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05
Jun20

Caso Miguel: morte de menino 'joga álcool nas feridas' de filhos de empregadas domésticas

Talis Andrade

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Miguel Otávio Santana da Silva

 

por Vitor Tavares
Da BBC News Brasil em São Paulo

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Com 10 anos, Jéssica Cabral e a sua irmã, na época com 12, passavam semanas sozinhas em casa, no Grande Recife. O pai havia acabado de morrer e a mãe, empregada doméstica em um bairro nobre da capital pernambucana, só podia voltar para casa a cada 15 dias.

Quando recebia permissão para acompanhar a mãe no trabalho, Jéssica conta que vivia uma rotina de maus tratos e preconceito. "Não podia usar os mesmos copos ou talheres, não podia acessar áreas nobres da casa, só podia comer depois que a família comesse. Era como se fôssemos menores", lembra.

Em uma festa de Natal, Jéssica conta que chegou a ficar na escada do prédio, porque a patroa não queria sua presença no apartamento, e que só entrou para ficar no quartinho com a mãe após todos irem dormir. "O cachorro ficava no sofá, e eu só podia ficar no chão."

O caso do menino Miguel Otávio da Silva, que morreu no Recife após cair do 9º andar de um prédio de luxo, fez com que muitos filhos de empregadas domésticas usassem as redes sociais para protestar e relembrar momentos de discriminação que viveram nos trabalhos de suas mães.

Discriminação contra domésticas

"Jogou álcool na nossas feridas", contou Jéssica, hoje com 31 anos e estudante do curso de gestão da informação.

"Aqui no meu prédio, todo mundo continuou também com suas diaristas, só eu que dispensei a minha ajudante, mantendo pagamento. As pessoas não ligam", ressalta Cleccio.

Uma pesquisa do Instituto Locomotiva de abril divulgada pela BBC News Brasil mostra que 39% dos patrões dispensaram suas diaristas sem pagamento durante a pandemia. Nas classes A e B, esse número subia para 45%.

No início de março, a morte de uma diarista por covid-19 no Rio de Janeiro, a primeira vítima da doença no Estado, fez com que filhos de empregadas doméstica se juntassem num manifesto onde alertavam sobre as relações trabalhistas precárias para a categoria e a necessidade de medidas durante a quarentena.

Emancipação

Militante no movimento negro, a advogada Beatriz Mascarenhas, de 22 anos, está com dificuldade para dormir nos últimos dias. Acompanhar as notícias como o assassinato no menino João Pedro, no Rio de Janeiro, e os protestos nos EUA após a morte de George Floyd tem afetado a sua rotina.

A morte do menino Miguel foi mais um fator de angústia. "Mata um pouquinho cada um de nós, filhos e filhas dessas mulheres que carregam esse país nas costas há séculos. Estamos cansadas.", escreveu em sua conta no Twitter.

Mesmo com uma experiência positiva com os patrões "amorosos" de sua mãe, em Salvador, Beatriz resolveu se dedicar às relações trabalhistas da categoria na sua formação em direito na PUC de São Paulo.

"Essas trabalhadoras domésticas têm historicamente muito menos direitos do que outros trabalhadores urbanos, por causa dessa herança escravocrata na nossa sociedade. Muitas pessoas não enxergam naquele serviço a dignidade das pessoas", relata a advogada que fez o trabalho de conclusão de curso sobre o tema.

De acordo com sua pesquisa, a situação vem melhorando no Brasil nos últimos anos, principalmente devido a programas de inclusão nas universidades. "Esse processo muda o curso de uma família, é emancipação por meio do conhecimento", conta.

Mas, mesmo com avanços, Beatriz argumenta que os filhos das empregadas domésticas ainda são vistos como um "anexo" das mães no ambiente de trabalho. "Se consegue ter humanidade, trata o filho bem, como foi meu caso. Se enxerga uma pessoa menor, a criança também vai sofrer."

Após a formação de Beatriz em direito, a sua mãe, com 42 anos, também se formou na universidade, no curso de serviço social. Hoje, ela segue trabalhando como diarista.

A mãe de Cleccio, hoje com 64 anos, trabalhou como doméstica até os 60, quando se aposentou. No meio de caminho, recebeu acusações de roubo, mas também fez amizades pra vida com uma de suas patroas. "Há pessoas boas", ressalta o empresário.

Já a mãe de Jéssica, hoje com 68 anos, segue trabalhando para a mesma família, há 50 anos, no Recife. Só nas eleições de 2018, por divergências políticas, Jéssica decidiu que não ia mais frequentar a casa para ajudar ou ficar com a mãe.

"Toda a situação que vivemos criou traumas profundos na minha família", diz.

 

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