Abortos, abandono e crianças sem pai

Registro de uma das crianças em Três Lagoas. Não se sabe, ao certo, quantas foram fruto da prostituição; cidade, no entanto, registrou uma explosão no número de nascimentos na época das obras. Foto Jean Pavão para o Intercept Brasil
IV - OS FILHOS ESQUECIDOS DE ITAIPU
A FAMÍLIA DE JÚLIA DOS SANTOS foi impactada pela instalação dos prostíbulos no bairro Três Lagoas, ao lado da área rural onde ela nasceu e se criou. Da janela de casa, a menina via tudo acontecer.
“Na época não existia preservativo, então era muita criança”, conta Júlia. Apesar do zelo ao fichar e recolher as taxas das trabalhadoras do sexo, o estado era menos eficiente ao garantir métodos contraceptivos para elas. É difícil precisar o número exato de crianças nascidas das relações dos barrageiros com as prostitutas. Mas, de concreto, há 12.115 nascimentos registrados sem o nome do pai em apenas duas décadas de influência direta de Itaipu na demografia de Foz do Iguaçu.
A gravidez indesejada impunha uma decisão difícil. “A gente não sabe se era aborto espontâneo ou forçado, mas tinha muito aborto”, disse Santos. As mulheres que levavam a gestação adiante davam à luz na Maternidade Iguaçu ou no Hospital São Vicente de Paula. “Muitas tinham o parto em casa mesmo [no bordel]”. O destino dos bebês era variado. “Tinham crianças que as mães pagavam pensão para cuidar, outras davam, outras iam embora”, revela a ex-gerente de boate Dalva Pereira.
Eram tantos bebês que as famílias do entorno da zona do meretrício faziam um esforço coletivo para cuidar dos recém-nascidos. “Minha mãe chegou a acolher mais de 30 crianças, filhos das prostitutas”, lembra Júlia dos Santos. “Elas não podiam cuidar, porque tinham que trabalhar à noite, então eu me obrigava a cuidar”, confirma Maria Florinda dos Santos, hoje com 84 anos, então vizinha da zona.
Maria era a benzedeira do bairro e passou a fazer também o papel de mãezona ao acolher os filhos das trabalhadoras do sexo. Outras vizinhas fizeram o mesmo. “Não só a minha mãe, a Alice*, dona de uma boate, também criou muita criança. Tem a minha comadre Tereza também, que criou essas crianças”, lembra Santos. Alice, cujo nome real não será divulgado, foi proprietária da boate Carinho da Noite, uma das mais badaladas da fronteira, que só encerrou as atividades em 2018.

Maria Florinda dos Santos (à esquerda) chegou a acolher mais de 30 crianças que orbitavam os arredores de sua casa, vizinha da zona. Sua filha, Júlia (à direita) observava tudo. Foto Jean Pavão para o Intercept Brasil
Os donos de bordéis costumavam dispensar a mulher que engravidasse ou exigiam o aborto. Alice fazia diferente. Mantinha a garota na boate durante a gestação como faxineira ou cozinheira e assumia a responsabilidade de criar o recém-nascido. Montou uma casa num bairro a cinco quilômetros de distância, o Parque Imperatriz, para acolher essas crianças e destacou uma de suas funcionárias para cuidar. Ao todo, afirma que adotou 44 crianças – oito delas registradas em seu nome.
Por duas vezes, Alice se recusou a receber o Intercept na porta de sua casa, onde funcionava a boate. Neusa, a “segunda mãe”, a funcionária que trocou as fraldas e cuidou das crianças, explicou a razão: preconceito e perseguição. Também receosa, Neusa relutou a entrar no assunto e falou em meias palavras. Não foi fácil adaptar-se à vizinhança tendo a um só tempo até 38 filhos de prostitutas na mesma casa. Todo o peso da discriminação recaía sobre eles a ponto de quase ir parar na televisão. Eram meados dos anos 1990, Neusa não soube precisar o ano, quando um juiz bateu à porta, acompanhado de um cinegrafista e de um repórter.
Vizinhos haviam feito denúncia de maus-tratos. Mas, depois da vistoria e dos esclarecimentos, o juiz foi só elogios, segundo relato da cuidadora. As mais de 40 crianças cresceram com o estigma pelo modo como foram concebidas e pelo perfil socialmente negativo de quem as gerou. Incontáveis vezes, Neusa teve de ir à escola socorrer um dos seus, vítima de intolerância.
“Só porque é filho de prostituta não tem direito de viver?”, questiona. Não é sem motivo que Alice prefere o silêncio. Evita abrir as feridas do preconceito agora que os filhos são adultos. Prefere preservá-los, pois entre eles, diz Neusa, há servidor público graduado, chefe de cozinha, empresário, garçom e professora. “Todos estão encaminhados, nenhum virou bandido”, orgulha-se.
Segundo ela, havia homens cientes da gravidez. “Muitos até ajudaram essas meninas, muitos não quiseram ajudar nem conhecer. Quanta criança que tem nesse mundo que não sabe quem é o pai e às vezes pode tá conversando com ele? Quantas mães às vezes estão do lado do filho e não sabe por que ela doou o filho?”, questiona. Dá para imaginar quantas? “Ah, foram muitas. Muitas nasceram, muitas morreram, muitas foram abortadas. Era a lei da época. Porque, para a boate, a mulher tem que ser bonita, e a gravidez não deixa a mulher bonita”. (Continua)