3 - A ofensiva das forças antifascistas
III - Retrato do Brasil, em impasse perigoso
por Luiz Filgueiras e Graça Druck
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A indignação da sociedade civil com a tragédia sanitária e as ameaças golpistas se ampliou rapidamente, com a reação efetiva de suas organizações representativas (movimentos sociais, partidos políticos, associações profissionais, OAB, ABI etc.), inclusive com o início do retorno dos protestos e movimentos de rua antifascistas e antirracistas, apesar da pandemia. Nessas mobilizações surgiu uma importante novidade política: a presença das torcidas de futebol antifascistas; que passaram a confrontar os atos antidemocráticos bolsonaristas, cada vez menores – protagonizando protestos com forte valor simbólico e com grande visibilidade e repercussão. Adicionalmente, no início de julho, os entregadores de empresas de aplicativo fizeram a primeira greve nacional da categoria, reivindicando melhores condições de trabalho e remuneração – revelando e denunciando a nova realidade do trabalho precarizado nas atividades de comércio e serviços: a “uberização”.
Na mesma direção política, a parte mais importante da mídia corporativa e os outros poderes da República, em particular o STF, começaram a mudar de atitude frente aos descalabros dos neofascistas – tanto em razão da reação da sociedade civil e dos crescentes ataques sofridos, quanto pela percepção de que não haveria mais possibilidade de contemporização, sob a pena da mais completa desmoralização. Começou-se a dar um basta à tentativa de emparedamento por parte dos bolsonaristas.
Os fatos mais recentes falam por si mesmos; evidenciam as derrotas de Bolsonaro e de seus seguidores, e revelam que se está diante de uma nova conjuntura política, na qual as forças antifascistas passaram da defesa ao ataque – invertendo-se a direção do emparedamento: Bolsonaro e seu governo passaram a atuar de forma defensiva, para não serem afastados, derrotados definitivamente; a aproximação com o chamado “Centrão” para evitar o impeachment, com a distribuição de cargos no governo, é sintomática, sobretudo porque traz Bolsonaro para dentro da “velha política” e do “sistema”. Eis alguns desses fatos, os mais relevantes:
1- Fabrício Queiroz, velho conhecido da família Bolsonaro e assessor do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por muitos anos, quando este ainda exercia o mandato de deputado estadual, foi preso por ordem do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro. A prisão ocorreu no contexto da investigação sobre a prática, por parte de deputados, da conhecida “rachadinha” (que consiste na entrega de parte do salário de assessores aos parlamentares aos quais se vinculam). Mas essa investigação vai muito além, pois envolve os suspeitos (Flávio Bolsonaro, Queiroz e seus parentes) em lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa, tendo Flávio como chefe. Para piorar, Queiroz foi preso em um sítio de propriedade do advogado da família Bolsonaro; além de os desdobramentos dessa investigação, em andamento, estar apontando para as íntimas relações existentes entre a família Bolsonaro e o crime organizado (as milícias) do Rio de Janeiro.
2- O Supremo Tribunal Federal (STF), dando continuação à investigação sobre a prática de fake news (crimes de calúnia, difamação, ameaças etc.), associada à milícia digital bolsonarista sob o comando de Carlos Bolsonaro, determinou o cumprimento de dezenas de mandatos de busca e apreensão em endereços localizados em vários estados e o levantamento dos sigilos bancário e telefônico, assim como a prisão, de deputados e dirigentes de sites bolsonaristas. Além disso, confirmou a legalidade do STF em abrir essa investigação, bem como concordou com a prorrogação dos trabalhos da CPI mista do Congresso Nacional que tem por objeto o mesmo tema.
3- O STF abriu outro inquérito, envolvendo a família Bolsonaro e sua base de apoio bolsonarista, que tem por objeto a realização de ações, atos e manifestações antidemocráticos, com ameaças e agressões às Instituições, em particular o próprio STF e o Congresso Nacional. Entre outros objetivos, esse inquérito visa identificar quem financia os atos pró-Bolsonaro que agridem o Estado de Direito e os outros poderes da República. Nesse inquérito Flávio Bolsonaro foi convocado a depor. Na sequência, esse mesmo tribunal deslegitimou a tentativa canhestra de Bolsonaro e de alguns de seus ministros de legalizarem constitucionalmente uma eventual intervenção militar golpista – justificada por um suposto papel “moderador” das forças armadas, obviamente inexistente, pois isto implicaria na existência de um quarto poder (o único armado!) da República.
4- O acampamento na esplanada dos Ministérios, de um grupelho paramilitar de extrema-direita, autointitulado “Trezentos do Brasil”, que conclamava os apoiadores de Bolsonaro a constranger e agredir o STF e o Congresso Nacional, foi desmontado, por ordem do governador do Distrito Federal. Na sequência o STF decretou a prisão preventiva de alguns dos seus integrantes, inclusive sua líder.
5- Depois de o STF reafirmar a inclusão do Ministro da Educação Abraham Weintraub no inquérito das fake news, e com o risco de sua prisão em razão de ofensas dirigidas ao STF, e também tendo em vista o seu desgaste em todas as áreas da sociedade civil e até mesmo dentro do governo, Bolsonaro se viu na obrigação de demiti-lo – apesar de o mesmo ser um dos principais militantes da “guerra cultural” bolsonarista e ter estreita proximidade com a família Bolsonaro.
6- Tudo isso somado a inúmeros recuos e derrotas paralelas ou anteriores no STF e no Congresso Nacional: entre outros, suspensão da nomeação, por parte de Bolsonaro, do diretor geral da Polícia Federal; devolução da Medida Provisória que autorizava o Ministro da Educação a nomear reitores desrespeitando a autonomia da Instituições Federais de Ensino Superior; desmascaramento da tentativa de falsificação dos números sobre a pandemia, com a obrigação do Ministério da Saúde voltar a divulgá-los conforme os protocolos e a prática internacional; e fim da transferência de recursos do programa bolsa-família para a área de publicidade do governo.
Em suma, de um recente equilíbrio de forças, no qual aparentemente Bolsonaro não conseguia viabilizar o seu autogolpe, mas que as forças antifascistas também não conseguiam empurrá-lo para trás, o quadro começou a mudar rapidamente, inclusive internacionalmente. Além das derrotas e recuos assinalados anteriormente, não pode haver dúvidas de que a possibilidade crescente de derrota de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos, igualmente pela forma como enfrentou a pandemia e pelas grandes e generalizadas manifestações antirracistas ocorridas nas suas principais cidades, vem empurrando mais ainda Bolsonaro e o seu governo para a defensiva. (Continua)