Morrer antes da morte
No interior das instituições prisionais, deparei-me com alguns espaços cujas dinâmicas de funcionamento destoam dos pavilhões onde se aglomera o grosso da massa encarcerada. Espaços por vezes sepultados atrás de chapas de aço e de outros pavilhões, em que a sensação é a de que tudo é possível. Confira o sexto e último artigo do dossiê “Estado de choque”
por Fábio Mallart
Soldados que invadem favelas com o rosto coberto por máscaras, as quais refletem imagens de caveiras. Blindados chamados de “Caveirão”, que, enquanto transitam pelos mesmos territórios, alternam a chuva de balas, por meio de buracos adaptados para o cano das armas, com mensagens anunciando que vieram buscar almas. Ossos de um filho desaparecido deixados na porta da residência de sua mãe por milicianos, como prova de quem manda na região. Sepultado como indigente, somente depois de um ano sua mãe conseguiria identificar o túmulo onde fora enterrado, no exato dia em que o jovem faria aniversário. Veículos metralhados com dezenas de tiros – podem ser 80, 111 –, fuzilados por pertencerem a certos corpos, por transitarem por determinados territórios. Execuções perpetradas pelas forças policiais, envolvendo simulacros de armas de fogo, indivíduos desarmados ou pessoas mortas por “engano”, que podem ser trucidadas por carregarem um canguru para transportar bebês e um guarda-chuva, “confundidos”, respectivamente, com um colete à prova de balas e um fuzil.1
Autoridades governamentais que reivindicam e legitimam a política do abate: Wilson Witzel (PSL), atual governador do Rio de Janeiro, e a narrativa de que a polícia deve “mirar na cabecinha e… fogo!”;2 João Doria (PSDB), governador de São Paulo, e a afirmação de que, caso haja enfrentamento, a polícia tem de atirar para matar;3 Jair Bolsonaro (PSL) e a defesa de que o policial, “se matar dez, quinze ou vinte, com dez ou trinta tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado”.4
Esses fragmentos, os quais poderiam ser estendidos e conectados a outros tantos – corpos que desaparecem no interior dos presídios, helicópteros que sobrevoam favelas e atiram a esmo –, são pedaços minúsculos, abomináveis e brutais de nossas políticas de extermínio, que, como bem sabemos, são direcionadas às populações e aos territórios negros, pobres e periféricos. Vale dizer que foram pinçados dos artigos anteriores que compõem o dossiê “Estado de choque”, o qual se encerra nas linhas a seguir. Fosse para estabelecer um traço que conecta tais textos, que os corta ao meio e que, em certo sentido, nos deixa em choque, diria que esses escritos, de tamanho reduzido e potência amplificada, lançam luz sobre o fato de que o terror e a matança estatais figuram como políticas de gestão de determinadas populações e espaços urbanos. Populações expostas à precariedade ou, para mobilizar as palavras de Judith Butler, à “distribuição diferencial da condição precária”, submetidas distintivamente à pobreza, à fome, às remoções, às violências do Estado, aos danos e – o ponto que gostaria de ressaltar – à morte.5 Vidas que são consideradas como tendo menos valor, passíveis de luto parcial e esporádico, que seguem, para nos lembrarmos do artigo de Adriana Vianna, sem nome e sem rosto, anônimas, capturadas por categorias como “traficante”, “suspeito” e “envolvido”, termos que, juntamente com “confronto” ou “auto de resistência”, fazem parte do processo de apagamento dessas vidas e mortes.6
Ressalta-se que essas políticas de extermínio operam em estreita correlação com as políticas de encarceramento, e isso de diferentes perspectivas. Primeiramente, porque o perfil da população carcerária é o mesmo executado pelas ruas da cidade. Em segundo lugar – e aqui me refiro ao cruzamento entre encarceramento e letalidade apenas em solo paulista –, nota-se a existência de casos nos quais as execuções perpetradas por policiais encapuzados que atuam nas periferias – outra dinâmica de morte – se baseiam em indícios de passagem pelo sistema prisional, tais como antecedentes criminais e tatuagens feitas no interior das prisões. Em termos práticos, como mostrado em outro trabalho, a simples passagem pela cadeia opera como critério de produção de morte.12 Por fim, se a detenção produz vidas potencialmente matáveis do lado de fora dos muros, não se deve olvidar que no interior das muralhas o cárcere também aniquila. Levando em consideração apenas o ano de 2017, 532 pessoas faleceram dentro do sistema carcerário paulista, e 484 desses casos foram classificados pela Secretaria de Administração Penitenciária como “mortes naturais”.13 Ora, em prisões superlotadas, com racionamento de água, repletas de insetos e roedores, torturas de toda ordem, alimentação e atendimentos médicos precários, ineficácia e indiferença dos atores do sistema de justiça, uma pergunta, que prescinde de respostas, se impõe: em condições mortíferas, o que significa “morte natural”?
Locais como a “clínica” do HCTP I de Franco da Rocha, uma estrutura de concreto com poucas celas, leitos e consultórios médicos, escondida atrás de um dos pavilhões do manicômio, na qual, para utilizar as palavras de um de meus interlocutores, “a gente urina e caga num saco, e toma remédio”. Espaços como o “castigo do castigo”, situado no interior da Penitenciária Masculina de Lucélia, que emerge como um corredor camuflado atrás de uma chapa de aço, espécie de anexo do “castigo”, setor onde os detentos cumprem sanções disciplinares. Na prática, um “buraco” fétido, calorento, composto por um grude no chão, onde dentro de uma das cerca de seis celas – sem água, sem visitas e sem banho de sol – subsistia um homem solitário, que não conseguia falar. Lugares como o “seguro” do Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, que, em meados de 2014, possuía uma das paredes de seu corredor, com aproximadamente oito celas, forrada de fezes dos pombos. Ao fundo dele, apartadas por uma grade, mais celas. Em uma delas, uma espécie de “seguro do seguro”, sobrevivia uma mulher trancada, pelada e medicada.15
Nesses espaços, que por vezes restam sepultados atrás de chapas de aço e de outros pavilhões, demonstrando que o segredo é uma das armas do exercício do poder político, a sensação, quando se consegue acessá-los, é a de que tudo é possível. São neles, os quais conjugam o mínimo de condições de existir e o máximo de destruição, que se concentram os olhos vitrificados, paralisados e brilhantes; os corpos estáticos e travados; as cicatrizes e feridas ainda frescas, resultantes das automutilações; o adensamento dos restos de lixo e do cheiro; os internos e as internas pelados e excessivamente medicados; as imagens que remetem às antigas masmorras; as cenas que nos fazem virar o rosto; os sujeitos que calam; os corpos que babam. Vale dizer que eles não existem apenas em uma ou outra prisão, em um dos hospitais de custódia, mas são engrenagens constitutivas das instituições de controle, incluindo, por exemplo, unidades de internação da Fundação Casa. São como que intervalos internos, espaços intersticiais que possibilitam a operação do conjunto. Por um lado, acentuam a dor, o frio ou o calor, o cheiro, os psicofármacos, a angústia, o terror. Por outro, e de modo complementar, reduzem a luz, o ar, a água, no limite, a fala dos que agonizam em suas dependências, espelhando um processo de aniquilação da aniquilação, e isso ao infinito, afinal sempre é possível se deparar com outra porta ou outra passagem, as quais desembocam em um “buraco” ainda mais invivível do que o anterior.16
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Fábio Mallart é doutorando em Sociologia pela USP (bolsista Fapesp/Capes), autor de Cadeias dominadas: a Fundação Casa, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos (Terceiro Nome/Fapesp, 2014) e coorganizador de BR 111: a rota das prisões brasileiras (Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil, 2017).
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1 Carolina Moura, “PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas”, El País (Ponte), 19 set. 2018.
3 Arthur Rodrigues, “A partir de janeiro, polícia vai atirar para matar, afirma João Doria”, Folha de S.Paulo, 2 out. 2018.
4 Jussara Soares, “Bolsonaro diz que policial que mata ‘10, 15 ou 20’ deve ser condecorado”, O Globo, 28 ago. 2018.
5 Judith Butler, Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018.
6 Adriana Vianna, “Políticas da morte e seus fantasmas”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2019. No que se refere ao valor da vida e, consequentemente, ao seu não valor, destaca-se o artigo de Roberto Efrem Filho, publicado na edição de abril de 2019. Nele, ao analisar a greve de fome de membros de movimentos sociais ligados à Via Campesina em frente ao Superior Tribunal Federal (STF), incluindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o autor nos mostra como a resposta do Estado foi a indiferença, aceitando que tais mortes poderiam acontecer.
7 Vera Telles, “A violência como forma de governo”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019.
8 Fábio Araújo, “Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder”, Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2019.
9 Carolina Grillo e Rafael Godoi, “Simulacros: a hiper-realidade do extermínio”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2019.
11 Igor Melo, “Com Witzel, RJ tem recorde de mortos em confrontos com a polícia”, UOL Rio de Janeiro, 18 jun. 2019.
12 Fábio Mallart e Rafael Godoi, “Vidas matáveis”. In: BR 111: a rota das prisões brasileiras, Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 2017.
13 Caio Spechoto, “Aumenta número de presos mortos nas cadeias de São Paulo”, Terra, 6 ago. 2018.
14 Em linhas gerais, trata-se de espaços institucionais, ligados à Secretaria de Administração Penitenciária, nos quais se encontram homens e mulheres em cumprimento de medida de segurança, aplicada aos sujeitos que foram considerados inimputáveis ou semi-imputáveis, ou seja, que no momento em que praticaram um ato previsto pela legislação criminal não se encontravam em condições de entender a ilicitude desse ato, lembrando que, para constatar a inimputabilidade, realiza-se uma perícia psiquiátrica.
15 Os “seguros” são espaços institucionais mantidos fora dos pavilhões – estes, por sua vez, conhecidos como “convívio”. Ao mesmo tempo, essa categoria se refere aos presos e presas que cometeram atos considerados inaceitáveis por seus companheiros de detenção, como estupro, caguetagem e desrespeito às visitas.
16 Essas questões, trabalhadas aqui de maneira um tanto rápida, constituem parte importante de minha tese de doutorado, intitulada Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo, que será defendida em agosto de 2019 no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).