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30
Abr20

Causa mortis determinada: a prisão

Talis Andrade

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Da sarna à tuberculose, passando pelos surtos de sarampo e casos de meningite meningocócica, os cárceres – imundos, superlotados, com racionamento de água, sem assistência médica e falta de produtos de higiene e limpeza – são ambientes ideais para a propagação da Covid-19. Ademais, soma-se ao vírus novas camadas de opacidade no fluxo dos cadáveres

por Fábio Mallart e Fábio Araújo
 
 
_ _ _

9 de abril de 2015, unidade Paulo Roberto Rocha, complexo de Gericinó (RJ)

A Casa de Custódia Paulo Roberto Rocha foi construída para acautelar 750 detentos, porém na data da vistoria a lotação era de 1389 internos. (…) a Unidade apresenta um aspecto deplorável em suas dependências internas. Sujeira e calor misturam-se ao ambiente, que acumula lixo de todos os tipos, o que acarreta um mau cheiro peculiar e a proliferação de determinados insetos, como baratas, mosquitos, lacraias e percevejos. Não há médicos na unidade, apenas uma enfermeira e duas assistentes que atendem duas vezes por semana. Os presos informaram que a água é aberta 5 vezes ao dia, por cerca de 20 minutos, o que não é suficiente e fica claro quando cada cela possui em média 150 detentos. Um pedido urgente e uníssono dos presos é o da realização de dedetização. Muitos narraram que foi esta situação que originou um surto de sarna no presídio. Pôde-se observar que a maioria dos presidiários estava com feridas de tanto se coçar. Todos os detentos entrevistados reclamaram da falta de material higiênico e de limpeza (…).

9 de junho de 2015, unidade Ary Franco, Água Santa (RJ)

A área destinada à custódia dos presos é bastante claustrofóbica em razão da inclinação do relevo e falta de planejamento, o que dá a sensação de localizar-se no subterrâneo. A direção da unidade prisional informou que a capacidade total do estabelecimento é de 968 presos, no entanto, havia 2063 internos na unidade na data da vistoria. O acesso às galerias é feito através de escadas. As paredes, teto e chão, na medida em que se caminha em direção às celas vão ganhando um aspecto cada vez mais imundo com infiltrações, vazamentos, insetos, sujeira e teias de aranha. O estado geral das celas está distante de qualquer determinação da LEP ou de tratados internacionais. O acúmulo de lixo e muitas infiltrações tornam o ambiente além de sujo, muito úmido, o que é agravado pela superlotação. Os presos informaram que não passa água corrente pelo “boi” [banheiro] e que por isso a maior parte está entupida (…). É evidente que isso aumenta a insalubridade, proliferação de insetos, infecção e contágio – que se agravam pela não distribuição de material de limpeza já relatado. O ambiente sujo e úmido das celas colabora muito para a proliferação de doenças, especialmente respiratórias como a tuberculose.

Os fragmentos acima, retirados de relatórios produzidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, no âmbito de seu programa de monitoramento do sistema penitenciário, não refletem o que se passa somente nas cadeias supracitadas. Pelo contrário, espelham a dinâmica de funcionamento da realidade prisional brasileira, podendo ser transpostos para grande parte dos cárceres do país. Se de uma perspectiva sincrônica tais excertos ressoam em todos os estados da federação, ao posicioná-los na linha do tempo nota-se que antes e depois de 2015 os traços abomináveis que os caracterizam são contínuos.
Em 2011, o Subcomitê de Prevenção da Tortura das Nações Unidas, ao adentrar nas dependências do Presídio Ary Franco, já sublinhara que as celas eram escuras, sujas e infestadas de baratas e outros insetos. À época, o sistema de esgoto dos pisos superiores vazava pelo teto e pelas paredes, afetando as celas inferiores. Na cadeia subterrânea, na qual, em 2015, a defensoria observou que o ambiente superlotado, sujo e úmido facilitava a profileração de doenças respiratórias como a tuberculose, em 2011, tal como constatado pelo subcomitê, os presos sofriam com doenças de pele e do estômago. Recentemente, em março de 2020, em pleno cenário de disseminação da Covid-19, o presídio possuía 17 casos suspeitos de sarampo, doença com elevado potencial de transmissibilidade, ainda mais em espaços de aglomeração e de pouca ventilação como as prisões.
 

No caso da unidade Paulo Roberto Rocha, em que a acumulação de lixo acarretava o mau cheiro, assim como a multiplicação de baratas, lacraias e percevejos, à época da inspeção dos defensores, os presos já enfrentavam um surto de sarna, materializado nas feridas espalhadas em seus corpos – e isso, em meio à superlotação e ao racionamento de água. Ao passo que as prisões, ano após ano, permanecem inabitáveis, as doenças ganham força, se misturam, cedem espaço para outras enfermidades. Em abril de 2019, os presos da cadeia já não sofriam mais com a coceira insuportável provocada pela sarna, mas com o temor do adoecimento por meningite meningocócica que, inclusive, provocou ao menos um óbito confirmado, além de contágios suspeitos. Uma vez que, em geral, a transmissão se dá por contato de pessoa a pessoa, através de secreções nasofaringe e contato próximo e prolongado, torna-se evidente que a superlotação em espaços com pouca ventilação é propícia à propagação dessa e de outras doenças. Não é à toa que os casos de tuberculose nos cárceres do país aumentou significativamente nos últimos anos, chegando à marca de 10.765 em 2018, praticamente o dobro do que fora registrado em 2009 (5.656 casos).

São essas condições infames, inerentes à própria existência das prisões, que fazem com que os cárceres sejam espaços de morte, nos quais se desenrola um massacre lento, progressivo e silencioso. Em São Paulo, apenas para se ter uma ideia do volume de mortes por doenças, em 2014, foram contabilizados 482 óbitos – 450 classificados pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) como “mortes naturais”. Em 2017, de 532 mortos, 484 foram categorizados da mesma forma. Já no Rio de Janeiro, um levantamento feito pela Defensoria Pública demonstrou que, se em 1998, as prisões registraram 26 mortes por doenças, em 2017, o número saltou para 266, aumento de 923%. Dentro desse escopo, vale atentar para um recorte feito pela instituição acerca de 83 mortos entre 2014 e 2015. Conforme a análise dos laudos cadavéricos, 53 faleceram de tuberculose, pneumonias ou complicações decorrentes de infecções pulmonares. Ademais, 30 presos tinham caquexia (grau extremo de emagrecimento) e/ou desnutrição, o que aponta para a produção de um estado gradativo de decomposição – efeito de uma “política do definhamento”1.

Tal cenário, logicamente, ressoa em todo o país. Entre 2014 e 2017, 6.368 homens e mulheres morreram nas prisões, média superior a quatro mortos por dia. Desses óbitos, 3.670 casos, portanto, 57,6%, foram classificados pelas respectivas secretarias estaduais de administração penitenciária como “mortes naturais”. Além disso, constata-se que 472 óbitos sequer foram esclarecidos, sendo categorizados como “causa indeterminada” . (Continua

 
 
 
 

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