ASCENSO E MANO TEODÓSIO NO PARAÍSO
1
Em uma pequena casa uma rua humilde
o corpo de Ascenso
sobrava na cama de solteiro
armada na sala de estar
para esconder das visitas
a pobreza
do quarto de dormir
O corpo de Ascenso
a morte veio buscar
A morte veio devagar
triturando-lhe o coração
O coração de poeta
parte fraca
covardia machucar
O coração de poeta
desmanchado coração
derretido coração
pelas morenas de cabelos de trança
trançados amores os corpos trementes
enroscados no verde dos canaviais
gemendo lamentos de almas penadas
desencarnadas almas
dos quilombos destruídos
a ferro e fogo e berro
por Bernardo Vieira de Melo
2
Mano lembrava Ascenso
o corpo gigante desajeitado
esbarrando nas mesas
e amigos
Mano lembrava Ascenso
no sorriso de menino
no abraço apertado
e imenso
De Mano e Ascenso a luta
em diferentes fronts e
confrontos
Ascenso imaginárias escaramuças
cantadas nos folhetos populares
duelos de repentistas
brigas de feira e amor
emboscada de macacos
fuga de cangaceiros
enganadora busca
do Tempo de Antes
quando o trem corria
danado pra Catende
Mano o sofrimento
por compreender
querer levar aos escravos
a esperança
pelos campos de catequese dos camponeses
aos estudantes o ensinamento
da guerrilha de Che
nos aparelhos clandestinos
3
No fígado devorado pelas águias de asas azuladas
os adivinhos buscavam decifrar números nomes
revelados pelos presos no terror
no delírio dos corpos dilacerados
Estava Mano deitado no áspero chão
as mãos os pés amarrados
o jovem corpo nu
bonito de ver
apesar dos hematomas
apareceu a potestade maior
gritando
para os subordinados
eram uns frouxos
deixassem ele sozinho
que tirava o serviço
Expulsos os comparsas
fechou a porta da câmara escura
a pesada porta de bronze
que tudo veda e esconde
Serpenteando no chão frio cinzento
a potestade foi se aproximando
silenciosamente se aproximando
se achegando
e chegando mansamente
abocanhou o pênis de Mano
e mamou
mamou
e babou
como um frágil
inocente
bezerrinho
4
Mano conseguia fugir para os mais distantes recantos
correndo solto pelas ruas pelos campos
Vinham ao seu encontro os vultos de mulheres
que amou pelos verdes canaviais verdes gramados
brancas dunas macios leitos leitosas luas
Mano se transportava enlevado pelas estrelas
fachos que iluminam a noite e os bares de Olinda
Estava Mano deitado
os olhos vendados
as mãos os pés amarrados
os pensamentos na lonjura
na tontura
os músculos se retesaram
com o frio toque
o bote profissional
da cobra verde
Os músculos se retesaram
como acontecia na sessão de choques
os fios elétricos riscando com fogo a pele
Pela vez primeira Mano sentiu medo
O medo de ser castrado escureceu os olhos
Secos poços os olhos
As mãos
em carne viva
cavassem na rocha
os poços das lágrimas
As mãos reconquistassem a força
para quebrar as correntes
da verde cana caiana
Nas vascas da morte
o corpo desvencilhar-se da rede
dos reacionários
A rede de invisíveis e visíveis malhas
A rede dos terciários
que imobiliza os corpos
e enreda as almas
Deitado em leito de plumas
deitado em areias prateadas
despojado no cimento esponjoso
desmaiado no chão molhado
Mano ia e voltava do paraíso
Mano desfalecia e acordava
para beber uma cerveja
no inferno
5
Chegado o novo tempo
pactuado na anistia
gradual geral irrestrita
Mano sentiu-se deslocado isolado
no arraial da fama camaleônica
dos antigos camaradas
a dividir o poder
com os inimigos
No mudado tempo
Mano nada pediu
Não pousou de herói
não virou mito
não encenou o papel
de sobrevivente
Quis simplesmente o tento de ser
o Mano de sempre
6
Mano fazia política
por amor
um grande amor
à marginalizada gente
que ele liderava
nas barricadas e comícios
Mano fazia política
como Ascenso fazia poesia
por desvairada paixão
mal de raiz
Mano se misturava com o povo
com ternura de flor
pureza de irmão
A inocência de quem tem
dos poetas e dos santos
a pobreza o coração