O dia 8 de janeiro é o dia da infâmia, do estupro institucional. Da vergonha. Aquele dia que todos — todos — deveriam repudiar. Mas, lamentavelmente, muita gente — deputados, senadores, advogados (sim, causídicos), jornalistas e jornaleiros — em total dissonância cognitiva, buscam justificativas para esse ataque terrorista às instituições.
O primeiro ingrediente desse caldo é a criminalização da política. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata.
Vem a fome insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 da CF era invocado, para justificar intervenção militar e quejandices mil. Não havia dia em que o então presidente da República não invocasse alguma coisa para insinuar ou até pregar golpe de Estado. Presidente da República, militares, alguns juristas, rádios — todos transformados em vivandeiras. A bulir com os granadeiros...!
Resultado: o dia 8 de janeiro. Na política exsurgiu o fanatismo e a violência. Já no direito — parece incrível, não? — surgiu o ius vivandeirismo. Fora o "recado" explícito, na base do chute na canela, dado via Twitter pelo general Villas Bôas, em clara ameaça ao STF, lembram? Ali começou a chover na terra, como dizia o poeta Eráclio Zepeda.
Sem esquecer as ironias nada irônicas do general Augusto Heleno, que, infelizmente, não leu Rei Lear, do Bardo. Aliás, ambos, Bôas e Heleno, deveriam ler Rei Lear: na peça, o bobo da corte sintetiza o destino do rei: "Pobre Lear, que ficou velho antes de ficar sábio". O que o Bardo quis dizer? Simples: há que se saber envelhecer para colher o único fruto que a idade pode dar em troca de todas as outras perdas: o conhecimento. A sabedoria. Captaram?
Quem pariu mateus que o embale? Ledo engano. Quem pariu o 8 de janeiro está ainda impune. Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).
Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.
O mais grave: até parte considerável dos progressistas apoiou o lavajatismo. Importantes advogados, jornalistas, jornaleiros e até partidos políticos se encantaram com o "novo jus tenentismo". A tentação sempre é grande. O moralismo ingênuo fragilizou, como sempre faz, a autonomia do direito.
Resta confiar nas instituições democráticas. Como disseram bem Walfrido Warde e Rafael Valim, cenas de vandalismo deviam horrorizar o país e conduzir a uma unânime defesa do Estado Democrático de Direito. O escândalo? É que isso não aconteceu, lembram os articulistas.
De efetivo, parece que muita gente não convive bem com a democracia. Por isso, há que se usar os rigores da lei.
Se a choldra, o valhacouto, a rafanalha estuprou simbolicamente os prédios dos Poderes da República, há que se ter claro que esses foram instigados, financiados, empurrados, liderados e mandados para cometer o atentado ao Estado Democrático de Direito. Os próximos dias revelarão os cúmplices e coautores. Para o bem da República.
E que aprendamos a ficar de olho no chocamento de ovos de serpentes. Quando a lava jato iniciou, os que compreenderam o fenômeno cabiam em um fusca. Depois em uma kombi. Hoje já há uma frota.
O mais curioso de tudo isso é que existam advogados metidos nisso. E advogados defendendo golpismo. Que coisa. Onde foi que erramos? Eu sei. Escrevo sobre isso há décadas.
Não cuidamos dos currículos das faculdades, dos concursos públicos (veja-se que um juiz chegou a conceder um mandado de segurança para, mutatis, mutandis, garantir o direito fundamental a pedir golpe de estado), enfim, desdenhamos do direito. Resultado: eles estão por aí. Na advocacia e nas carreiras de Estado. E na política.
Como dizia o poeta mexicano, quando as águas da enchente descem a serra e cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra.
É que muita gente não se deu conta.
Vamos repetir os mesmos erros? Ou vamos praticar passapanismo?
Fracassaram. O “assalto aos palácios” bolsonarista foi derrotado. Agora é hora de avançar na investigação, prisão e condenação dos responsáveis, sem tropeços, mas, sobretudo, sem hesitações sobre o destino de Jair Bolsonaro. O principal responsável da incitação do golpismo, há anos, impunemente, é Jair Bolsonaro.
A decisão do governo Lula de decretar intervenção federal na segurança de Brasília, em função da ameaça golpista, foi correta, e Ricardo Capelli, ex-presidente da UNE, merece apoio na iniciativa de realizar a repressão imediata necessária. A decisão de Alexandre de Moraes de afastar Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal foi, também, justa, para tentar recuperar o domínio de Brasília. Mas a contraofensiva tem que ir além da resposta institucional. Será nas ruas que devemos medir forças com o golpismo.
O que aconteceu no domingo foi uma insurreição, ponto. Caótica, demencial, obscura, mas uma insurreição. O objetivo era a derrubada do governo Lula. Felizmente, não houve mortos. Não foi uma manifestação de protesto. Não foi o descontrole de uma “explosão” de radicalização espontânea. A aparente “acefalia” da subversão não deve esconder a responsabilidade de quem preparou, organizou e dirigiu a tentativa de tomada do poder. Obedecia a um plano. Foi uma tentativa amalucada de provocar uma quartelada. Um levante desarmado, mas não por isso, menos perigoso.
Obedecia ao cálculo delirante de que bastaria uma fagulha para que alguns generais colocassem os tanques nas ruas. Que a faísca não tenha gerado um incêndio com a saída às ruas de tropas militares dispostas a oferecer sustentação ao golpe de Estado não diminui a gravidade da sublevação. E não anula o perigo que é uma evidente simpatia policial e militar pelo movimento bolsonarista. Uma desconcertante operação articulada, planejada e, minuciosamente, orquestrada que não pode ser subestimada. Descobrir quem deu as ordens, portanto, quem comandou: este é o desafio central destes dias.
Assistimos perplexos, atônitos e chocados a incrível facilidade com que, não mais que alguns milhares de fascistas, fantasiados de patriotas em marcha carnavalesca, escoltados pela Polícia Militar invadiram os prédios que são os símbolos dos poderes da República. Algo, simplesmente, inacreditável. A invasão do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto foi uma demonstração de que a impunidade da extrema direita, depois de dois meses de concentrações na porta de quarteis pedindo um golpe militar, tem consequências graves. O espetáculo absurdo e grotesco durante três horas, no centro do poder da capital, seria inexplicável sem a cumplicidade das forças policiais e militares de Brasília.
As prisões preventivas são inescapáveis para investigar os organizadores. Há mandantes ocultos ainda por ser revelados. Mas, ainda que progressivas, estas decisões são insuficientes. Permanece sem solução a “questão militar”. José Múcio Monteiro não tem condições de permanecer como ministro da Defesa. O comandante do Exército não pode permanecer no cargo. Será decisiva, portanto, a resposta da mobilização popular que começou na segunda-feira, 9 de janeiro e que não deve ser interrompida.
A “desbolsonarização” deve ser uma estratégia permanente. Abriu-se um novo momento na conjuntura, uma oportunidade que não podemos perder, com o fiasco da aventura golpista. A hora é de contraofensiva implacável. Infelizmente, é necessário que sejamos conscientes que a sociedade brasileira continua muito fraturada. A vitória eleitoral alterou, favoravelmente, a relação política de forças. Mas só a luta social de massas poderá impor uma relação social de forças melhor.
Não esqueçamos que a maioria da burguesia apoiou Jair Bolsonaro nos últimos anos. Que as camadas médias apoiaram Jair Bolsonaro. Que, ainda que dividida, uma parcela importante da classe trabalhadora apoiou Jair Bolsonaro. As provocações fascistas não vão parar enquanto não houver repressão. A extrema direita tem que ser detida. Em grande medida a aventura deste domingo foi mais um “ensaio geral”. As forças da extrema direita mergulharam em crise em função da derrota eleitoral. O próprio Jair Bolsonaro se recolheu desmoralizado durante dois meses e saiu do país.
Mas ainda não foram neutralizados, mantém, posições. Os fascistas quiseram demonstrar em Brasília que mantém força social, ambição política e capacidade de ação. Estão apostando na acumulação de forças. Se não forem reprimidos com a prisão dos responsáveis, a começar pela investigação de Jair Bolsonaro, voltarão. Não pode haver qualquer anistia aos crimes que cometeu. O governo Lula deverá assumir, plenamente, a liderança do combate contra a provocação bolsonarista. A esquerda, se apoiando nos movimentos sociais, terá que organizar um dia nacional de mobilização em resposta. Fascistas não passarão!
O áudio a que se refere Jeferson Miola em seu texto é este acima. Tem 8min 11s de duração. Ele foi revelado em20 de novembro de 2022por Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo.
Augusto Nardes enviou-o, via WhatsApp, a um grupo de amigos ligados ao agronegócio. Nele, diz que ”está acontecendo um movimento muito forte nas casernas” brasileiras, e que “é questão de horas, dias, no máximo, uma semana, duas, talvez menos do que isso”, para um “desenlace bastante forte na nação, imprevisíveis, imprevisíveis”.
Em seguida, diz ter informações sobre as movimentações contra o reconhecimento do resultado da eleição, que deu a vitória ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL), de quem Nardes é próximo.
Ministro Nardes, do TCU, continua impune e com ganhos de R$ 45 mil
O ministro do TCU Augusto Nardes, que divulgou áudio [ouça no topo] no qual se gabava de conhecer a movimentação conspirativa e antidemocrática coordenada pelas Forças Armadas, continua impune e recebendo normalmente elevada remuneração no TCU.
Em novembro de 2022 a remuneração total de Nardes foi de R$ 45.865,98, com mais R$ 2.448,07 recebidos a título de “ressarcimento de assistência médica” [fonte: TCU].
Em dezembro, com o 13º salário, o ganho do ministro totalizou R$ 89.238,21, e o “ressarcimento de assistência médica” dobrou em relação ao mês anterior: foi de expressivos R$ 4.964,53, o que pode ser explicado pela “licença médica” que ele pediu à repartição logo depois da repercussão pública do conteúdo criminoso do vídeo.
Na gravação que enviou a lideranças extremistas do agronegócio e a seu universo fascista de relações [20/11], Nardes informou que “está acontecendo um movimento muito forte nas casernas”.
Ele assegurou que o atentado contra a democracia e de questionamento do resultado da eleição “é questão de horas, dias, no máximo, uma semana, duas, talvez menos do que isso”.
Antecipando o que foi o cenário devastador de 8 de janeiro em Brasília, Nardes descreveu o evento programado, em relação ao qual não escondeu estar bem informado, como um “desenlace bastante forte na nação”.
Consultado a respeito da situação do ministro Nardes, o TCU informou, por meio da assessoria de comunicação, que “a partir do dia 22/11/22 o ministro Augusto Nardes ficou afastado devido à licença médica, que se encerrou no dia 16/12/22”.
Quanto ao questionamento sobre procedimentos eventualmente adotados pelo Tribunal para apurar a conduta do ministro e punir eventuais crimes cometidos, a assessoria de comunicação do TCU não respondeu.
Procurada telefonicamente para complementar a informação solicitada, a assessoria disse, apenas, que não tinha resposta a respeito.
No contexto dos inéditos atos de terror fascista contra os poderes da República, chega a ser vomitável ver a impunidade de altas autoridades das instituições de Estado que são comparsas das cúpulas partidarizadas das Forças Armadas no empreendimento fascista e antidemocrático.
É inaceitável, ainda, que esses agentes catalisadores da violência e do banditismo contra o Estado de Direito, como o ministro farsante que produziu a farsa das pedaladas fiscais para derrubar a presidente Dilma, continuem sendo remunerados nababescamente para conspirar contra a democracia.
Na gravação enviada por Whatsapp a um grupo de amigos do agronegócio, o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União, faz uma análise da história brasileira desde o fim da ditadura militar e diz que, com Jair Bolsonaro, a sociedade finalmente alcançou seus ideais conservadores. A fala de Augusto Nardes foi imediatamente caracterizada como golpista por diversos setores da sociedade - e teve repercussão negativa entre ministros do Supremo Tribunal Federal e do próprio TCU. Eles inclusive já se organizam nos bastidores para formalizar pedido de afastamento do ministro do TCU. Em nota enviada ao Jornal da Cultura, o ministro diz que lamenta profundamente a interpretação sobre seu "áudio despretensioso"
O deputado federal, Paulo Pimenta (PT), conta a trajetória de Augusto Nardes até o vazamento do áudio e a chegada ao TCU. Vídeo completo: https://youtu.be/lGdNpcKngaE
A intentona golpista do dia 8 de janeiro não representou um plano de tomada imediata do poder. Tampouco se resumiu a um putsch de bolsonaristas lunáticos.
Mais razoável entender esse acontecimento no bojo do processo decorrente da vitória eleitoral do presidente Lula, com a formação de acampamentos nas cercanias das instalações militares. Ali começa um movimento cujo objetivo era provocar caos e desordem, levando a operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
Essa aposta poderia ter vários desdobramentos: um dos quais a intervenção das Forças Armadas, a derrubada da administração petista e o retorno à ditadura.
A invasão dos Palácios foi um capítulo desse roteiro. Ilude-se quem considerar que, superado esse episódio, “a democracia venceu”.
Não basta a prisão da raia-miúda e seus padrinhos no governo do Distrito Federal. Ou se chegar nos financiadores. Nem mesmo a eventual responsabilização política e criminal de Jair Bolsonaro permitirá virar essa página.
Para não se embriagar no autoengano, basta listar os fatos principais.
A nota dos três ex-comandantes militares, abençoando os protestos bolsonaristas, ainda em novembro.
Os longos e organizados acampamentos próximos às casernas.
A paralisia do Batalhão da Guarda Presidencial frente aos invasores do palácio.
A postura do comando militar no QG do Exército, na noite do levante, impedindo a ação da PM de Brasília e facilitando a fuga de sediciosos.
A conclusão é óbvia. A moradia da hidra golpista está nas Forças Armadas, que exercem tutela sobre o Estado desde a Guerra do Paraguai.
Essa instituição passou ao controle de fardados sequiosos em reassumir a direção do Estado, agora por via institucional, associando-se a um mequetrefe apaixonado pela ditadura dos generais.
Para implantar um programa ultraliberal, refazer o realinhamento com os Estados Unidos e embolsar gordos privilégios, altos oficiais se envolveram, direta ou indiretamente, em ataques à Constituição.
O presidente Lula tentou apaziguá-los, indicando um ministro da Defesa dócil ao partido militar, capaz de caracterizar atividades golpistas como “manifestações democráticas”, e indicando novos comandantes por critério de antiguidade. Mas bastaram sete dias para que fracassasse a política da pacificação.
Ainda assim, o líder petista teve firmeza e habilidade para debelar o motim, revertendo parcialmente falhas de Ministérios.
A verdade, contudo, é que apenas haverá estabilidade quando o ninho de serpentes for varrido dos quartéis. Outros chefes, de promoção mais recente e leais à autoridade presidencial, deveriam ser nomeados para as três armas, passando à reserva compulsória os oficiais mais próximos do bolsonarismo.
Novas regras para promoção e formação teriam que ser adotadas para combater a cultura antidemocrática.
Com a abertura de inquéritos disciplinares, militares vinculados à sedição poderiam ser afastados, processados e julgados, limpando as Forças Armadas de seus piores elementos.
O fiasco da intentona, por fim, com ampla reação dentro e fora do país, concede ao presidente a melhor oportunidade, desde a transição dos anos 80, para desmontar a tutela militar, abrindo caminho para a refundação do Estado brasileiro.
ACABOU: Alexandre de Moraes arquiva notícia-crime de Nikolas Ferreira contra o ministro da Justiça, Flávio Dino. Moraes diz que arquivou por conta da ausência de indícios mínimos da ocorrência de ilícito penal.
Nikolas, com K, merece ser punido: queria tirar sarro com a cara de Flávio Dino. E trollar, morfar, caçoar, cornetar, zazumbar, zuar com a Justiça. Nikolas segue ritos nazistas propagados por Bolsonaro e defende o golpe, todos os golpes https://talisandrade.blogs.sapo.pt/tag/bolsonaro+ nazismo …
Na América Latina quem deixou impunes os crimes do passado viu eles se repetirem
por Vladimir Safatle
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Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos. No final da ditadura militar, setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre os crimes contra a humanidade perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário. Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política.
Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado, elaborando a memória de seus crimes, procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para a prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro. Impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo” – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.
Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade, vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica, não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”. Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados. Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania. Já no século XVIII, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã de matar o tirano. Pois toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. Note-se: estamos a falar da tradição liberal.
Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios. Por isso, não é surpresa alguma ouvir o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.
Afora o desrespeito a um dos países mais importantes para a diplomacia brasileira, um magistrado que confunde exigência de justiça com clamor de ódio, que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de Estado apenas vingança, é a expressão mais bem-acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor. Um país submetido a um governo que, durante quatro anos, fez de torturadores heróis nacionais, fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.
Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente. Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos. A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional. Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos.
Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem. Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura. Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo.
É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento. Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento. Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso. As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos. Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.
Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo. Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.
A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Jair Bolsonaro e seus gerentes. Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto. Quando falamos em crimes, falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia, quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.
O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Jair Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia. Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia. Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao Estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.
Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais. Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições. A polícia brasileira é hoje um partido político. Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do Estado, um poder à parte.
Espera-se do governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.
Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade. Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações, continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado. Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.
O deputado bolsonarista Major Victor Hugo apresentou um inédito pedido de “anistia” para os bloqueadores de estradas que infernizam o país – e esta manhã a vez foi de quem se viu impedido de chegar ao Aeroporto de Viracopos, em Campinas.
Aliás, para eles e também para os responsáveis pelo “ financiamento, a organização e o apoio de qualquer natureza, além das falas, comentários ou publicações em redes sociais ou em qualquer plataforma na rede mundial de computadores (internet)”. Só excetua -vejam só – “crimes contra a vida, contra a integridade corporal, de sequestro ou de cárcere privado”. Falava incluir isso, não é? Ou melhor, nem falta, porque o episódio do motorista aprisionado por golpistas e o caso do menino que tinha de operar-se e foi bloqueado já são transgressão mais que provada.
O fato é que estamos assistindo um patrocínio aberto do golpismo, que não vai parar sozinho, porque já há praticamente um mês ele segue não apenas tolerado, mas insuflado pelo governo, pelos militares e pelos partidários de Jair Bolsonaro.
O tempo de pedir que voltem para casa já passou e até isso era um exercício de tolerância e pacificação.
A violação da lei que estão praticando está mais que clara e condenada pela sociedade. Mas não pelas instituições que deveriam estar agindo: as polícias, o Ministério Público e o próprio Judiciário, que – por evidente traço corporativo – tem deixado só o ministro Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal Federal, que o respaldou ate agora.
Todas as autoridades estaduais e mesmo os procuradores federais nos estados e chefes das forças de segurança têm toda a autoridade para agir, mas se mostram de uma “brandura” que jamais se viu na história.
A impunidade é a escada pela qual sobem a arruaça e a insânia e, do jeito que as coisas vão, logo sairemos das situações ridículas para acontecimentos trágicos. Alguém divida que os tiros e granadas de Roberto Jefferson são frutos do precedente de indulto a Daniel Silveira?
Os fanáticos já temos, basta apenas que lhe surja umJim Jones.
Dora Longo Bahia, Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças), 23 x 30.5 cm cada
Escreve Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português
Prezado amigo Presidente Lula da Silva,
Quando o visitei na prisão em 30 de agosto de 2018, vivi no pouco tempo que durou a visita um turbilhão de ideias e emoções que continuam hoje tão vivas quanto nesse dia. Pouco tempo antes tínhamos estado juntos no Fórum Social Mundial de Salvador da Bahia, conversando, na companhia de Jacques Wagner, na cobertura do hotel onde Lula estava hospedado. Falávamos então da sua possível prisão. Lula ainda tinha alguma esperança de que o sistema judicial suspendesse aquela vertigem persecutória que desabara sobre si.
Eu, talvez por ser sociólogo do direito, estava convencido de que tal não aconteceria, mas não insisti. A certa altura, tive a sensação de que estávamos a pensar e a temer o mesmo. Pouco tempo depois, prendiam-no com a mesma indiferença arrogante e compulsiva com que o tinham tratado até então. Sérgio Moro, o lacaio dos EUA (é tarde demais para sermos ingênuos), tinha cumprido a primeira parte da missão. A segunda parte seria a de o manter preso e isolado até que fosse eleito o candidato que lhe daria a tribuna a ser utilizada por ele, Sérgio Moro, para um dia chegar à presidência da República.
Quando entrei nas instalações da Polícia Federal senti um arrepio ao ler a placa onde se assinalava que o presidente Lula da Silva tinha inaugurado aquelas instalações onze anos antes como parte do seu vasto programa de valorização da Polícia Federal e da investigação criminal. Um primeiro turbilhão de interrogações me assaltou. A placa permanecia ali por esquecimento? Por crueldade? Para mostrar que o feitiço se virara contra o feiticeiro? Que um presidente de boa-fé entregara o ouro ao bandido?
Fui acompanhado por um jovem polícia federal bem parecido que no caminho se vira para mim e diz: lemos muito os seus livros. Fico frio por dentro. Estarrecido. Se os meus livros fossem lidos e a mensagem entendida, nem Lula nem eu estaríamos ali. Balbuciei algo neste sentido e a resposta não se fez esperar: “cumprimos ordens”. De repente, o teórico nazi do direito Carl Schmitt irrompeu dentro de mim. Ser soberano é ter a prerrogativa de declarar que é legal o que não é, e de impor a sua vontade burocraticamente com a normalidade da obediência funcional e a consequente trivialização do terror do Estado.
Prezado Presidente Lula, foi assim que cheguei à sua cela e certamente nem suspeitou do turbilhão que ia dentro de mim. Ao vê-lo, acalmei-me. Estava finalmente na frente da dignidade em pessoa, e senti que a humanidade ainda não tinha desistido de ser aquilo a que o comum dos mortais aspira. Era tudo totalmente normal dentro da anormalidade totalitária que o encerrara ali. As janelas, os aparelhos de ginástica, os livros, a televisão. A nossa conversa foi tão normal quanto tudo o que nos rodeava, incluindo os seus advogados e a Gleisi Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores.
Falámos da situação da América Latina, da nova (velha) agressividade do império, do sistema judicial convertido emersatzde golpes militares, das sondagens que o continuavam a destacar, do meu receio que a transferência de votos não fosse tão massiva quanto esperava. Era como se o imenso elefante branco naquela sala – a repugnante ilegalidade da sua prisão por motivos políticos nem sequer disfarçados – se transformasse em inefável leveza do ar para não perturbar a nossa conversa como se, em vez de estarmos ali, estivéssemos em qualquer lugar de sua escolha.
Quando a porta se fechou atrás de mim, o peso da vontade ilegal de um Estado refém de criminosos armados de manipulações jurídicas caiu de novo sobre mim. Amparei-me na revolta e na raiva e no desempenho bem-comportado que se espera de um intelectual público que à saída tem de fazer declarações à imprensa. Tudo fiz, mas o que verdadeiramente senti é que tinha deixado atrás de mim a liberdade e a dignidade do Brasil, aprisionadas para que o império e as elites ao seu serviço cumprissem os seus objetivos de garantir o acesso aos imensos recursos naturais do Brasil, a privatização da previdência e o alinhamento incondicional com a geopolítica da rivalidade com a China.
A serenidade e a dignidade com que o Lula enfrentou 582 dias de reclusão é a prova provada de que os impérios, sobretudo os decadentes, erram muitas vezes os cálculos, precisamente por só pensarem no curto prazo. A imensa solidariedade nacional e internacional, que fez de si o mais famoso preso político do mundo, mostraram que o povo brasileiro começava a acreditar que pelo menos parte do que fora destruído a curto prazo poderia ser reconstruído a médio e longo prazo. A sua prisão passou a ser o preço da credibilidade dessa convicção.
Prezado amigo Presidente Lula da Silva,
Escrevo-lhe hoje antes de tudo para o felicitar pela vitória nas eleições de 30 de outubro. É um feito extraordinário sem precedente na história da democracia. Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado, não o futuro, mas desta vez não me enganei. Nem por isso tenho maior certeza no que sinto necessidade de lhe dizer hoje. Como sei que não tem tempo para ler grandes elaborações analíticas, serei telegráfico. Tome estas considerações como expressão do que de melhor desejo para si pessoalmente e para o exercício do cargo que vai assumir.
(1) Seria um erro grave pensar-se que com a sua eleição tudo voltou ao normal no Brasil. Primeiro, o normal anterior a Jair Bolsonaro era para as populações mais vulneráveis algo muito precário ainda que o fosse menos do que é agora. Segundo, Jair Bolsonaro infligiu um dano na sociedade brasileira difícil de reparar. Produziu um retrocesso civilizatório ao ter reacendido as brasas da violência típica de uma sociedade que foi sujeita ao colonialismo europeu: a idolatria da propriedade individual e a consequente exclusão social, o racismo, o sexismo, a privatização do Estado para que o primado do direito conviva com o primado da ilegalidade, e uma religião excludente desta vez sob a forma de evangelismo neopentecostal.
A fratura colonial é reativada sob a forma da polarização amigo/inimigo, nós/eles, própria da extrema-direita. Com isto, Bolsonaro criou uma ruptura radical que torna muito difícil a mediação educativa e democrática. A recuperação levará anos.
(2) Se a nota anterior aponta para o médio prazo, a verdade é que a sua presidência vai ser por agora dominada pelo curto prazo. Jair Bolsonaro fez regressar a fome, quebrou financeiramente o Estado, desindustrializou o país, deixou morrer desnecessariamente centenas de milhares de vítimas da covid, propôs-se acabar com a Amazônia. O campo emergencial é aquele em que o Presidente se move melhor e em que estou certo mais êxito terá. Apenas duas cautelas. Vai certamente voltar às políticas que protagonizou com êxito, mas, atenção, as condições são agora muito diferentes e mais adversas.
Por outro lado, tudo tem de ser feito sem esperar a gratidão política das classes sociais beneficiadas pelas medidas emergenciais. O modo impessoal de beneficiar, que é próprio do Estado, faz com que as pessoas vejam nos benefícios o seu mérito pessoal ou o seu direito e não o mérito ou a benevolência de quem os torna possível. Para mostrar que tais medidas não resultam nem de mérito pessoal nem da benevolência de doadores, mas são antes produto de alternativas políticas só há um caminho: a educação para a cidadania.
(3) Um dos aspectos mais nefastos do retrocesso provocado por Bolsonaro é a ideologia anti-direitos capilarizada no tecido social, tendo como alvo os grupos sociais anteriormente marginalizados (pobres, negros, indígenas, Roma, LGBTQI+). Manter firme uma política de direitos sociais, económicos e culturais como garantia de dignidade ampliada numa sociedade muito desigual deve ser hoje o princípio básico dos governos democráticos.
(4) O contexto internacional é dominado por três mega-ameaças: pandemias recorrentes, colapso ecológico, possível terceira guerra mundial. Qualquer destas ameaças é global, mas as soluções políticas continuam dominantemente limitadas à escala nacional. A diplomacia brasileira foi tradicionalmente exemplar na busca de articulações, quer de âmbito regional (cooperação latino-americana), quer de âmbito mundial (BRICS). Vivemos um tempo de interregno entre um mundo unipolar dominado pelos EUA que ainda não desapareceu totalmente e um mundo multipolar que ainda não nasceu plenamente. O interregno manifesta-se, por exemplo, na desaceleração da globalização e no regresso do protecionismo, na substituição parcial do livre comércio pelo comércio com parceiros amigos.
Os Estados continuam todos formalmente independentes, mas só alguns são soberanos. E entre os últimos não se contam sequer os países da União Europeia. O Presidente Lula saiu do governo quando a China era o grande parceiro dos EUA e regressa quando a China é o grande rival dos EUA. O presidente Lula foi sempre adepto do mundo multipolar e a China é hoje um parceiro incontornável do Brasil. Dada a crescente guerra fria entre os EUA e a China, prevejo que a lua de mel entre Biden e Lula não dure muito tempo.
(5) O presidente Lula tem hoje uma credibilidade mundial que o habilita a ser um mediador eficaz num mundo minado por conflitos cada vez mais tensos. Pode ser um mediador no conflito Rússia/Ucrânia, dois países cujos povos necessitam urgentemente de paz, num momento em que os países da União Europeia abraçaram sem Plano B a versão norte-americana do conflito e condenaram-se ao mesmo destino a que está destinado o mundo unipolar dominado pelos EUA. E será também um mediador credível no caso do isolamento da Venezuela e no fim do vergonhoso embargo contra Cuba. Para isso, o Presidente Lula tem de ter a frente interna pacificada e aqui reside a maior dificuldade.
(6) Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa.
No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato.
(7) O presidente Lula tem neste momento a seu favor o apoio dos EUA. É sabido que toda a política externa dos EUA é determinada por razões de política interna. O presidente Joe Biden sabe que, ao defender o presidente Lula, está a defender-se de Donald Trump, seu rival em 2024. Acontece que os EUA são hoje a sociedade talvez mais fraturada do mundo, onde o jogo democrático convive com uma extrema direita plutocrata suficientemente forte para fazer com que cerca de 25% da população norte-americana continue hoje convencida que a vitória de Joe Biden em 2020 foi o resultado de uma fraude eleitoral. Esta extrema direita está disposta a tudo. A sua agressividade fica demonstrada pela tentativa recente de raptar e torturar Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara dos Representantes.
Pensemos nisto: o país que quer produzirregime changena Rússia e travar a China não consegue proteger um dos seus mais importantes líderes políticos. E, tal como se irá observar no Brasil, logo após o atentado, uma bateria de notícias falsas foi posta a circular para justificar o ato. Portanto, hoje, os EUA são um país duplo: o país oficial que promete defender a democracia brasileira e o país não oficial que a promete subverter para ensaiar o que pretende conseguir nos EUA. Recordemos que a extrema direita começou por ser a política do país oficial. O evangelismo hiper conservador começou por ser um projeto norte-americano (vide o relatório Rockfeller de 1969) para combater “o potencial insurrecional” da teologia da libertação. E diga-se, em abono da verdade, que durante muito tempo o seu principal aliado foi o Papa João Paulo II.
(8) Desde 2014, o Brasil vive um processo de golpe de Estado continuado, a resposta das elites aos progressos que as classes populares obtiveram com os governos do Presidente Lula. Esse processo não terminou com a sua vitória. Apenas mudou de ritmo e de táctica. Ao longo destes anos e sobretudo no último período eleitoral assistimos a múltiplas ilegalidades e até crimes políticos cometidos com uma impunidade quase naturalizada. Para além dos muitos que foram cometidos pelo chefe do governo, vimos, por exemplo, quadros superiores das Forças Armadas e das forças de segurança apelarem a golpes de Estado e a tomarem publicamente partido por um candidato presidencial durante o exercício das suas funções.
Estes comportamentos golpistas devem ser punidos exemplarmente quer por iniciativa do sistema judiciário quer por meio de passagens compulsórias à reserva. Qualquer ideia de amnistia, por mais nobres que sejam os seus motivos, será uma armadilha no caminho da sua presidência. As consequências podem ser fatais.
(9) É sabido que o presidente Lula não põe grande prioridade em caracterizar a sua política como sendo de esquerda ou de direita. Curiosamente, pouco antes de ser eleito Presidente da Colômbia, Gustavo Petro afirmava que a distinção para ele importante não era entre esquerda e direita, mas antes entre política de vida e política de morte. Política de vida é hoje no Brasil a política ecológica sincera, a continuidade e aprofundamento das políticas de justiça racial e sexual, dos direitos trabalhistas, do investimento na saúde e na educação públicas, do respeito pelas terras demarcadas dos povos indígenas e da promulgação das demarcações pendentes.
Acima de tudo, é necessária uma transição gradual, mas firme da monocultura agrária e do extrativismo de recursos naturais para uma economia diversificada que permita o respeito por diferentes lógicas socioeconômicas e articulações virtuosas entre a economia capitalista e as economias camponesa, familiar, cooperativa, social-solidária, indígena, ribeirinha, quilombola que tanta vitalidade têm no Brasil.
(10) O estado de graça é curto. Não dura sequer cem dias (vide Gabriel Boric no Chile). O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primeiros tempos. Uma sugestão: reponha de imediato as Conferências Nacionais para dar um sinal inequívoco de que há outra maneira mais democrática e mais participativa de fazer política.