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23
Abr23

As crianças Munduruku que não brincam e podem estar contaminadas por mercúrio

Talis Andrade
 
Maria Leusa coordena a Associação de Mulheres Wakaborun e é ameaçada de morte por empresários do garimpo e garimpeiros devido à resistência aos invasores

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Isaías, de 11 anos, não anda, não fala e é carregado no colo pelo pai, que esculpiu em madeira uma poltrona para suprir a falta de cadeira de rodas. Os irmãos Hélio, 12, Vandir, 8, e Juliana, 5, também não andam, nem falam. Seus braços e pernas são atrofiados, e os joelhos estão inchados e com arranhões de tanto se arrastarem no chão.

Médicos, agentes de saúde e familiares buscam há anos explicação para um fenômeno que faz das aldeias habitadas pelos indígenas do povo Munduruku, na divisa entre Pará e Mato Grosso, as que mais solicitam cadeira de rodas na comparação com outras terras indígenas. Além de crianças nascidas com malformações e atrasos no desenvolvimento, adultos estão cegos e relatam tremores e fraqueza.

Valdenilson Oyoy construiu um suporte para o filho, Isaías, enquanto aguarda o envio de uma cadeira de rodas pela Sesai

 

A principal suspeita é que eles estejam sofrendo as consequências da contaminação pelo mercúrio. Com população estimada em 14 mil pessoas, os Munduruku vivem em um território invadido ilegalmente pelo garimpo de ouro desde a década de 1980. A sanha pelo minério explodiu a partir de 2016 e não encontrou resistência do governo federal na gestão de Jair Bolsonaro. Com isso, aumentou também o consumo de mercúrio, que é usado para separar o ouro de impurezas, mas descartado sem qualquer preocupação ambiental.

“A cabeça das crianças está ficando mole e as mãos assim [retorcidas]”, afirma o cacique José Edilson Akay, da aldeia Nova Trairão, dobrando os dedos da mão direita. “Cabeça mole é criança doente por mercúrio. A gente fica com medo”, explica outro cacique, Luciano Saw, da aldeia Patawazal.

Leia também: 
Exclusivo: Apple, Google, Microsoft e Amazon usaram ouro ilegal de terras indígenas brasileiras

Quem está por trás do lobby pelo garimpo ilegal de ouro nas terras dos Munduruku

Hélio, Vandir e Juliana nasceram com malformação congênita. Juliana tem dificuldade para sustentar o pescoço, Vandir tem os dedos da mão contraídos e Hélio, os pés atrofiados

 

A contaminação por mercúrio ocorre principalmente pelo consumo de peixes, base da alimentação do povo Munduruku. O metal é despejado em rios e no solo pelo garimpo, ou então é queimado e evaporado durante o processo de separação do ouro, retornando por meio de chuvas. Nas mulheres grávidas, o mercúrio ultrapassa a placenta e contamina o feto em desenvolvimento até sete vezes mais do que as outras pessoas, causando danos irreversíveis.

“Por que esse fenômeno está acontecendo com tanta intensidade e frequência aqui na região do rio Tapajós?”, questiona o médico e pesquisador da Fiocruz Paulo Basta. “Está mais evidente do que nunca que a presença do garimpo no território tem provocado alterações importantes na saúde da população”, diz ele, que coordena um estudo sobre os efeitos do mercúrio em mulheres Munduruku grávidas e em seus filhos. A equipe vai monitorar gestantes e bebês por três anos, acompanhando ao todo 250 recém-nascidos de dez aldeias diferentes.

O tempo dos Munduruku, contudo, é mais urgente que o tempo da ciência. Eles não podem esperar enquanto suas crianças adoecem com a exploração de ouro. O território é o segundo mais afetado pelo garimpo ilegal no Brasil, atrás apenas da Terra Indígena Kayapó e à frente do território Yanomami.

 

A Repórter Brasil recebeu autorização de lideranças Munduruku, durante encontro da Associação de Mulheres Wakaborun, em março, para visitar cinco aldeias do Alto Tapajós e entrevistar indígenas adoecidos e seus familiares. O nome das crianças foi alterado para preservar suas identidades.

Por uma semana, a reportagem percorreu os rios Kabitutu, Kadiriri e Tapajós acompanhada de caciques e guerreiros do povo Munduruku – ameaçados de morte pelos garimpeiros por resistirem à exploração. A cada desembarque, chamou atenção o número de pessoas com problemas motoras ou neurológicas em pequenas aldeias, como Karo Muybu, Jardim Kaburuá, Curimã, Pombal e Saw Bimuybu.

Daniel Karu (no alto), de 5 anos, é mudo. Diogo Poxo (acima), 8, também não fala, nem consegue escrever na escola. Quando tenta brincar, cai no chão

 

“É a primeira vez que uma equipe de reportagem vem aqui”, disse o agente indígena de saúde Amarildo Kaba, da aldeia Jardim Kaburuá. O próprio Amarildo sente dores que se assemelham às características da contaminação por mercúrio. “Muita cãibra nas pernas, fui ficando sem força, passou um tempo comecei a amolecer. Não descobri o que é até hoje”.

Os sintomas são semelhantes aos narrados por Josiel Poxo a respeito do filho, Diogo Poxo, 8 anos. “Ele começou a chorar e não levantou mais. Ficava contraindo as mãos e a perna foi afinando. Não conseguia brincar”, recorda o pai. O menino chegou a ficar três meses deitado o dia inteiro, mas voltou a andar. “Só que ele não consegue escrever na escola e não consegue falar. Hoje, ele até brinca, mas cai”, descreve Josiel.

Na mesma aldeia, Rosita Tawe diz que o filho, Daniel Karo, de 5 anos, não fala nada. “Tem alguma coisa na garganta que deixa ele assim”. O menino já foi atendido por um médico, mas a mãe não sabe o que provoca a mudez.

As traduções das entrevistas são feitas pelas jovens de coletivos audiovisuais Wakabourun e Daok, de diferentes regiões da Mundurukânia – como eles se referem ao território formado pelas Terras Indígenas (TIs) Sai Cinza, Munduruku, Sawre Muybu, Sawre Bap´in. Praia do Índio e Praia do Mangue no vale do rio Tapajós, que se estende do norte do Mato Grosso ao Pará.

As jovens são o braço armado – com câmeras, celulares e drones – da resistência ao garimpo. Estão produzindo um documentário sobre a contaminação por mercúrio cujo título é “Awaydip Tip Imutaxipi”, ou “A floresta doente”, em português. Não há síntese melhor.

Jovens dos coletivos audiovisuais Wakaborun e Daok denunciam a invasão do território com câmeras, celulares e drones. Estão produzindo documentário sobre a contaminação por mercúrio
 

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