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11
Jun20

Insensibilidade de Bolsonaro produz insensibilidade numa parte da população

Talis Andrade

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II - Coronavírus: Falta de empatia de Bolsonaro com mortes por covid-19 parece psicopatia

 
Juliana Gragnani entrevista Maria Rita Kehl
 
 

BBC News Brasil - E como as pessoas estão lidando com a pandemia? Há um sentimento generalizado de medo?

Kehl - Não há um só padrão. Por exemplo, se nós temos um presidente da República que diz que é uma "gripezinha", e que diz "lamento, todo mundo morre", embora esteja havendo uma pandemia e muitas pessoas estejam morrendo porque estão acreditando que podem ir pra rua, meu temor é que não seja só uma insensibilidade que machuca - porque machuca, evidentemente. Mas que seja uma insensibilidade que produz essa insensibilidade numa parte da população.

Porque esse mecanismo de defesa - quer dizer, no caso do presidente acho que é pura canalhice, mesmo - pode se tornar um mecanismo de indiferença, de desidentificação, "não é comigo", "não vou lamentar pelos outros porque acontece com os outros, mas não está acontecendo comigo nem com meus familiares".

Nesse momento, a solidariedade é tão necessária, nem que seja apenas simbólica, mandando cartas para os jornais, mandando dinheiro para lugares que fecharam, para alguém na rua com fome. Isso também é jeito bom de diminuir nossa angústia. "Diante desse horror que está acontecendo, posso fazer alguma coisa para os vivos?"

Essa é uma das reações que, embora seja generosa, também é egoísta porque nos tranquiliza um pouco. Você pode sentir que está preso em casa, mas está ajudando alguém. Tem esses dois lados. Sem solidariedade, sobra a barbárie.

Porque daí é um salva-se quem puder e dane-se quem não puder se salvar ou quem está correndo mais risco. É muito horroroso. Eu não sei nem qualificar direito o quanto isso é horroroso.

 

BBC News Brasil - Nesta semana, com mais de 30 mil mortos no Brasil, o presidente Bolsonaro disse: "Lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo". O que isso revela sobre ele?

Kehl - Falta de empatia é o mínimo. É muito difícil fazer diagnóstico de alguém que não conhecemos, a gente já erra o diagnóstico de quem está no nosso consultório, no nosso divã. Imagina de alguém sobre a qual só temos notícias pelos jornais. Mas a minha impressão desde a campanha é que ele está mais próximo daquilo que a gente chama de um psicopata.

Um psicopata não é necessariamente um serial killer (um assassino em série). Digo porque geralmente quando aparecem essas figuras a imprensa começa a noticiar que são psicopatas. São pessoas que não têm divisão subjetiva. Divisão subjetiva significa "bom, eu corri demais, atropelei aquela criança", justifico dizendo que minha mãe estava doente, mas ao mesmo tempo eu me sinto angustiada. Mesmo quando fazemos algo muito ruim, como esse exemplo horroroso de atropelar uma criança, algo em nós não nos deixa em paz. E mesmo quando é uma coisa que a gente faz movida pela raiva. Você envenena o cachorro do vizinho que não te deixa dormir. Alguma coisa em nós sofre, mesmo pessoas más, sem consciência, egoístas, alguma coisa em nós sofre. O fato de ter que justificar já mostra que não é tão tranquilo quanto parece.

Vou dar só a definição do que é um psicopata para as pessoas pensarem se isso tem a ver com essa figura que ocupa a Presidência: o psicopata não tem essa divisão que diz: "Eu fiz, mas não deveria ter feito". "Eu fiz porque eu fui obrigada, mas eu sinto alguma culpa". Ele não tem. Ele não tem nenhuma empatia com o outro.

Essa resposta [sobre os mortes por coronavírus] é de um tal grau de impiedade… Não é só que ele não tem estatura para ser presidente do Brasil, isso a gente já sabe desde o começo, quando ele não comparecia a debates e xingava as pessoas. Ele não tem estatura humana naquilo que a gente considera que são alguns traços mínimos para você ser considerado um homem. Um homem humano.

BBC News Brasil - E qual é a importância, para uma sociedade, que seu líder lamente os mortos do país?

Kehl - Os gestos simbólicos são muito importantes. Vou fazer uma porcentagem meramente imaginária: é como se 30% para nós fossem questões materiais, como comer, morar, por exemplo, e 70% fosse esse outro campo que é o simbólico, que é o das trocas de linguagem, expressões, dos laços que se formam. O que distingue o humano de qualquer outra espécie é a capacidade da linguagem. E a linguagem é tudo o que dispomos quando não dispomos de mais nada.

As pessoas que ficaram em campos de concentração conseguiram escrever diários e livros. Algo como: "Eu estou aqui em condições subumanas, desumanas, mas eu ainda sou um ser humano". O que distingue o humano é isso, é a capacidade de registrar simbolicamente alguma coisa sobre sua vida e comunicar simbolicamente alguma coisa sobre sua vida ou a vida coletiva, o entorno.

Bolsonaro usa outros gestos simbólicos que não é o lamento. Diz algo como: "não é problema meu". E não é só não lamentar, é não fazer atos com consequências para diminuir a pandemia.

Meu temor é que a sociedade brasileira se torne menos solidária. Não que antes ela tenha sido muito solidária: o Brasil foi o último país livre a abolir a escravidão, por exemplo. Tivemos 300 anos de escravidão. E quando acabou escravidão também não houve teve nenhuma reparação. Temos uma população afrodescendente muito mais pobre porque seus bisavós, quando acabou a escravidão, foram jogados na rua. Coisas horríveis que estão no nosso DNA histórico, que já é uma sociedade menos generosa com o outro…

No entanto, a presença simbólica, o discurso, os atos de quem governa a sociedade produzem diferença. Quando o governo Lula criou o Luz Para Todos ou as cotas nas universidades, por exemplo. Foi uma coisa importantíssima, como forma tardia mas bem-vinda de reparação da desigualdade causada pela escravidão. Foi um ato que produz solidariedade.

Os gestos simbólicos daquele governo foram de inclusão, de promover igualdade, de promover a solidariedade, muito diferente dos gestos simbólicos desse governo de agora. (Continua)

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