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22
Jun18

Direito 4.0 produz delações ilícitas e conduções inconstitucionais

Talis Andrade


O cenário do Direito brasileiro é o da Batalha de Pirro: em 280 a.C., o Rei Pirro, depois de vencer uma batalha, disse, respondendo a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória: 'Mais uma vitória como essa e estarei arruinado completamente'. E disse isso apontando para o que restou de suas tropas

vitória de pirro.jpg

 


Por Lenio Luiz Streck

 

Metaforicamente, é o que se pode dizer do Brasil, depois do impeachment feito à fórceps (é eufemismo), intervenção militar fracassada no Rio, prejuízo de operações como A Carne é Fraca, greve dos caminhoneiros que foi um desastre para a economia (Petrobrás quase quebrou o que restou das tropas pirróticas), ponderação usada pelo judiciário como katchanga real, população carcerária aumentando dia a dia sem que isso resolva coisa nenhuma (e isso que o sistema carcerário foi “declarado” inconstitucional por ECI), decisões judiciais tomadas pela vontade pessoal do juiz, gente defendendo esterilização de pobres, juiz Moro sendo Moro, Dallagnoll prometendo um vídeo semanal nas eleições, TRF4 “decidindo” que o MPF não necessita ser isento, governo batendo cabeça no STF sobre MP do próprio governo, discussão sobre auxílio-moradia que vira conciliação (o Brasil é o rei da conciliação), com o autor se passando para o lado dos conciliandos e assim por diante (acrescentaria o elenco de ilicitudes delineadas por Janio de Freitas na Folha de 17.06.2018:TRF4 aceitou arbitrariedades de Moro, CNJ concedeu imunidade às violações de praticadas por Moro, o STJ e o STF substituíram a lei pelo agrado à opinião pública e o dever pela sujeição, além do direito paralelo criado por Moro e Dallagnol, tudo absorvido pelo TRF4 – a lista é bem mais longa, é claro).

 

Impressiona que alguns Ministros que votaram pela inconstitucionalidade das conduções pedissem desculpas por votar assim, deixando claro que com isso não estavam coadunando com a impunidade. Ou seja: cumprir a CF passou a exigir desculpas. Chegamos ao ponto em que cumprir a legalidade passou a ser um ato revolucionário, subversivo. Conceder HC – o remédio heroico - passou a ser motivo de vaia.

 

Nesse cenário de Pirro, parece que já não há novidade em afirmar que o modelo de delação premiada idealizada na lava jato faz água de há muito. Aos poucos, as absolvições começam a acontecer. Por uma razão simples: depoimento de delator, desacompanhado de prova concreta, nada vale. Por exemplo, o doleiro Alberto Youssef, hour concours no ramo delacional, em uma de suas delações – falo do caso da senadora Gleisi e do ex-ministro Paulo Bernardo (e poderia falar de tantos já julgados pelo STF em que ficou claro o limite do que diz um delator) – chega a dar quatro, sim, incríveis quatro versões sobre o que delatou. Isso também aparece – e por coincidência é o mesmo delator – em um caso envolvendo um senador. Afinal, o que é um fato? O que é um fenômeno? É possível relatar o mesmo fato de vários modos diferentes? Um delator pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa? Ou o delator tem a prerrogativa da pós-verdade só produz narrativas?

 

Sempre fico com uma pulga atrás da orelha quando um delator diz: entreguei 40 milhões (é um exemplo) para fulano. Eu penso: mas ninguém lhe pergunta como ele fez isso? Mandou um motoboy? Mandou para um banco? Mandou para o exterior? E se entregou em cash, como ele arrumou esse ervanário, se qualquer retirada de banco acima de dez mil exige burocracia? Enfim, criou-se um mundo de ficções.

 

Tenho insistido na tese (ver aqui) que devemos exigir evidências cientificas das decisões dos tribunais. E, por óbvio, também devemos exigir evidências empíricas dos delatores. Não basta dizer. Tem de demonstrar. E não basta apresentar uma agenda com siglas. Chega a ser patético que uma delação tenha como prova apenas siglas e sinais em uma agenda. Brincando, pode-se dizer que LSD pode ser droga como também Luciano Soares Dutra. Ou Logo Serei Delatado. Parece coisa do google: você coloca “cataratas do Iguaçu” e aparece “opero cataratas em clínica em Foz do Iguaçu”. Já se viu em várias delações que esses códigos não fecham. Por vezes, até fecham. Mas um relógio parado também acerta as horas duas vezes por dia. Processo penal não pode ser ficção. Necessita provar. Robustamente.

 

Já há suspeitas de chantagens até mesmo de advogados que estariam usando delações para pressionar e achacar “futuros” réus em troca de “mesadas” (ou taxa de proteção).

 

Para mim, presente qualquer tipo de suspeita em delatores, o que disseram fica subsumido na tese dos frutos da árvore envenenada. Isso sem falar de delatores usufruindo de benefícios sem processo. E da exclusão de advogados que não agrada(ra)m ao órgão negociador. Não tenho dúvida de que haverá o momento de um ajuste processual. O rio da história não pode ser exprimido por margens que põem a culpa na água corrente.

 

O óbvio deve ser dito. Só que o óbvio está no anonimato. Ele se esconde. É ladino. Do jeito que a coisa vai, esse “novo” modelo de processo penal 4.0 (baseado em delações e convicções), com ar condicionado, direção hidráulica e bancos de couro, poderá parar por falta de combustível. Ou será barrado por uma blitz constitucional. Depende dos guardas do STF. O modelo 4.0 já foi multado pela blitz no caso das conduções coercitivas.

 

O modelo baseado em delações e convicções pessoais, em que a prova é crença (há um livro defendendo isso e também consta em peças processuais) é autofágico. A menos que acreditemos na lenda do Barão de Münschausen que, atolado e afundando no pântano com seu cavalo, puxou-se a si mesmo pelos cabelos. Mutatis mutandis, é a delação premiada sem indicativos materiais. Ela é ficcional como a lenda do Barão. Inadmissível uma prova que exurge de si mesma. Não há prova autopoiética. Quer dizer, uma delação não se salva sustentando-se a si mesma pelos próprios depoimentos. [Transcrevi trechos. Leia mais. Releia para meditar]

 

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