Parceria Lava Jato-EUA foi movida por ódio e dinheiro, revela ex-agente da CIA

O DCM falou com exclusividade com John Kiriakou, ex-agente da CIA que foi condenado em 2013 à prisão por vazar informações sobre o programa de interrogatórios de prisioneiros da Al Qaeda.
Por “programa de interrogatórios” leia-se “tortura”.
Ele foi o primeiro whistleblower a denunciar esses crimes no contexto da “Guerra ao Terror”.
“Quero dizer que saio da corte com um espírito positivo, confiante e otimista”, disse ele ao se declarar culpado. Libertado em 2015, lançou livros e dá palestras contando sua experiência.
Kiriakou falou com Sara Vivacqua sobre sua carreira, o recrutamento, o cárcere, e também de Moro, Dallagnol, os Bolsonaros e Steve Bannon.
A Lava Jato, diz ele, “é um excelente exemplo da interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos de outro país”.
Sara Vivacqua entrevista John Kiriakou
DCM: Você era agente da CIA, se identificava muito com a instituição e, ao olhar para sua carreira, é possível dizer que seguia os valores e que gostava do seu trabalho…
John Kiriakou: Sim, eu gostava.
Você pode nos contar como se tornou um agente?
Claro, é uma história engraçada. Quando eu estava na pós-graduação na George Washington University, em Washington DC, fazendo mestrado em assuntos legislativos, cursei uma disciplina chamada psicologia da liderança, que era ministrada por um psiquiatra muito importante. Ele tinha um PhD em Ciência Política, um PhD em Psicologia, graduação em medicina e ele se autodenominava “psiquiatra político”.
Um curso muito interessante sobre como os líderes estrangeiros tomavam suas decisões e então ele nos deu a tarefa de escrever um artigo sobre isso e tivemos que seguir nossos chefes por uma semana. Na época, eu estava trabalhando para um sindicato em Washington, o United Food and Commercial Workers Union, e eu tinha que acompanhar meu chefe por uma semana e, em seguida, escrever um perfil psicológico sobre ele.
No meio da semana, ele e eu tivemos uma discussão muito séria e eu o chamei de racista, o que ele era, e ele ficou muito zangado, e cerrou os punhos para me dar um soco e levantei as mãos para me proteger e o rosto dele ficou vermelho, e ele disse: “meu pênis é maior que o seu”.
E eu disse “o quê?”, e ele repetiu: “meu pênis é maior que o seu”. E eu disse: “você sabe que você é maluco”, e então eu parei e saí, realmente desisti. Escrevi o perfil e contei essa história e disse que acreditava que ele era um sociopata com tendências psicopáticas e citei exemplos.
Entreguei o trabalho e uma semana depois o recebi de volta, e numa margem do texto o professor escreveu: “por favor, fale comigo depois da aula”. Fui vê-lo, ele fechou a porta de seu escritório e me disse: “olha, não sou realmente um professor, sou um oficial da CIA disfarçado como professor e estou procurando pessoas que acho que se encaixariam na cultura da CIA”?
A verdade é que eu ia me casar em 6 semanas, não tinha trabalho e não sabia o que iria fazer; então eu disse que gostaria. E a próxima coisa que soube, depois que passei em todos os testes, é que eu estava na CIA.
Ele explicou como achou que você se encaixaria?
Sim, ele me recrutou para o lado analítico e assim, na primeira metade da minha carreira, fui o que na comunidade de inteligência é classificado como biógrafo de Saddam Hussein.
Fui eu que coordenei todas as análises e perfis psicológicos de Saddam Hussein, e a razão pela qual me deram aquele emprego, quando eu era tão jovem, 25 anos apenas, foi porque nada acontecia no Iraque, era o mesmo governo desde 1968, a mesma liderança.
Tínhamos uma embaixada muito pequena lá, não tínhamos nenhum interesse nacional no Iraque até que o Iraque invadisse Kuwait e esse ato me tornou uma estrela na CIA.
Ainda hoje é uma prática que professores ou agentes da CIA se disfarcem como professores em instituições para recrutar pessoas?
Não, eles não fazem mais isso por causa deste ato de igualdade de oportunidades de emprego, mas eles têm professores em universidades por todos os EUA. É chamado de “programa escolar em residência”. Agora eles vêm e dizem “eu sou um oficial da CIA e vou me aposentar em 3 anos, então de nos últimos 3 anos da minha carreira, serei professor aqui”; então é tudo muito público e transparente. Eles não fazem mais isso secretamente.
Você disse que se tornou uma estrela de repente; poderia explicar melhor?
Sim, era na manhã de 2 de agosto de 1990. Eu estava na CIA há cerca de 9 meses e começava a sentir que eu realmente sabia o que estava fazendo, e eu realmente sabia do que estava falando. Desde a noite anterior todos nós esperávamos que Saddam cruzaria a fronteira do Kuwait e atacaria o governo kuwaitiano.
Então eu me levantei cedo, com a certeza de que durante a noite o Iraque invadira o Kuwait. Então tomei banho, fiz a barba e me vesti o mais rápido que pude e cheguei no escritório às 7 horas. E meu chefe me disse, assim que cheguei lá: ”não tire o paletó, vamos para a Casa Branca”. Eu nunca tinha estado na Casa Branca antes e de novo, tinha apenas 25 anos. Então pegamos um carro para a Casa Branca e um fuzileiro naval nos acompanhou até o Salão Oval. Estava eu sentado com o presidente, o vice-presidente, o secretário de estado, o secretário de defesa, o conselheiro de segurança nacional, o diretor da CIA, meu chefe e eu. Me lembro de ter pensado se meus amigos pudessem ver aquilo, eles não acreditariam, nem em um milhão de anos.
E nós estávamos sentados lá e o presidente diz: “bem, e agora, o que faremos?”. E todo mundo se vira e olha para mim e pensei que essa era a minha chance. E então eu disse: “bem, senhor presidente, as forças do Iraque entraram no país às 2 da manhã; elas se moveram para cá; a família real voou para a Arábia Saudita…”.
Eu dei o briefing completo porque eu realmente sabia do que estava falando. Havia um médico kuwaitiano que foi um dos membros fundadores da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) e eu tinha escrito um artigo sobre ele na semana anterior, apenas porque ele era interessante para mim e durante a noite os iraquianos anunciaram que ele seria o novo presidente do Kuwait ocupado. Então eu era um especialista nesse cara, eu sabia tudo sobre ele, e quero dizer que isso mudou o curso da minha carreira, eu me tornei uma estrela naquele dia.
Você disse que depois daquele dia que se tornou estrela, mas sua carreira não acabou aí. Você ocupou um cargo de alto escalão na CIA. Qual era exatamente o seu papel como analista sênior e o que você fazia?
Nos primeiros 7 anos em que fui analista, fui promovido e trabalhei sempre com Iraque e então, só para dar um exemplo, eu fui um dos coautores da Resolução 986, do Conselho de Segurança da ONU, que criou o regime de sanções no Iraque e permitia que o Iraque comprasse alimentos e medicamentos, mas praticamente nada mais.
Eu não gostava daquele trabalho, ficar sentado em uma mesa o dia todo, você tem grandes ideias e escreve trabalhos que na maioria das vezes ninguém lê e todos os dias durante anos e anos foi Iraque, Iraque, Iraque o tempo todo e fiquei entediado. Eu falo fluentemente árabe e grego e descobri que eu era a única pessoa em toda a CIA fluente nas 2 línguas. E, em seguida, abriu uma vaga em Atenas, em operações de contraterrorismo e eles procuravam alguém que falasse grego ou árabe.
Então fui ao oficial encarregado de contratar para esse profissional e disse, “eu sou um analista e eu tenho literalmente zero experiência em operações, mas falo fluentemente grego e árabe”, e ele me disse “você está brincando”. E eu respondi “não”, e ele perguntou se eu estava disposto a ser testado.
Eu disse “claro”. Então eles me testaram e eu testei fluente e ele me disse “o trabalho é seu”. Ele disse que é mais fácil, mais barato e mais rápido contratar um linguista e ensiná-lo operações, que pegar um oficial de operações e ensiná-lo a falar grego e árabe. Então eles me deram o trabalho e eu passei por todo o treinamento operacional. Armas, explosivos, condução, recrutamento de espiões para roubar segredos e eles me enviaram para Atenas e eu trabalhei contra um grupo terrorista específico chamado Organização Revolucionária 17 de Novembro e contra uma miríade de grupos árabes.
Abu Nidal, os líbios, FPLP (Frente Popular para Libertação da Palestina), FPLP-CG (Frente Popular para Libertação da Palestina – Comando Geral), FDLP (Frente Democrática para Libertação da Palestina). Estavam todos em Atenas e foi isso que fiz nos 2 anos seguintes.
Você foi o primeiro oficial a denunciar esta prática e a dizer adeus a toda a sua carreira. Você pode nos contar sobre o processo que levou você a mudar sua vida em 180 graus?
Sim, sempre acreditei firmemente no império da lei, e no respeito aos direitos humanos, direitos civis e liberdades civis que me faziam ser um oficial da CIA incomum. Eu tinha sido o chefe das operações de contraterrorismo da CIA no Paquistão após os ataques do 9/11 e fui responsável, como você disse, pela captura de Abu Zubaida que era considerado, na época, o número três da Al Qaeda.
Ele era o primeiro alvo importante que capturamos. Quando cheguei em casa, no Paquistão, um oficial sênior me perguntou se eu estava interessado em ser treinado no que chamou de técnicas de interrogatório aprimoradas, ele me explicou o que isso era, e eu disse que parecia um programa de tortura, e ele disse que não, “não é um programa de tortura, o Departamento de Justiça aprovou e o presidente aprovou e é legal”. Eu disse que me soava mal, que não estava interessado…
Nunca passou pela sua cabeça que talvez a CIA tenha feito isso?
A CIA não fez isso até 1º de agosto de 2002. Em 1975, a CIA derrubava governos e assassinava líderes mundiais e o Congresso criou 2 comitês de supervisão, o Comitê de Inteligência do Senado e o Comitê de Seleção Permanente de Inteligência e, a partir de 1975, graças à Ordem Executiva 12333, assassinatos e ações secretas para derrubar governos foram tornados ilegais. Mas o 11 de setembro mudou tudo. O presidente secretamente revogou a Ordem Executiva 12333. Eles queriam matar e eles simplesmente decidiram que o ato de tortura não existia e eu disse que se você vai torturar prisioneiros, não quero fazer parte disso, absolutamente.
Mas eu esperei que alguém dissesse algo, pensei que certamente isso é tão ilegal que é tão notório que alguém iria sair e dizer algo e ninguém disse uma palavra então, a partir de 2002, do início de 2002 até dezembro de 2007, ninguém disse uma palavra e então em dezembro de 2007 decidi que diria e recebi um pedido do abc news, uma das principais redes de transmissão aqui nos Estados Unidos e eu decidi que só contaria a verdade, que eu pensava que o povo americano tinha o direito de saber o que o governo estava fazendo em seu nome, que eles tinham o direito de saber que a CIA estava violando tanto o direito dos EUA quanto o direito internacional.
Além do fato de que a tortura simplesmente não funciona. Você tinha certeza, pois você parecia tão seguro, o quão certo você estava de que isso estava realmente acontecendo para ir na tv ao vivo, na tv americana, e pôr a público, você deve ter visto coisas. O que você havia visto?
Quando voltei do Paquistão, fui promovido e me tornei o assistente executivo para o vice-diretor de operações da CIA e como assistente do vice-diretor eu tinha acesso a literalmente tudo o que a CIA estava fazendo ao redor do mundo. Eles relatavam prisões secretas em todo o mundo, o que estavam fazendo com esses prisioneiros e simplesmente não havia dúvida em minha mente de que esse era um programa ilegal.
Como você conseguiu essas provas?
Não retirei nenhum documento da CIA pois seria espionagem. E, na verdade, tenho uma ótima memória para detalhes e pude fornecer detalhes desses programas ilegais: o sistema prisional secreto, o programa de rendição internacional, onde eles sequestrariam pessoas e depois as levariam para outros países para serem torturadas, e o programa de tortura. E forneci aos jornalistas da ABC News nomes de ex-oficiais da CIA que puderam confirmar o que eu havia dito.
Você falou sobre leis americanas que não aceitam que se classifique documentos quando se tenta esconder crimes. Que lei é essa?
Há muito disso nos livros há muito tempo desde, na verdade, 1975, desde a reformulação da CIA. Na verdade, o czar de classificação de George W. Bush era seu título não oficial, acho que ele era o chefe da classificação oficial do Pentágono, disse no tribunal que até 80% dos documentos confidenciais na comunidade de inteligência dos EUA não devem ser classificados [como confidenciais], eles não deveriam ter sido classificados.
Que tipo de penetração você acha que a CIA tem no sistema judicial e no legislativo dos EUA?
É muito profundo, e acho que vemos exemplos disso todos os dias no caso Julian Assange, no meu próprio caso. Pesquisando encontrei memorandos do Departamento de Justiça, e dentre esses memorandos havia uma série. Um era de John Brennan, da CIA, para Eric Holder, o procurador-geral, e dizia: “Acuse-o de espionagem”, e Holder respondeu de volta dizendo: “Meu pessoal não acha que ele cometeu espionagem”. E John Brennan respondeu: “Acuse-o de qualquer maneira e faça-o se defender.” Foi isso que eles fizeram. Eles esperaram até que eu fosse à falência, e então retiraram todas as acusações de espionagem. Porque eles sabiam que eu não havia cometido espionagem. Mas é isso que eles fazem.
Isso é vingança, a revanche da justiça.
Sim o Departamento de Justiça faz o que a CIA manda ele fazer. É assim há muitos anos.
Você pode explicar um pouco como o DOJ, Departamento de Justiça, funciona?
Tem um escritório específico no Departamento de Justiça chamado Office of Legal Counsel, OLC. A função do OLC é decidir se as coisas que a CIA deseja fazer são legais ou ilegais. Então digamos que a CIA diga: “Queremos derrubar o governo britânico”. A OLC dirá não, você não pode fazer isso, isso não é legal. Então a CIA diz: “Está bem”. Mas “Queremos derrubar o governo líbio”. Ok, isso é legal, você pode fazer isso.
Mas o que acontece é que o OLC se torna realmente mais que um carimbo pois se a CIA quer fazer algo, a OLC irá justificar isso, legalmente. Então, por exemplo, a CIA queria criar um programa de tortura. Então eles foram ao OLC e disseram que queriam criar um programa de tortura. O OLC disse “bem, você não pode fazer isso porque a tortura é ilegal, temos o Ato de Tortura Federal de 1946 e somos signatários, não apenas signatários, mas também os redatores reais da Convenção das Nações Unidas contra a tortura. E eles disseram “bem na CIA, nós realmente queremos fazer esse programa de tortura”. Então em uma série de memorandos chamados memorandos UBI
Eles disseram “a lei diz que você não pode torturar pessoas, mas se não deixa uma marca no seu corpo, é realmente tortura? Pensamos que não é, então a tortura é legal”. E como tudo isso era classificado, era ultrassecreto, ninguém poderia processá-los nos tribunais federais. A lei é muito clara, a tortura é ilegal e este memorando UBI está errado. Ninguém sabia que havia um memorando UBI porque ele foi classificado, então é assim que a CIA exerce sua influência.
Agora avance rapidamente para Mike Pompeo. Mike Pompeo, decidiu que queria matar Julian Assange por causa das revelações do Vault7 (uma coleção substancial sobre CIA obtida pelo WikiLeaks). Ele ficou tão zangado que disse “vamos matá-lo”. Eles foram ao OLC e disseram “nós queremos matar esse cara”. “Você não pode”. “Você não pode porque ele é um cidadão australiano, e você não pode matar um cidadão de um país aliado, especialmente um país da Aliança dos 5 Olhos: Canadá, Austrália, Nova Zelândia, EUA, Reino Unido.
Você não pode fazer isso. Mas o OLC disse “Bem, o que podemos fazer é dizer que ele é um representante do serviço de inteligência de um não-estado hostil. Isso não era apenas retórica ou licença para qualificá-lo, esse era um termo técnico que ele usou para autorizar a perseguição, mas ninguém percebeu, ninguém percebeu isso na época.
Na verdade nós rimos sobre isso. Eu até escrevi um artigo sobre isso, “por que ele está dizendo algo tão estúpido, que ele é um agente não-estatal hostil?” Bem, havia uma razão muito séria pela qual ele disse isso, porque isso permitiria que o OLC justificasse legalmente o assassinato de Julian Assange.
Então por que Julian não foi assassinado?
Porque o que aconteceu é que o pedido foi da CIA para o OLC e então do OLC, para o Conselho Geral, os promotores, do Conselho de Segurança Nacional, na Casa Branca. Indiferente do que a CIA e o OLC queiram fazer eles apenas aprovam, nunca dizem não. Então vai para o Consultor de Segurança Nacional e, se ele assinar, vai para o Presidente, e o Presidente assina e torna-se um documento chamado Despacho Presidencial.
O que aconteceu no caso de Julian Assange é que chegou ao Conselheiro de Segurança Nacional, general H.R. Mcmaster, e ele disse: “O seu pessoal está louco? Não vamos assassinar um cidadão australiano”. Foi ele quem parou tudo.
Você falou de sua admiração por certos líderes mundiais…
Tenho grande admiração por pessoas como Nelson Mandela, presidente Lula e Martin Luther King, e essas pessoas, em minha opinião, foram gravemente prejudicadas por seus governos, injustiçadas de maneiras muito piores do que eu. Você conhece pessoas que foram para a prisão por décadas, pessoas como Martin Luther King, que foi assassinado por causa do que acreditava, e assim, se eles puderam perdoar as pessoas que os injustiçaram, eu também podia perdoar as pessoas que me injustiçaram. Só perdi 2 anos da minha vida, não 35 anos. E então, eu decidi que o futuro seria mais brilhante do que o passado e eu iria tratar aquilo tudo como água que passou debaixo da ponte, e foi o que fiz.
Então, esse era um lugar difícil. A CIA tinha me treinado para viver em alguns dos piores lugares da Terra e Deus sabe que eu tinha servido em lugares que eram muito piores do que esta prisão. Então eu decidi confiar no meu treinamento da CIA para me manter seguro e no controle da minha sanidade. [continua]