos e de bolor.
Saber que não estamos sós nessa provação, ou de que seremos muitos a escapar, trará apenas um vão conforto. E se assim não for é porque nunca aprendemos a viver com o que é vivo, a preocuparmo-nos verdadeiramente com os danos causados pelo homem nos pulmões da Terra e no seu organismo. Numa palavra, nunca aprendemos a morrer. Com o advento do Novo Mundo e, alguns séculos mais tarde, a aparição das «raças industrializadas», nós escolhemos, numa espécie de vicariato ontológico, delegar a nossa morte noutrem e fazer da própria existência um grande repasto sacrificial.
Em breve deixará de ser possível delegar a morte noutrem. O outro não morrerá mais em nosso lugar. Não seremos apenas condenados a assumir, sem mediação, a nossa própria morte. Haverá cada vez menos possibilidades de adeus. Aproxima-se a hora da autofagia e, com ela, o fim da comunidade, porque dificilmente haverá comunidade digna desse nome se dizer adeus, isto é, fazer a memória do vivo, deixar de ser possível.
Pois a comunidade, ou melhor, o em-comum, não assenta apenas na possibilidade de dizer adeus, isto é, de ter um encontro único com os outros e a honrá-lo de novo de cada vez. O em-comum assenta também na possibilidade da partilha sem condição e de, a cada vez, recuperar qualquer coisa de absolutamente intrínseca, ou seja, de incomensurável, incalculável, e por isso sem preço. (Continua)