Ascensão e queda de Didier Raoult: o “doutor cloroquina” vira livro na França
A revista L'Obs traz uma resenha do livro que conta a trajetória de ascensão e queda do "doutor cloroquina". © Fotomontagem RFI
"Uma loucura francesa"
A revista L’Obs desta semana traz uma longa reportagem sobre o livro “Raoult, une folie française” (“Raoult, uma loucura francesa”, em tradução livre), uma biografia do médico que ficou conhecido como o “doutor cloroquina”. O texto recém-lançado conta como o especialista em doenças infecciosas, dono de uma carreira de sucesso, virou uma celebridade e dividiu a opinião da comunidade científica mundial no início da pandemia de Covid-19, antes de ter suas teorias de combate ao coronavírus contestadas e se tornar alvo de queixas no Conselho da Ordem dos Médicos da França.
“Gênio para uns, trapaceiro para outros, quem é realmente Didier Raoult?”, pergunta a revista L’Obs. A resposta é parcialmente apresentada no livro, assinado pelas jornalistas Ariane Chemin et Marie-France Etchegoin. Elas contam em detalhes “a inacreditável história de um cientista que virou estrela”. O texto descreve o médico como uma mistura entre Indiana Jones e um sábio agarrado a um microscópio, que acabou se tornando um ídolo antissistema, antes de se tornar uma vítima de seu próprio ego.
O livro relata a trajetória pessoal e profissional de Raoult, desde sua infância no Senegal, ex-colônia francesa, até o momento em que se tornou diretor do Hospital Universitário de Marselha. Diagnosticado como superdotado ainda criança, com um QI de 180 – enquanto a média da população está abaixo de 110 –, ele era um péssimo aluno na escola. Mesmo assim, o jovem Raoult seguiu os passos do pai e se tornou médico, antes de migrar para o mundo da pesquisa em microbiologia. Rapidamente, ele se tornou uma “sumidade em sua área”, multiplicando descobertas, ganhando prêmios, e até erradicando epidemias, conta a L’Obs. Em 1997, por exemplo, Raoult conseguiu controlar em apenas três meses um surto de tifo que dizimava a população do Burundi, na época em plena guerra civil.
Reproduzindo trechos do livro, a revista conta como, em 2003, Raoult chegou a alertar sobre o risco de uma pandemia de proporções mundiais. Em um relatório entregue ao Ministério da Saúde, o médico chamava a atenção para os riscos da concentração demográfica e previa a difusão rápida de “um vírus transmitido por via respiratória”. Premonitório, o microbiologista antecipava, nesse mesmo relatório, que “a gestão das doenças infecciosas pode colocar em questão as liberdades individuais, com isolamento necessário para evitar a contaminação”. Dizia ainda que a França não estaria preparada para enfrentar essas novas doenças contagiosas.
Em 2020, a Covid-19 tomou conta do planeta, confirmando algumas previsões de Raoult. Mas o médico subestima o surto, afirmando ter encontrado um remédio milagroso: a cloroquina. Raoult acreditava tanto em sua hipótese de cura com essa substância que chegou a dizer que essa seria provavelmente a infecção respiratória mais fácil de ser tratada na história.
"Visionário destruído pelo próprio ego"
O protocolo à base de hidroxicloroquina e “a esperança em torno desta suposta ‘poção mágica’ suscitam uma Raoultmania”, lembra a revista. Mas rapidamente surgem as polêmicas sobre a fiabilidade dos estudos clínicos feitos pelas equipes do médico e sobre a eficácia do tratamento.
Segundo a reportagem, o livro deixa a impressão de que Raoult é, acima de tudo, “um visionário destruído por seu próprio ego” e que perdeu as estribeiras no momento em que a glória batia à sua porta.
“Em 5 de junho de 2020, as conclusões de um vasto estudo britânico confirmam que o tratamento de Raoult não funcionava”, recorda a L’Obs. Resultado: não apenas a França adotou um protocolo de vacinação e aboliu, como boa parte do mundo, a hidroxicloroquina, como “a Raoultmania virou coisa do passado”.