Periferia de Curitiba muda rotina diante da pandemia

Para moradores e especialistas, esses bairros não serão os primeiros, mas podem ser os mais afetados durante a disseminação do novo coronavírus
Desde a urbanizada Vila Torres, no Rebouças, até a ocupação irregular Vila 29 de Outubro, na Caximba. As cerca de 46 mil casas dispostas nos aglomerados subnormais de Curitiba, as chamadas favelas, recebem de forma diferente as orientações para a prevenção do novo coronavírus. Álcool em gel, máscaras e detergente são, na maioria das vezes, itens de luxo. Diante do cenário de pandemia, as condições de vida assimétricas encontradas na periferia aumentam ainda mais a precariedade e a situação de vulnerabilidade dos moradores.
Enquanto diversos mercados de Curitiba foram tomados por clientes preocupados com a possível ausência de itens básicos de higiene e alimentação, Anderson Omena (19 anos), morador de ocupação urbana na Caximba, a 27 km do centro da capital, recebeu com estranheza as primeiras orientações oficiais para o combate à proliferação do vírus. “Eu moro com cinco irmãos, além da minha mãe”, explica. “A casa é pequena, de madeira. Como eu vou evitar fazer aglomeração? Só se eu ficar fora de casa.” Até o dia 11 de abril, 309 casos de infecção e seis mortes estavam confirmadas no município. 99 pessoas passaram por internamento compulsório.
A dificuldade de acesso à água e aos serviços públicos, o custo dos materiais de higiene, a impossibilidade de se trabalhar em casa e a informação pouco adaptada à realidade da periferia são apenas algumas questões que se somam à informalidade habitacional, premissa para a facilitação do contágio. Há, ainda, um descompasso entre as recomendações oficiais e a capacidade das famílias em situação de risco de segui-las. Até mesmo o uso de máscaras de pano, conforme sugestão do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba, tem provocado atos de intolerância e racismo contra a população negra.
Recomendações
A realidade de sub-habitação é comum a muitos moradores da Ocupação 29 de Outubro e funcionam como tragédia anunciada. O esgoto a céu aberto e a proximidade com o antigo aterro sanitário da cidade deixam às vistas a fragilidade sanitária do local. Enquanto Curitiba conta com 99,9% de cobertura de rede de esgoto, a Caximba faz parte dos dados informais da cidade que enfrentam problemas sanitários. Muitos dependem de uma “torneira social” para conseguir água. “No começo (dos casos de coronavírus), o pessoal ficou em estado de choque, mas ainda tem muita gente na rua. Muitos precisam trabalhar. Pelo que a gente escuta dá a impressão para os moradores de que a questão do vírus não é assim tão séria”, conta Anderson.
Apesar de localizadas em regiões mais centrais, e com diferentes realidades urbanas, as conhecidas vilas Parolin e Torres enfrentam os mesmos problemas. A conselheira da saúde da Vila Torres e conselheira tutelar Maurina Carvalho conta que a recomendação mais difícil é a de lavar as mãos. “Parece simples, mas nos depósitos de recicláveis moram 12 famílias que usam uma só torneira comunitária para lavar a roupa. Não adianta falar que estão fazendo errado porque não tem nem condição de fazer o certo”, diz.
A médica infectologista Flávia Gomide entende que mesmo as orientações mais básicas, como manter distância entre as pessoas, o cuidado com a tosse e a separação de assintomáticos e sintomáticos em diferentes cômodos pode ser impraticável em situações precárias de habitação e urbanização. “Entender que a quantidade de casos no município é baixa é resultado, justamente, da eficiência do isolamento social. É necessário diminuir ao máximo a circulação do vírus, dentro das possibilidades que têm a população periférica. Poupar leitos é condição para a qualidade do atendimento”, afirma.

Informação
A professora e coordenadora da ONG Mãos Invisíveis, Vanessa Lima, reitera que a precariedade das informações são parte do problema. “É uma linguagem que não existe. O mais difícil é entender o que está acontecendo de verdade. Informação é privilégio.” Com atuação principal no bairro do Parolin, um dia antes da entrevista, uma moradora havia perguntado à Vanessa quais eram os sintomas da gripe. “Existe uma noção de que o corona é uma doença de classe média, para a classe média tratar. A informação chega assim. Não sei como vai ser quando começar a pipocar os casos na periferia”, conclui.
Em adendo, informações falsas veiculadas nas redes sociais têm promovido a rejeição aos cuidados do isolamento. Lima também percebe que a movimentação nas ruas é maior quando há pronunciamentos na televisão por parte do governo federal. Já vídeos comprovadamente falsos que mostram hospitais vazios, divulgados no aplicativo WhatsApp, motivam muitos a duvidarem da letalidade do vírus.
Enquanto isso, dados do sistema de monitoramento de notificações sobre Síndrome Respiratória Aguda (SRAG) da Fiocruz, mostram um aumento de 48,5% dos internamentos de pacientes com dificuldades respiratórias no Paraná em relação ao mesmo período do ano passado, o que sugere subnotificação de casos do Covid-19. 120 pessoas ainda seguem em suspeita de infecção e aguardam resultados dos exames.
Quarentena
No Parolin, as crianças brincam na rua. Na distante Caximba, moradores aguardam diariamente o ônibus para ir e voltar do trabalho. Na Vila Torres, parte do comércio reabriu, em especial após as últimas declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia, mas ainda há ruas vazias. Os que podem, ficam em casa.
Além dos constantes rearranjos familiares, que provocam a coabitação de diversos núcleos familiares em uma mesma casa, é comum que a periferia tenha uma lógica própria de troca. A maioria dos serviços são oferecidos para a própria comunidade e o dinheiro circula localmente. É exemplo a ocupação 29 de Outubro, onde se encontram logo à entrada: salões de cabeleireiro, oficina mecânica, bares, padaria, aviário e até um pesque-pague. O auxílio emergencial de R$ 600 ao trabalhador informal aprovado pelo Congresso não garante subsistência. Ficar em casa não é uma opção.
O conselheiro do Conselho Regional de Psicologia e mestre em planejamento e gestão pública, Pedro Carneiro, explica que apesar de existirem espaços de privacidade, é comum que fatores objetivos moldam a forma com que as relações se dão na periferia. “A unidade habitacional diz pouco sobre a reprodução da vida nestes locais. A vida acontece entre as casas. Os moradores tendem a passar menos tempo na habitação, até mesmo pela própria condição estrutural”, afirma. Anderson, que postou nas redes sociais um pedido para os amigos evitarem as constantes visitas que recebia, corrobora. Para ele, quando as necessidades são as mesmas, as soluções também são. “Estar na comunidade, para a comunidade, é estar em quarentena. Não se vê muito problema em estar na rua porque a gente já vive meio junto”, conclui.

Economia
Pesquisa desenvolvida pela agência Responsa, divulgada pela revista Época, mostra que a necessidade de sair de casa contrasta com a opinião dos moradores das periferias. 96% dos entrevistados entendem que o isolamento social é benéfico para conter a contaminação. Dos 525 entrevistados, todos parte das classes C, D e E, 52% continuam trabalhando, formal ou informalmente após o início da crise, 11% deixaram de receber salário e 4% foram demitidos.
As respostas confirmam o que uma série de pesquisas realizadas pelo DataFavela neste ano evidenciam: a epidemia deve provocar consequências sérias para os 13 milhões de moradores de favelas no Brasil. Pesquisa realizada em março mostra que 72% das famílias não conseguiriam manter o padrão de vida que têm se ficassem uma semana sem renda e cerca de uma em cada três famílias podem não conseguir comprar itens básicos. 70% já tiveram a renda reduzida cerca de um mês após o primeiro caso confirmado no país. Ainda assim, dados de abril mostram que 71% dos 1.808 entrevistados em 269 favelas não concordavam com o fim do isolamento. Transcrevi trechos