A engenheira civil Josi Beatriz Viegas Cunha, servidora do Estado há vinte anos, hoje trabalha na Secretaria de Obras /Foto Ivan Pereira/Sintergs
Curitiba e Joinville elegeram suas primeiras vereadoras negras. No Rio de Janeiro a negra Benedita da Silva perdeu a eleição para prefeita. No Rio Grande do Sul 3 por cento dos servidores negros possuem nível superior
Jornal Já - Pesquisa realizada pela PUCRS com associados do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Rio Grande do Sul (Sintergs) mostra que apenas 3% dos funcionários públicos com graduação são pretos. Entre os 366 participantes, 5,7% são pardos e 0,3%, indígenas. Brancos chegam a 91%. Os dados fazem parte de estudo realizado em 2020 e serviram de base para a cartilha lançada pelo Sintergs em outubro.
A baixa representatividade de negros no serviço público, especialmente em cargos de nível superior, demonstra a dificuldade de acesso à educação de qualidade. Angela Antunes, diretora do Sintergs, frisa a importância de questionar a desigualdade e assumir que há privilégios em ser branco, como primeiro passo para uma mudança.
“Entender a necessidade das cotas, da dívida histórica do Brasil com os afrodescendentes e indígenas e desmitificar a meritocracia, como se todos tivessem acesso às mesmas condições, é fundamental”, avalia Angela. Ela lembra que o Dia Nacional da Consciência Negra tem sua raiz em solo gaúcho, no Grupo Palmares, em Oliveira Silveira, Antonio Carlos Côrtes e outros militantes negros e negras. “Que o 20 de novembro conscientize também a branquitude”, apela.
Educação contra racismo
Abidemi significa “aquela que chegou antes”. O nome que rebatizou Josi Beatriz Viegas Cunha no batuque traduz o sentido que ela tem para sua comunidade. Mulher preta forte e pioneira, abriu caminhos para si pela educação. Mas revela que não cresceu sozinha – teve a força de sua ancestralidade e o apoio de pai, mãe e irmãs. As guias no pescoço e o dread nos cabelos há 21 anos são marcas de Josi. Mais do que mudar paradigmas, ela diz que carrega suas referências como forma de assumir seu estilo e sua crença na religião afrobrasileira.
Formada em Engenharia Civil pela PUCRS como aluna destaque da turma de 1993, é servidora estadual há 20 anos. Começou sua trajetória na Secretaria de Educação e hoje trabalha na Secretaria de Obras. Desde que ingressou no serviço público, ela tem consciência de seu papel para ajudar a melhorar a vida das pessoas. “O posto de saúde vai para a comunidade preta, a escola estadual vai para a comunidade preta”, conta, motivada pelo trabalho que realiza.
Na carreira, os desafios são grandes. “Minha posição não é de inferioridade, mas estou atrás até de quem entrou agora. Vejo que colegas brancas que fizeram faculdade já chegam em patamar superior, mesmo eu ganhando financeiramente mais, elas têm mais acesso. Tive de ser melhor do que homem branco e que mulher branca, ser a melhor das melhores, pois, além de ser mulher, sou preta”, explica.
“Às vezes, olham pra mim e dizem que as cotas não são necessárias: se tu conseguiste, outros também conseguem. Mas um dos meus anjos, homem preto que conseguiu meu primeiro estágio, não se formou. Faltou suporte familiar e econômico. Meus pais abriram mão de conquistas para eu me formar, eu abri mão. Meu pilar era de madeira, não era de concreto. Não havia estrutura, por isso a necessidade de reparação.”
É noite. Sinto que é noite/ não porque a treva descesse/ (bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/ no fundo de mim, o grito/ se calou, fez-se desânimo//
Sinto que nós somos noite/ que palpitamos no escuro/ e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/ E de que adianta uma lâmpada?/ E de que adianta uma voz?…
Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo (1943-45)
Nós, humanos, nos acostumamos com tudo. Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.
Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.
Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.
Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.
Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.
Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.
Tolerantes, mas nem tanto
Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais. Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no antigo programa Praça da Alegria.
Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladas fiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.
Também achamos normal que o melhor presidente que o país já teve tenha sido preso – por que, mesmo? Ah, um pedalinho num sítio em Atibaia. Ah, um apartamento no Guarujá, calma lá!
Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…
Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.
Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.
Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de Monteiro Lobato.
Então, em 2018…
… naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fake news contra ele e sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista! Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.
Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.
E os que não têm pão? Que comam bolo…
E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.
Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. Os R$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua. Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?
Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936:
Viva la muerte!
P.S. Uma pergunta, para terminar: por que o Queiroz depositou 89 mil na conta de Michele Bolsonaro?
III -'Atuação policial contra negros chegou ao limite da irracionalidade', diz reitor da faculdade Zumbi dos Palmares
Leandro Machado entrevista José Vicente
BBC News Brasil - Dentro da própria estrutura do Estado há poucos negros em quadros de direção, não?
Vicente - Exato. Se pegarmos a extrema-direita conservadora, que é excludente por natureza e hoje governa o país, não há negros no primeiro, no segundo nem no terceiro escalões. Não há negros nos cargos comissionados, nas subsidiárias, nas estatais.
Mas se você vier para a cidade de São Paulo, por exemplo, governada pelo PSDB de centro-esquerda, também não há negros nos primeiros escalões — e isso porque estamos em uma cidade diversa.
Não temos um governador negro no Brasil.
Mesmo na esquerda, com Lula na presidência ou Fernando Haddad em São Paulo, não teve negros também — quando muito, havia um só.
Nas estruturas partidárias também não há negros em cargos de direção. O mesmo com o Judiciário e no Ministério Público.
BBC News Brasil - Nas varas de justiça criminal, pelo menos em São Paulo, também é muito difícil encontrar juízes negros.
Vicente - Por outro lado, a grande maioria dos presos no Brasil é negra. É esse racismo e essa discriminação sinuosa que todo mundo nega.
BBC News Brasil - Hoje a população negra tem mais acesso a cursos superiores por causa de programas como as cotas e o Prouni. Mas uma das questões que se coloca é o acesso à pós-graduação e à pesquisa científica. Como o sr. enxerga hoje esse setor?
Vicente - São duas coisas: para fazer pesquisa, a pessoa precisa ter meios de sustentação, insumos financeiros. Quem tem esses recursos é de classe média para cima.
O negro, mesmo aquele que chega à universidade, continua na periferia, com todos os limites e dificuldade. Quando se forma, ele vai fazer uma pós-graduação ou vai precisar arrumar um emprego para sustentar a família? A grande maioria vai atrás de emprego.
Quem continua tem muita dificuldade de conseguir bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por exemplo. Na estrutura da Capes não há negros. Quem acessa os recursos são aqueles que integram esse grupo, por ser branco ou de classe média.
Quando há uma política pública, como as cotas na pós-graduação, elas não são implementadas integralmente ou acabam revogadas, como fez o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub (a medida de Weintraub acabaria revogada dias depois). O governo mostrou um grau ostensivo de oposição à política pública. O que ele quis dizer foi: 'eu não quero que esse público acesse o benefício'.
BBC News Brasil - Como o sr. avalia as recentes expulsões de estudantes que fraudaram as cotas raciais em universidades públicas?
Vicente - É um lampejo de esperança no sentido de garantir que a lei seja cumprida. Ela é uma lei de inclusão racial para negros, precisa ser cumprida. Qualquer um que atentar contra a legislação tem de ser punido, pois cometeu um crime.
O que assistimos até agora são pessoas loiras e de olho azul entrando em cotas para pessoas negras. Até então, não havia coragem por parte das universidades de se tomar uma medida contra essas fraudes.
BBC News Brasil - A lei sobre o ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira nas escolas, de 2003, está sendo cumprida?
Vicente - Ela não é cumprida nem sob a ordem do Exército, da Marinha e da Aeronáutica… (risos).
Mais de 15 anos depois da aprovação, 80% das escolas públicas e privadas não cumprem a lei. E não acontece nada com o gestor da escola, com o secretário de Educação, com prefeito nem com o governador.
Não há qualquer fiscalização ou cobrança por parte dos órgãos de controle, como Ministério Público Federal, Defensoria, Assembleias ou Câmaras Legislativas.
Você até consegue construir um marco legal com muito esforço político, mas o próprio Estado não cumpre.
BBC News Brasil - Como a opinião do o sr. sobre o governo Bolsonaro nas questões raciais, enfrentamento ao racismo e políticas públicas para a população negra?
Vicente - O governo Bolsonaro não tem qualquer ação nessa área. Pelo contrário, o pouco que existe tem sido destruído ou desfigurado, seja por medidas administrativas, como decretos, seja com cortes no orçamento.
A própria Fundação Cultural Palmares, que é um organismo que implementa e reconhece os territórios quilombolas, neste ano terá o menor orçamento dos últimos anos. Hoje, os quilombolas e os indígenas estão morrendo por covid-19. O que o governo fez? Cortou o envio de água potável e equipamentos de higiene para essa população.
Eu digo que a senha do comportamento do governo nessa área já estava clara antes da eleição, quando Bolsonaro afirmou que os quilombolas pesavam 'sete arrobas' e que 'não serviam nem para reprodução'. Já o vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou (durante a campanha eleitoral de 2018) que um dos grandes problemas do país era a 'indolência dos índios' e a 'malandragem dos negros'.
Ou seja, eles vieram a público para transgredir e violar a respeitabilidade do cidadão brasileiro negro. É uma violência e uma agressividade.
BBC News Brasil - Como o sr. vê a presença do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo?
Vicente - Ele é o que se chama de boi de piranha. Não tem muito o que comentar.
A bem da verdade, todos os governos agem dessa forma. Por exemplo, eles criam um 'conselho do negro' e colocam um negro nesse órgão. Aí, toda vez que alguém leva uma reivindicação, o governo responde: 'olha, temos aqui um espaço só para o negro, temos até um negro na direção'.
Mas, quando você pega o orçamento desse órgão, dá para pagar só o cafezinho.
Pelo menos, nesse sentido Bolsonaro é franco e honesto. Ele diz: 'não gosto de vocês mesmo, não tenho nada a ver com isso, é tudo vitimização, mimimi, todos são iguais e que vença o melhor'
BBC News Brasil - Como surgiu a Universidade Zumbi dos Palmares?
Vicente - Vivíamos o período posterior à Constituição de 1988, que criou o crime racial. Os princípios das nossa nação passaram a repudiar o racismo, dizendo que a igualdade racial era o objetivo. Pensamos: 'agora vai'. Mas essa igualdade nunca chegou.
Naquela época, os negros eram 3% dos alunos no ensino superior. A USP tinha quatro professores negros. A polícia e esquadrões da morte faziam um estrago na juventude negra.
Nós éramos estudantes universitários negros, todos oriundos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Nossos professores diziam que o jovem precisa ter ambição para intervir na sociedade e mudar seu entorno.
Nos deixamos tomar por essas cantilenas. No TCC, nosso grupo conheceu as universidade negras americanas. Fui aos Estados Unidos, a convite da embaixada, para conhecer algumas delas. Fui à Universidade de Howard, em Washington.
Na hora que vi a universidade, e conheci as personalidades que passaram por ela, fiquei embasbacado. Pensei: 'vamos criar uma coisa assim no Brasil'.
Claro que sempre vem aquela pergunta: 'e quanto você tem no bolso para fazer isso?' Eu tinha um vale-transporte... (risos)
No final do curso, uma meia-dúzia topou construir o projeto, em 1998. A universidade surgiu de uma forma romântica, artesanal… Era uma ideia na cabeça, uma sola de sapato meio gasta e muita lábia para construir uma universidade negra no Brasil. Imagina você que maluquice… Abrimos as portas em 2004 e eis que estamos aqui até hoje.
Nossa experiência mostra que é fácil resolver a questão do negro no Brasil. Se com um vale-transporte nós construímos uma universidade, imagina se a sociedade e os governos colocassem a questão racial como uma prioridade.
Ao mesmo tempo, nós somos a única universidade negra na América do Sul, quando deveria existir pelo menos uma em cada capital.
Acho que a Universidade Zumbi dos Palmares mostra que existem meios de resolver esses problemas, pois definimos a força e resiliência dos negros brasileiros de construir pontes e caminhos alternativos.
Os meninos do curso de Direito aqui da Zumbi passam na prova da OAB como os da USP. Ou seja, se você colocar condições mais ou menos equilibradas, todos têm talentos e habilidades para se transformar em grandes pessoas e grandes profissionais. Nosso país abre mão disso, joga as pessoas na lata de lixo. Todos perdem quando o racismo cria essas barreiras.
BBC News Brasil - O sr. é esperançoso de que esse cenário possa mudar?
Vicente - Acredito nessa juventude de hoje. E passei a acreditar mais nela, pois as ferramentas tecnológicas possibilitam algo que eu não tinha na minha época: a capacidade de construir redes, de poder falar. Um dos limites para nós era não ter um canal de fala, não ter interlocução.
Esses caras de agora estão dizendo na lata, eles têm canal no Youtube, têm Instagram. Hoje, há uma juventude negra muito qualificada. E ela está falando, publicizando e construindo redes.
Mesmo a sociedade racista e elitizada não vai conseguir ludibriá-los, como ocorria muitas vezes com minha geração. Antes, a elite falava em meritocracia ou manutenção do status quo. Dizia: 'a situação vai melhorar quando o bolo crescer, daí a gente pode dividi-lo com vocês'. Muita gente acreditava nesse discurso.
Mas com essa juventude de hoje esse papo não cola mais.
Em entrevista ao Migalhas, o reitor José Vicente conta que já sentiu de perto o preconceito ao longo de sua trajetória no Direito
Uma pesquisa de perfil demográfico dos magistrados brasileiros do CNJ mostrou que o número de magistrados negros e negras na Justiça é baixíssimo: na Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, por exemplo, a quantidade de juízes negros não passa de 1% em cada ramo. Já o número de magistrados brancos, ocupa a maior faixa entre os perfis "amarelo", "pardo", "preto" e "branco".
No mesmo sentido, a pesquisa nacional da AMB de 2018 mostrou o baixíssimo acesso de pessoas negras nos concursos para a magistratura. De 1.941 entrevistados que prestaram concurso para a magistratura estadual, em 1º grau, apenas 12 pessoas foram aprovadas para vagas destinadas às pessoas negras, o que representa 0,6%.
Racismo estrutural
Diante do cenário preocupante da baixa representatividade, Migalhas conversou com José Vicente, advogado e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares. O empresário conta sua trajetória no mundo jurídico e relata as dificuldades: "Negros restam apagados e invisibilizados em toda a estrutura do poder Judiciário. Nós não temos juízes, desembargadores, negros nos Tribunais Superiores", disse.
José Vicente conta que, ao longo de sua trajetória profissional do Direito, já sentiu várias manifestações preconceituosas: "Não foram poucas as vezes que senti os olhares e questionamentos de desconfiança, bem como o tratamento desconsiderado nos mais diversos ambientes. Ninguém fala, ninguém se manifesta, mas o olhar e o gesto são sempre denunciadores", relatou.
Quando questionado sobre a discriminação em condenações, justamente pela falta de negros na magistratura, José Vicente afirmou que a estrutura contribui, sim, para entrega de Justiça de forma "contaminada". Para ele, o racismo no poder Judiciário gera no negro uma sensação frustração e dúvida em relação à imparcialidade e legitimidade das decisões.
Acerca dos avanços sobre o tema, José Vicente destacou o lançamento, pelo CNJ, de grupo de trabalho para propor políticas judiciárias de combate ao racismo institucional no Poder Judiciário. O grupo atuará para encontrar soluções para o racismo na forma de políticas públicas, bem como na elaboração de diagnósticos que resultem em propostas de aprimoramento da legislação e outros normativos institucionais.
"Nós queremos que os operadores de Justiça possam ter muito mais pluralidade e diversidade, e possam ter muitos jovens negros participando das suas estruturas e colaborando para construir uma Justiça que seja plural, diversa e que respeite e valorize a integridade da qual ela própria se constuti, que é a miscigenação de negros e brancos do povo brasileiro", finalizou.
Como se sentem os generais, na condição de integrantes e esteio de um governo que treme porque um miliciano foi encontrado?
por Janio de Freitas
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Uma presença velada na turbulência trazida pela prisão de Fabrício Queiroz ficou, entre os atingidos, com a perda mais perturbadora. Como se sentem os generais, ainda fardados ou não, na condição de integrantes e esteio de um governo que treme porque um miliciano foi encontrado em seu esconderijo? Podem ser sensações insondáveis ou enganosas, imutáveis ou indiferentes. São efeitos pessoais. Mas nos níveis de responsabilidade pelas Forças Armadas, em especial no Exército, a questão ferve. Os reflexos do vínculo de militares com Bolsonaro e associados estão agravados em seus efeitos, externos e internos, sobre a instituição. Mais: em vésperas de piora.
O Exército exposto a investigação por indícios de superfaturamento em compra, volumosa e sem licitação, de substâncias para fabricar cloroquina, é mais um custo moral, e talvez penal, a pagar por serviço a Bolsonaro, e não ao país e à ciência. E tão elevado quanto justificado pela constatação, devida ao procurador Lucas Furtado, de compra com preço seis vezes acima do valor já corrigido por efeito do coronavírus e do dólar.
Não é tudo, porém. Abrindo-se outra linha de estranheza, a obstinação de Bolsonaro pelo uso de cloroquina e hidroxicloroquina em larga escala, contra a pandemia, tem um precedente obscuro: a sua campanha, quando deputado, pela adoção da pretensa “pílula do câncer”, que pesquisas mostravam ser ineficaz. Bolsonaro teve um ativo parceiro nessa empreitada suspeita: Frederick Wassef —o advogado da família Bolsonaro, íntimo dos palácios da Alvorada e do Planalto no atual governo, hospedeiro dissimulado do desaparecido Queiroz e, claro, entusiasta do novo interesse farmacêutico do seu principal cliente e amigo. Além do mais.
Outro elo com a (quase) misteriosa atração exercida pela cloroquina, o também general e ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, já informou que o seu ministério se lançará em distribuição nacional das duas substâncias. Para gestantes e crianças. Cortar o mal pela raiz, vê-se, com o anunciado “uso preventivo”. No mesmo dia dessa informação valiosa em mais de um sentido, Donald Trump revogou o uso de ambas as drogas contra o coronavírus.
Em contraste com o trêmulo bolsonarismo oficial, por três momentos o Supremo Tribunal Federal trouxe de volta a ideia de uma corte digna e confiável, na sua função de trincheira última das conquistas inscritas na Constituição. Já no futuro próximo, tal função será convocada várias vezes. O monturo de sujeira que sustenta a organização do neofascismo bolsonarista, as atividades de Fabrício Queiroz e próximos, inclusive um assassinato em que foi comparsa do recém-eliminado Adriano da Nóbrega; as práticas de Flávio Bolsonaro, do próprio Jair como presidente, deputado e pessoa física, além das ilegalidades políticas e administrativas —isso e muito mais já põe e manterá o Supremo sob interrogação.
Sem apoio decidido, as respostas do tribunal estarão sujeitas à acomodação posta em moda e, está demonstrado, contribuinte para a situação sempre mais problemática. A dubiedade de Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Dias Toffoli, e outros dificulta a defesa do STF, da democracia e da Constituição. Se assim for ainda, cada um por si para estar com os outros pela democracia, porque Bolsonaro tentará destruí-la por necessidade, sua e de seus filhos. Ele é o chefe, comandou tudo e sabe de tudo. Fabrício Queiroz não é a figura central.
Pela recusa
Se Abraham Weintraub for aceito no Banco Mundial, a entidade não será mais o Banco Mundial. Ainda que nem sempre respeitado na plenitude, o princípio fundador desse cofre é o apoio financeiro a países, sem distinção por níveis de pobreza e riqueza, raça, cultura e religião. Weintraub é racista brancóide, é elitista, é preconceituoso em religião e em riqueza versus pobreza.
Seu último ato no Ministério da Educação, já decidida a queda, foi revogar a reserva de vagas para negros, indígenas e deficientes aspirantes à pós-graduação em instituições federais de ensino superior. Gesto torpe de um homem torpe.
Será indecente, para o Banco Mundial, tê-lo em alguma dependência.
BBC News Brasil - E a abolição da escravatura no Brasil?
Luciana Brito -Depois que os EUA aprovaram a abolição, em 1865, os jornais de lá passaram a cobrir quase que diariamente a situação no Brasil, que tinha recebido muito mais negros traficados. Eram 400 mil nos Estados Unidos e quase cinco milhões aqui. Chamava atenção que o Brasil conseguisse arrastar a escravidão por tanto tempo.
Mas os diplomatas e políticos brasileiros se justificavam dizendo que aqui a escravidão era branda, que não havia conflito de cor. Outra justificativa comum era: "vamos chegar na abolição, mas estamos fazendo isso de maneira pacífica, porque aqui não tem guerra".
O Brasil acabou com a escravidão e entrou no pós-abolição com esse mito de "não temos conflito racial como nos Estados Unidos". E outros mitos como "o negro aqui não trabalha, é preguiçoso". Aí foram criminalizadas as atividades negras pela lei da vadiagem, do Código Penal de 1890. Não tinha nada lá falando sobre negro, mas a capoeira era crime, o candomblé era crime. Ficar na rua, algo comum para as pessoas negras libertas que não tinham emprego ou tinham empregos informais, era crime.
Então, depois da abolição, o Brasil não criou leis claramente segregacionistas, mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com a população negra, que transformaram o racismo em algo não dito.
A educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito deixou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível.
Raramente uma pessoa negra no Brasil tentou entrar num restaurante e ouviu "preto não entra aqui". Nós sabemos, e vivenciamos isso, que aqui você ouve "as mesas estão todas ocupadas". Você entra em uma loja e não é expulso, mas a vendedora lhe ignora. Quem não lhe ignora é o segurança.
Nós não tivemos uma formação, desde a infância, na qual somos treinadas e treinados para perceber o racismo no momento em que ele está acontecendo, sem ser nomeado.
Isso faz com que vejamos coisas como o avô de Ágatha (Félix, de 8 anos, morta por tiros de fuzil de um policial militar em 2019) dizendo a jornalistas na porta do IML (Instituto Médico Legal): "Ela fazia inglês, ela fazia balé, ela era boa aluna".
Porque ele acredita que a família fez tudo certo. Nesse pacto civilizatório brasileiro, nessa ideia da família de bem, é preciso dizer "ela não merecia", como se fosse uma questão de merecimento.
Somos treinados, inclusive as pessoas negras, para que, quando vemos corpos negros na televisão sendo arrastados pela delegacia ou as chacinas nas comunidades, pensemos: "ali era marginal, e marginal tem que morrer".
O Brasil foi resolvendo seu problema racial assim: com muita força policial, muita repressão e sem falar abertamente do conflito. E construímos uma identidade nacional como uma democracia racial pacífica, acreditando que o problema racial é um problema do outro.
O nosso olhar, sobretudo o da grande imprensa, sobre o conflito nos EUA, continua sendo esse: "Olha que absurdo o policial branco que matou o negro". Mas dizendo subliminarmente, pelo silêncio, que no Brasil não tem isso.
BBC News Brasil - Mas ao mesmo tempo em que falamos do racismo estrutural nos EUA como um dos fatores que provocaram a onda de protestos, no Brasil, estudos mostram que 75 a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil são negras, inclusive em intervenções policiais. Estatisticamente, negros também têm menos escolaridade, menor renda e menos acesso à saúde, assim como lá. É possível dizer, mesmo subliminarmente, que "no Brasil não tem isso"?
Luciana Brito - É cada vez mais difícil sustentar esse discurso.
Mas sempre tem alguém que usa um argumento do tipo: "Lá nos Estados Unidos o policial que matou o homem negro foi branco, mas aqui no Brasil não há essa dicotomia, porque os policiais também são negros".
Esse é o nó que o mito da democracia racial dá nas nossas cabeças.
Eu vi um vídeo de um policial branco nos EUA atacando uma jovem negra. A superior do policial, também uma mulher negra, interrompe a ação dele, o empurra violentamente para longe da menina e o repreende na frente dos colegas.
No Brasil, essa mulher ou esse homem negro, quando veste a farda, é capaz de abater uma pessoa negra, e é racismo mesmo assim. Porque, aqui, o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o "negro de bem".
O racismo no Brasil é mais ardiloso. A população negra é maioria, mas é confundida como um inimigo que faz parte da sua vida, mas que não é declarado.
Por exemplo, não são todas as famílias negras que se identificam com a dor da família de Ágatha ou de João Pedro. Ou mesmo de Miguel. Elas pensam: "Poxa, que má sorte aquela criança estar ali".
Aí vêm os argumentos: "Ah, mas estava ali fazendo o quê?" ou "Ah, foi um acidente". Todos esses "poréns" solapam uma realidade que grita, que é o fato de que essas pessoas estão sendo abatidas por serem negras, por serem consideradas menos cidadãs. Menos seres humanos.
As pessoas no Brasil até aceitam dizer: "É porque era pobre". Parece que é mais aceitável atribuir determinadas desigualdades à pobreza do que ao racismo.
BBC News Brasil - Como a classe influencia a percepção sobre o racismo no Brasil?
Luciana Brito - É interessante pensar que os ganhos que a população negra teve, fruto de conquistas do movimento negro, como a Lei de Cotas Raciais e a PEC das Trabalhadoras Domésticas, mexeram nas estruturas da sociedade brasileira e criaram uma reação violenta. E foram leis que se relacionam muito à formação de uma classe média negra no Brasil.
As trabalhadoras domésticas passaram a ter direitos trabalhistas, os filhos de muitas entraram nas universidades, ou elas mesmas encontraram outras possibilidades de emprego — eu tenho hoje colegas que foram trabalhadoras domésticas. E aumentaram as possibilidades para a juventude negra através da educação universitária.
Essa possibilidade de que negros pudessem transitar, em maior quantidade, pra outra classe social, incomodou muito as estruturas do racismo brasileiro. Porque a diferença de classe social no Brasil se estrutura na raça.
Só que para uma pessoa negra — e aí falo da minha própria experiência e dos meus amigos — transitar para a classe média significa apenas que você acessa os bens de consumo da classe média. Você mora legal, tem carro bacana, seu filho vai para escola particular, mas você continua emaranhado no racismo estrutural.
Quando entro em uma loja de creme de cabelo, o segurança ainda me segue. Quando eu vejo uma criança como Ágatha ou João Pedro serem alvejados, isso me afeta diretamente, porque tenho uma criança com aquelas características. Eu tenho medo de meu marido dar um passeio na rua à noite sozinho.
Além disso, o restante da minha família não é classe média. Eu sou a única. É por isso que dizemos que não há saída individual para sair desse racismo, embora muitas pessoas negras acreditem que isso é possível.
Após anos de avanços, discussão entra em nova etapa. Enquanto grupos organizados se unem contra Bolsonaro e a impunidade policial, novos atores abrem debates que terminam em brigas nas redes
“A desmistificação da ideia de uma democracia racial é uma agenda concluída. Você não consegue mais sustentar academicamente, institucionalmente, que o Brasil é uma democracia racial. O direito à educação não é o mesmo para o negro e para o branco”, explica Winnie Bueno, mestra em Direito e doutoranda em Sociologia.
“As pessoas negras são marcadas para morrer desde a maternidade, e isso não pode ser naturalizado”, diz Bueno. No Brasil, 75% das vítimas de homicídios, assim como das mortes cometidas por policiais, são jovens homens negros, segundo o Forum Brasileiro de Segurança Pública. Os números também mostram que a letalidade policial vem aumentando nos últimos anos em todo o país, de 2.212 pessoas mortas em 2013 para 6.220 em 2018. “Mas esse genocídio não está só expresso no número de homicídios. Também está inscrito numa dimensão intelectual, na dimensão da seguridade alimentar, da moradia, na taxa de suicídios...", completa Bueno.
É nesse contexto que o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro, buscam aumentar ainda mais a imunidade de agentes públicos que cometem excessos. A primeira tentativa foi através do pacote anticrime, que a Câmara dos Deputados aprovou sem o artigo que ampliava o excludente de ilicitude. A segunda tentativa veio através de um Projeto de Lei, apresentando no fim do ano passado, que isenta de punição os militares e agentes federais que estejam agindo sob o decreto presidencial da Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
A Coalização acredita que essas iniciativas do Governo, além de sua própria retórica de incentivo a letalidade policial, aumentaria ainda mais a violência estatal e teria consequências especialmente graves para a população negra, segundo denunciou na OEA e na ONU. “Há coisas que conseguimos combater por muito tempo e que agora estão de volta. E eles voltaram com mais força, mais organizados, usando os argumentos de antigamente”, explica Iêda Leal, pedagoga coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado, onde milita desde 1988. “O que mais nos assusta mais é que tem adesão. Vamos precisar estudar um pouco mais esses inimigos para compreender como o racismo está se reorganizando para combatê-lo melhor".
Colorismo e palmitagem nas redes
Entre os vários debates sobre a questão racial que permeiam as redes sociais, dois deles chamam a atenção pela sua constância: o colorismo e a palmitagem. O colorismo é um conceito que chama a atenção para uma política de embraquecimento que resultou na hierarquização racial da sociedade brasileira, segundo explicam os estudiosos do tema. Isso significa que o nível e o tipo de preconceito que um negro sofre no cotidiano varia de acordo com a tonalidade de sua cor, a largura de seu nariz, a grossura dos lábios e a textura do cabelo. “O colorismo é braço do racismo, é uma metodologia que hierarquiza as pessoas dentro da composição dos grupos negros. É uma forma de controle, de mantê-las dentro do estereótipo daquilo que a gente entende por negro e obrigá-las a buscar o ideal de beleza, de competência, de história e de cultura associada ao etnocentrismo”, explica Alessandra Devulsky, doutora em direito político e econômico e pesquisadora sobre o tema. Uma das consequências do colorismo, exemplifica ela, é que os negros eleitos para o parlamento, os artistas negros que se tornam destaque ou os professores negros que são contratados são, em sua maioria, pessoas com a pele mais clara e que "se associam aos traços compreendidos da branquitude”. Por isso, prossegue, “é difícil ver artistas de pele escura tendo destaque”.
Já a palmitagem diz respeito aos relacionamentos amorosos inter-raciais, especialmente entre um homem negro e uma mulher branca ― essa última vista como padrão ideal de parceira, o que resulta na solidão das mulheres negras, segundo pesquisadores do tema. “Existe uma ideia de que é preciso embraquecer a família. Isso continua. Geralmente os homens negros, que são hipersexualizados e que têm uma posição financeira melhor, buscam as mulheres brancas. O padrão de beleza é branco. A mulher que merece ser amada, a mulher que é humana, é a mulher branca", explica a cientista política Nailah Neves, mestre em Direitos Humanos e Cidadania. As mulheres negras, explica ela, também tem essa mesma educação. “Primeiro porque nossos homens negros estão morrendo. Além disso, aquele homem branco que escolheu aquela mulher negra se torna o grande salvador, o príncipe encantado que habita no imaginário da mulher negra que vem de uma estrutura sofrida. Ele está no topo da pirâmide e pode pode dar aquilo que chamamos que é o padrão de relacionamento”, prossegue.
Dessa forma, explica Devulsky, colorismo e palmitagem estão diretamente interligados. Ela pondera que “amor não se regula”, mas defende “que afeto e beleza, assim como a ideia de competência e inteligência, são questões construídas" ao longo da história. “E quem estabelece o poder e a norma, daquilo que é aceitável e recompensado socialmente, não é o negro, que não ocupa posições de poder econômico e político”, explica. “Como então algumas pessoas integram a ideia de privilégio racial para poder salvar a família? A partir da miscigenação”, completa.
Por tudo isso, prossegue Devulsky, pessoas brancas e negras de pele mais clara ―especialmente mulheres― são priorizadas nas relações amorosas e de amizade, assim como nos círculos acadêmicos e empresariais. “Vamos escolher aquilo que nos parece mais positivo. E, quanto mais clara é minha pele, mais aceitação eu tenho, tanto no lado afetivo como profissional. Fica mais fácil adquirir status social”. Enquanto isso, “a mulher negra de pele escura segue na base dessa pirâmide de valores”, sem associação “à beleza ou à inteligência”, mas sim “ao trabalho braçal”. As cicatrizes na comunidade negras são várias, vão de problemas de depressão e autoestima à interiorização de estereótipos racistas. "Algo que não se resolve com esforço individual, mas sim com psicanálise e com transformação social, via distribuição de renda e de poder”, argumenta. Assim, conclui a pesquisadora, "a construção da ideia de negritude vai no sentido de resistir, de enfrentar o racismo e de buscar a igualdade racial revalorizando a africanidade pelo viés da sua ressignificação política”. [Transcrevi trechos de reportagem de Felipe Betim, in Em País]
O ambiente está configurado. Desde primeiro de janeiro, o Brasil está entregue a um governo de macacos, sem nenhuma intenção de ofender a espécie. O país está entregue a uma equipe de limítrofes que não completaram a transição para o homo sapiens. Quer resolver tudo na porrada, na vulgaridade, na base da bala e do insulto. E se alimentar do sangue dos adversários.
O governo Bolsonaro já acabou, e só os cegos, surdos e mudos podem pensar o contrário. É um processo de destruição do Brasil confessado pelo próprio tenente-capitão que chegou ao Planalto na base da trapaça. Como Bolsonaro disse no Chile, sua tarefa não é construir. É destruir o que já foi feito.
Leia-se nisso os pequenos avanços proporcionados por governos progressistas. O Bolsa Família, que tirou milhões de famílias da miséria. O Minha Casa, Minha Vida, hoje desidratado, embora tenha oferecido a oportunidade de uma habitação digna a brasileiros sem-teto e empregos na construção civil. O Pro Uni. A política de cotas. Os incentivos à indústria nacional. E por aí vai. O que se oferece é a entrega do país ao capital estrangeiro sem nada receber em troca.
Para quem acredita em democracia e soberania nacional, o governo Bolsonaro já acabou. A quadrilha que tomou conta do Planalto com base em milícias, fake news e com o apoio da “elite” financeira-judiciária-militar-parlamentar e midiática é sinônimo de ruína. A fatia verde oliva sonha em transformar o país numa grande Port-au-Prince.
O tempo agora não é de conquistar a governabilidade de Bolsonaro. Mas sim de interromper o quanto antes esta aberração que fulmina o país. Por isso é preciso escapar das armadilhas montadas pelo Palácio do Planalto e sua máquina de twitters.
Na falta de um programa afirmativo de construção do Brasil, a famiglia Bolsonaro investe em querelas ideológicas. Escola sem Partido, ataque às minorias, negação das lutas identitárias, armas para todos. Todas questões de grande importância, mas que desviam o foco do que é principal.
A última das esparrelas é a orientação oficial sobre comemoração do golpe de 1964. É óbvio que é uma provocação. Deve ser combatida sem complacência. Agem certo os juristas, o Ministério Público e a AGU ao condenar tamanha bofetada na cara do povo brasileiro. Trata-se de travar sem tréguas a luta ideológica contra um governo reacionário, obscurantista e de tendências totalitárias.
Mas isso é parte do combate –e, atrevo-me a dizer, não a mais importante. A batalha que interessa é a da luta pela sobrevivência do povo, que está em jogo não em discursos em quartéis, mas no presente do desemprego e no futuro da aposentadoria.
Em vez de gastar esforços em “manifestações” sobre o 31 de março, trata-se de concentrar forças em mobilizações gigantescas contra a reforma da previdência, contra a liquidação da aposentadoria, na luta por empregos, na organização de um primeiro de maio digno desse nome, numa greve geral ainda maior do que a de 27 de abril.
Nas ruas. Esse é o caminho para abreviar a manutenção da famiglia Bolsonaro no poder.
A estudante negra, que prefere não ser identificada, conta que, quando passou em publicidade e propaganda na Faculdade Cásper Líbero, na cidade de São Paulo, esperava se deparar com algum episódio racista quando pisasse naquele espaço — que, até poucos anos, era quase que exclusivamente branco, como todo o ensino superior do Brasil. “Por ser uma faculdade elitista, eu imaginei que sofreria algo”, diz. O que ela não esperava é que o racismo partisse de uma professora.
Durante uma aula, em 22 de março, folheando o álbum da Copa do Mundo de uma aluna, a professora comentou que na Croácia “só tem gente bonita” e, diante das imagens da seleção da Nigéria, disse que “queria saber como esse aqui faz pra pentear o cabelo, deve ser um ninho”, segundo o relato de alunos. No final da aula, a aluna e seus colegas procuraram a professora para questionar essa e outras falas dela que consideravam discriminatórias. Durante a conversa, a professora negou que fosse racista, disse que não havia racismo no Brasil (“tem até um outro negro na Cásper”) e ainda pôs a mão no cabelo da jovem, alegando “curiosidade”.
O episódio foi levado à direção da Cásper Líbero pelo coletivo de alunos Africásper. Nesta semana, a faculdade demitiu a professora, que não teve o nome divulgado. “Após analisar os apontamentos relatados pelo corpo discente e ouvir as partes envolvidas, a Faculdade Cásper Líbero optou pelo desligamento do docente por uso de expressões e atitudes inadequadas. A Faculdade reforça que repudia qualquer atitude de conotação discriminatória e preconceituosa, seja no espaço público ou privado”, afirmou a direção da faculdade, em nota divulgada nesta quinta-feira.
‘Um lugar que não é seu’
Episódios como esse têm se mostrado comuns no ambiente universitário, revelando o racismo dos mais escolarizados. Segundo dados obtidos pelo G1junto à Secretaria Estadual da Segurança Pública de São Pau lo, o estado registrou, entre 2016 e 2017, um caso de injúria racial em instituições de ensino a cada cinco dias.
O problema demora a ser percebido porque “parte da população entende que isso não deveria acontecer, porque o universo é composto por pessoas de nível de escolaridade mais elevado”, segundo Jefferson Mariano, doutor em desenvolvimento econômico, analista socioeconômico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), professor universitário e homem negro.
Porém, com o ingresso de mais jovens negros nas universidades e faculdades — de acordo com o Ministério da Educação, desde que a política de cotas virou lei, em 2012, 150.000 estudantes negros ingressaram em entidades de ensino superior no País entre 2013 e 2015 —, a busca dos brancos por defenderem privilégios de raça se torna mais explícito. Na cabeça de muitas pessoas, segundo Mariano, “o negro passa a ocupar um lugar que não é seu”.
Mariano lembra que, no início da carreira, enfrentou casos explícitos de preconceito. “Lecionei no interior de São Paulo em cursos de Administração e já cheguei ouvir afirmações racistas de alunos, foi uma situação bastante complicada. Em turmas de economia, muitos alunos achavam que não havia o menor sentido discutir inserção do negro no mercado de trabalho, por exemplo”, conta. “No meu mestrado tive um problema sério. No fim do curso, uma das minhas notas sumiu. O professor errou, mas foi à secretaria questionar a minha índole. A minha sorte é que a secretária localizou meus trabalhos nos arquivos. O professor não se desculpou.”
Ainda assim, os ataques racistas no ensino superior são apenas mais um dos vários obstáculos enfrentados por quem, para chegar ali, teve que matar vários leões pelo caminho. “O fato de um menino negro conseguir completar o ciclo do ensino fundamental é um ato heroico”, afirma o professor, para quem “o negro fica sempre com a sensação de que está no lugar errado”. De acordo com estudo do IBGE, realizado em 2015, a porcentagem de jovens negros entre 18 e 24 anos que chegaram até a universidade era 12,8%. Entre brancos na mesma faixa etária a porcentagem é de 26,5%. Números que mostram, portanto, que o acesso de negros ao ensino superior ainda é abaixo da média.
Para um estudante negro chegar ao ensino superior, ele precisa, primeiro, sobreviver emocionalmente às outras etapas do ensino. “O negro sente o racismo na sua vida escolar desde o primeiro dia de aula. Já comentei que o pior lugar para um negro estar, aos sete anos de idade, é na escola. Não há lugar mais hostil”, afirma o pesquisador, que hoje leciona na Faculdade Cásper Líbero e na Saint Paul Escola de Negócios.
‘Racistas vão ter que pagar’
“Achei esse escravo no fumódromo! Quem for o dono, avisa!”, disse um aluno branco estudante da FGV (Faculdade Getúlio Vargas) ao se referir a um colega negro. A frase foi compartilhada em um grupo do WhatsApp com uma foto de João Gilberto Lima. O estudante soube do ocorrido por parte da própria coordenação do curso de administração pública, do qual faz parte. Ao saber o que tinha acontecido, João registrou boletim de ocorrência no 4º DP (Consolação), por injúria racial.
Comentários racistas feitos pelo aluno Gustavo Metropolo, da FGV (à direita)
Segundo João, ele sabia desde o princípio que tinha que denunciar o caso formalmente. “Fiquei chocado com o que tinha acontecido, mas o meu maior sentimento foi o de indignação por aquilo estar acontecendo no ambiente da FGV”, afirmou o estudante à Ponte. O agressor foi suspenso por três meses da universidade pela comissão de ética. Atualmente, a congregação da instituição analisa se dará outras punições.
Segundo João, ele já tinha sofrido outros casos de racismo na vida, mas que nada tinha sido parecido com o que sofreu na universidade. Para ele, é preciso que as pessoas que sofrem com o racismo “tenham a coragem de denunciar”. “Eu não tenho a utopia de achar que as pessoas vão deixar de ser racistas. Eu não vou mudar a cabeça das pessoas nem o que elas pensam, mas a partir do momento que elas externalizarem isso, elas vão ter que pagar por isso conforme está previsto na lei”, conclui.
O racismo à brasileira vem muitas vezes disfarçado de brincadeira. “Aqui no Brasil, as pessoas ofendem a dignidade da população negra dizendo que se trata de piada, mas isso se trata de racismo”, analisa o professor Tiago Vinícius dos Santos, doutor em direitos humanos pela USP (Universidade de São Paulo).
Para que casos de racismo sejam investigados dentro da academia, o professor afirma que é preciso criar um órgão responsável para apurar denúncias. “É fundamental criar um centro de diversidade ou um departamento das universidades”, afirma. Sobre estudantes vítima de racismo, Santos afirma que é preciso que os alunos façam uma denúncia no campo institucional e também nas delegacias. Dessa forma, ele afirma que as denúncias não irão só penalizar aquele que praticou alguma ofensa, mas também irão servir como objeto de reflexão para as instituições. ‘Odeio pretos e pardos’
O que não faltam são instituições acadêmicas precisando refletir sobre seu papel. Em março, um professor do Instituto Federal de São Paulo publicou nas redes sociais um texto, que mais tarde classificaria como mal compreendido, em que proferia uma série de ofensas e concluía: “Odeio pretos e pardos”. Alunos do instituto fizeram a denúncia à diretoria e à reitoria do Instituto e organizaram pelo menos duas manifestações para cobrar a exoneração de José Guilherme de Almeida, que lecionava no curso de Geografia. O Instituto emitiu nota afirmando repúdio ao racismo e prometendo apurar o caso.
Professor apagou perfil nas redes sociais após a publicação.REPRODUÇÃO/FACEBOOK
Dois estudantes da instituição relataram perseguições. José Guilherme teria reprovado Christopher de Lima Machado e Fábio Santos Souza em duas disciplinas apesar de ambos os estudantes terem notas suficientes para passar de ano. De acordo com Christopher, “ele faz questão de falar que os bandidos periféricos roubaram todos os Iphones que ele já teve”.
“Tive aulas com ele e é torturante”, diz Fábio. “Ele não aceita confronto de alunos contra as coisas que ele falava em aula. Sempre que havia confronto em sala de aula, os alunos negros sofriam represálias, mesmo que entre os envolvidos também tivessem brancos”, afirma. A Ponte tentou entrar em contato com o professor para que ele se posicionasse sobre os casos e as acusações, mas ele não respondeu às tentativas da reportagem.
Não é fácil para as instituições de ensino superior entenderem as questões relacionadas ao racismo. Em junho de 2017, a estudante de jornalismo Thamires Menezes ouviu de um professor da Universidade Tiradentes, em Aracaju (SE), que ela não poderia ser âncora de jornal por conta do cabelo afro, estilo black power, que ela usava na época. Thamires denunciou o caso, mas afirma que colegas, professores e direção da universidade começaram a ver a vítima como culpada. O acontecimento levou a aluna a abandonar o curso.
“Ainda estudei durante o período passado, fazendo meus trabalhos sozinha, mas vi que estava pagando faculdade em vão. O professor continua lá, a coordenadora também. O caso no Ministério Público foi arquivado e minha advogada sumiu. O processo nunca aconteceu e pronto. Fui lá tranquei o curso. O pior foi sair do estágio. Eu amava trabalhar lá”, lamenta.
Thamires Menezes e o cabelo que “não servia” para o telejornalismoARQUIVO PESSOAL
Agora, a estudante mudou de estado para terminar o curso. Há três meses, ela foi para Salvador e afirma que pretende voltar aos estudos no próximo período. Mesmo com o sofrimento que passou, ela afirma que encara tudo como um “novo desafio”.
Sobre o episódio, a Unit afirma que não houve racismo. “O ocorrido se deu em uma dinâmica comum de sala de aula, quando os alunos e professor discutiam sobre resumos da área de Comunicação que abordam acerca da postura do profissional em bancadas de telejornais, sem expressar qualquer opinião pessoal sobre a matéria. (…) Portanto, ficou constatada a inexistência de qualquer manifestação depreciativa, forma de discriminação ou preconceito, por qualquer motivo (sexo, idade, cor, preferências, convicções, etc.) por parte do professor em relação a aluna em questão”, afirma a universidade em nota. A Unit diz que “os fatos foram apurados internamente (pelos setores de Ouvidoria, que registra as reclamações, e Comissão de Ética, que atua na apuração das denúncias envolvendo docentes e discentes), pela autoridade policial de Sergipe e outros órgãos estatais, no âmbito de suas competências processuais”, sem que o crime fosse constatado.
Luta e vitória
Para Larissa Mendes, aluna da Escola Politécnica, unidade da USP que em 121 anos de existência formou apenas sete mulheres negras, o preconceito se manifestou de formas menos diretas. “Dentro da Poli o racismo se dá quase que da mesma forma que o Brasil como um todo: ninguém é diretamente racista”, conta. “Eu nunca ouvi nenhum comentário evidentemente racista, mas, sempre que eu descia do circular na Poli, as pessoas iam me empurrando, porque na cabeça delas eu não faço parte do perfil de pessoas que desce no ponto de ônibus da maior faculdade de engenharia do país.”
Larissa faz parte da Poli Negra, coletivo que impulsionou a discussão sobre cotas na faculdade, obrigando os alunos de lá a enxergarem que havia uma questão racial a ser debatida. “Até então, por mais que um ou outro aluno pobre e negro falasse alguma coisa, as pessoas achavam normal olhar pros lados e só ver gente igual a eles: brancos, ricos, vindos de bons colégios”, diz. Realizando diversas reuniões com os centros acadêmicos, a Poli Negra conseguiu impulsionar um plebiscito que, em 2017, apontou que 70% dos alunos apoiavam as cotas. No mesmo ano, quando o Conselho Universitário da USP aprovou a implantação de cotas sociais e raciais. “Foi uma vitória imensa”, conclui.racism
A maioria da população é negra. Na região amazônica, as cotas favorecem a entrada dos jovens de origem indígena nas universidades
Amanda Rossi entrevista Luiz Felipe de Alencastro,
autor de 'Trato dos Viventes'
Navio tumbeiro. 4,8 milhões de africanos foram transportados para o Brasil e vendidos como escravos,
ao longo de mais de três séculos
BBC Brasil - 4,8 milhões de africanos aportaram como escravos no Brasil. É muito mais que em qualquer outro lugar no mundo. Nos Estados Unidos, foram menos de 400 mil. Por que a vinda de escravos para o Brasil foi tão grande?
Alencastro - São vários fatores. Do ponto de vista da navegação, há um sistema de correntes e ventos que aproxima muito o Brasil da África. A viagem de ida e volta para os portos brasileiros era 40% mais curta do que a dos navios saindo das Antilhas ou dos Estados Unidos, os quais enfrentavam turbulências na ida e na volta, quando atravessavam a zona equatorial. O Brasil também tinha mercadorias que eram trocadas por escravos, como tabaco e cachaça.
Outro fator importante são as conexões do Brasil com os portos africanos. Quando a Corte portuguesa veio para cá, o Rio de Janeiro se tornou a capital do império português - isso incluía Angola, Moçambique... Também havia bases mercantis de interesse brasileiro lá - muito mais associadas ao Brasil do que a Portugal. Isso os americanos nunca tiveram. O negócio negreiro dos Estados Unidos era muito mais controlado pelos ingleses.
O terceiro fator é o boom do café, que aumentou muito o tráfico negreiro para o Centro-Sul do Brasil. Quem estava financiando isso em última instância? O operário e a classe média inglesa, francesa, russa, que estavam tomando café mais frequentemente. O café do Brasil não tinha concorrência. A partir de 1840, o Brasil vira o maior produtor mundial de café - e é o maior até hoje. Não foi assim com o ciclo do açúcar, que sofria concorrência das Antilhas.
BBC Brasil - Os próprios africanos participaram do comércio de escravos, não? Alencastro - Os africanos desenvolviam comércio de escravos localizado, limitado aos circuitos regionais das zonas econômicas africanas. A articulação desse comércio interno ao comércio Atlântico - que era um dos setores mais dinâmicos da economia mundial, com companhias formadas, com acionistas investindo pesado - criou uma demanda de escravos que exacerbou o tráfico interno africano. Também houve a importação de armas europeias, dando maior impacto aos conflitos internos, que eram os mecanismos de criação mercantil de escravos. O comércio atlântico negreiro era um comércio totalmente europeu e brasileiro. Nunca houve um navio africano vendendo escravo nos portos das Américas.
BBC Brasil - Como a escravidão explica o país e a sociedade que o Brasil se tornou? Alencastro - O tráfico negreiro em si explica muita coisa. Explica a unidade nacional, por exemplo. Quem quisesse se separar do governo do Rio de Janeiro, da Coroa, já sabia por antecipação que ia sofrer pressão da Inglaterra quando ficasse independente e teria que acabar com o tráfico. Quem estava melhor posicionado para moderar a pressão inglesa contra o tráfico transatlântico de africanos? O governo do Rio de Janeiro. Uma monarquia que tinha corpo diplomático bem plantado na Europa e era a única representante do sistema monárquico europeu nas Américas. A unidade nacional brasileira é um fenômeno inédito nas Américas. Falava-se a mesma língua. Mas da Patagônia até a Califórnia também se falava a mesma língua, o espanhol e os 4 vice-reinos espanhóis se fragmentaram virando 19 países.
Mas não é só. O tráfico também explica boa parte da diferença entre o Centro-Sul e o Nordeste do Brasil. O sucesso do primeiro não é porque teve mais espírito comercial. É por causa do café, mas também porque a rede negreira fluminense era mais extensa e mais eficaz na África que a dos negreiros pernambucanos ou baianos. Por isso, o café pode se expandir tanto.
BBC Brasil - 130 anos é pouco tempo, só cerca de quatro gerações. Mesmo assim, parece muito distante. Por que temos a impressão de que a escravidão é um passado tão longínquo? Alencastro - Eu conheci gente em Goiás que falava do tempo da escravidão. E há depoimentos de ex-escravos colhidos no Paraná, nos anos 1950. Por que parece que é tão longe? Logo depois da abolição o assunto saiu de pauta. Salvo para se ensinar que a abolição foi uma generosidade da Coroa, do governo, da redentora princesa Isabel. Daí o motivo do movimento negro ter proposto a troca do 13 de maio pelo 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), da princesa Isabel por Zumbi - numa luta política significativa. E depois veio também a imigração, criou-se uma outra história popular que não deixava muito espaço para a história dos afro-brasileiros.
BBC Brasil - A abolição foi uma farsa? Alencastro - A abolição teve limites. Mas ela ocorreu, não foi farsa. Seria como dizer que a República foi uma farsa, que não acabou com a monarquia. A abolição acabou com a aberração gerada por um quadro institucional e legal que permitia uma pessoa ter como propriedade outra pessoa e seus descendentes, de maneira perpétua. A abolição também não foi uma benevolência da princesa ou do governo. A monarquia já estava caindo, fez uma última manobra e caiu ao tentar captar a plataforma abolicionista para enfraquecer o movimento republicano
BBC Brasil - O senhor é defensor das cotas... Alencastro - O meu argumento das cotas é que elas são fundamentais para os negros, para os índios e para os pobres e os brasileiros em geral. São elas que vão consolidar a democracia plena no Brasil, com acesso à educação e ao trabalho.
BBC Brasil - Há quem defenda cotas por renda, não por cor... Alencastro - A cota social apareceu como um argumento substitutivo dos que não queriam apoiar a cota racial. Ninguém falava em cota social no Brasil antes do movimento negro levantar a bandeira da política afirmativa racial - a favor dos negros e também dos índios, é importante lembrar. Trata-se de uma política baseada nas estatísticas étnicas dos Estados. Na região amazônica a proporção de jovens de origem indígena é importante e as cotas favoreceram a entrada deles nas universidades federais.
O Supremo Tribunal Federal votou unanimemente pela constitucionalidade das cotas, em 2012. Raras decisões do Supremo são unânimes. Juridicamente, a situação estava definida: os negros não sofrem descriminação legal, mas há mecanismos informais que os descriminam e desqualificam de forma óbvia. O censo de 2010 mostrou que a maioria da população é negra. Esse dado deve ser bem observado pela maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria.
BBC Brasil - O senhor também defende o ensino de história da África nas escolas. Alencastro - A maioria das pessoas que chegaram aqui são africanos. É esse o dado que os professores têm que dar em reunião de pais e mestres, quando perguntam por que perder tempo com história da África. Ora, porque a África é mais importante para a formação do povo brasileiro do que a Ásia e boa parte da Europa e das Américas.