Contra o ultracapitalismo, as velhas armas não servem
Corporações tornaram-se muito mais poderosas que Estados, e blindaram-se contra a democracia. A riqueza social é capturada na esfera financeira, um limite à luta sindical. Superar o sistema é mais urgente que nunca — mas por novos caminhos. O Capitalismo se desloca, livro mais recente de Ladislau Dowbor
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O capitalismo herdado do século passado é o capitalismo das nações. Claro, já somos um capitalismo mundial desde a revolução comercial do século XVI – ou pelo menos desde a fase imperialista dos séculos XIX e XX – e temos sucessivos estudos dessa progressiva globalização com Rudolf Hilferding, com Vladímir Lênin e, no pós-guerra, com a ampla visão de Samir Amin na sua magistral obra L’Accumulationàl’échellemondiale[A acumulação em escala mundial], além dos inúmeros estudos setoriais sobre as dimensões financeira, de commodities, cultural e assim por diante. Mas hoje podemos dizer que o capitalismo das nações está desaparecendo do mapa porque o processo decisório se deslocou para essa rede monstruosa e cheia de tentáculos que são os gigantes corporativos instalados dentro dos próprios governos nacionais – e pouco vinculados ao interesse das nações onde se instalam.
Na ausência de governo global, no sentido político de governo legítimo e representativo, o que temos é o poder do único sistema que funciona de forma organizada no espaço global, que são as corporações e, em particular, os gigantes financeiros acima das corporações produtivas. Nada disso é radicalmente novo, mas podemos dizer que, a partir dos anos 1980, e de forma mais acelerada ainda depois da crise de 2008, enfrentamos uma mudança qualitativa. Não se trata mais de corporações de um país controlando a política desse mesmo país, mas de grupos mundiais exercendo seu controle, de maneira articulada, sobre um conjunto de países simultaneamente, com capacidade de mudar as leis nacionais em função de interesses transnacionais.
Todas as grandes corporações têm conexões solidamente implantadas em paraísos fiscais, podendo movimentar os seus recursos sem nenhum controle da área pública, de governos eleitos. Mais ainda, com o descontrole dos fluxos financeiros internacionais, é a própria capacidade de cobrança de impostos e de canalização produtiva dos recursos pelos governos eleitos que se vê prejudicada. É muito característico a Apple ter pagado 0,05% em impostos sobre os seus imensos lucros na Europa em 2016. O especialista colombiano em relações internacionais José Antonio Ocampo resume de maneira clara:
A globalização tornou obsoleto o regime internacional de tributação das empresas. O esquema atual foi elaborado pelos países desenvolvidos no início do século XX, quando suas empresas, que dominavam o comércio mundial – então fundamentalmente de bens –, eram sociedades integradas que comercializavam com empresas radicadas em outros países ou colônias. Mas, hoje,quase a metade do comércio mundial ocorre entre matrizes e filiais de empresas transnacionais, o setor de serviçosrepresenta três quintos do PIB mundial, e os países em desenvolvimento produzem dois quintos desse produto, sendo suas grandes empresas também transnacionais1.
O que aparece na mídia econômica é a briga entre a União Europeia e os Estados Unidos, em torno dos impostos devidos pelas empresas, mas o que realmente importa é que isso reduz drasticamente a capacidade dos governos de promoverem o desenvolvimento por meio de investimentos em infraestrutura e em políticas sociais. Se não governamos os recursos que permitem financiar as políticas, que política estamos governando? O capitalismo em que a economia é planetária e a regulação é nacional simplesmente trava a capacidade dos governos de exercerem a sua principal função, que é a de equilibrar o desenvolvimento por meio de políticas econômicas. Políticas nacionais keynesianas no contexto de fluxos financeiras globais deixam, em grande parte, de funcionar. O longo prazo previsto por Keynes chegou.
De 2012 para 2013, o governo Dilma tentou reduzir os juros usurários que estavam estrangulando a economia em proveito do rentismo financeiro. O seu governo não durou. A partir de meados de 2013, teve início uma guerra política, midiática e jurídica. A classe média alta, com suas aplicações e seu rentismo fácil, não perdoou. O governo que resultou do golpe colocou dois bancos privados no controle dos recursos públicos; a desorganização econômica e política abriu caminho para oportunismos de extrema direita. Essa não é uma particularidade nossa. O governo estadunidense desembolsou trilhões de dólares para seus grandes bancos, a União Europeia desembolsou trilhões de euros. Ambos continuaram alimentando rentistas com a chamada flexibilização quantitativa (quantitative easing). Quem tentou escapar da armadilha financeira, como a Grécia, viu-se alvo de uma concentrada ofensiva. Em fevereiro de 2018, Trump deu um gigantesco presente ao mundo das corporações, ao reduzir os impostos de 35% para 20%. E isso enquanto os Estados Unidos estão afundando na desigualdade. São imagens recentes que apenas ilustram a transformação profunda que vivemos.