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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

31
Jul23

“Ciclo de cortes dos juros vai começar e espaço para isso é considerável”, diz Haddad

Talis Andrade
Imagem ilustrativa da imagem Charge do dia 31/07/2023
 
 

 

Em entrevista exclusiva, ministro da Fazenda afirma que quadro permite harmonizar política monetária e fiscal para crescimento sustentável

31
Jul23

Milhões de Bolsonaros

Talis Andrade

Ganhar milhões após dilapidar o patrimônio público e atentar contra a democracia são 'feitos' que mostrarão que o crime compensa

 

por Eduardo Guimarães

- - -

Você já se deu conta de que Bolsonaro roubou, matou, sonegou, enganou, humilhou, depredou, injuriou, caluniou, difamou e o resultado de tudo isso foi ele receber uma avalanche de dinheiro em sua conta? 

Se a Justiça não punir o ex-presidente Jair Bolsonaro, a democracia continuará em risco no Brasil. É o que afirmam os autores do recém-lançado "O Caminho da Autocracia – Estratégias Atuais de Erosão Democrática".

A obra é de autoria de Adriane Sanctis de Brito, Conrado Hübner Mendes, Fernando Romani Sales, Mariana Celano de Souza Amaral, Marina Slhessarenko Barreto e foi publicada pela Editora Tinta-da-China Brasil.

Os autores do livro apontam práticas de Bolsonaro que configuram crimes comuns, sanitários e eleitorais. Argumentam que, se o ex-presidente não for responsabilizado, mesmo que não possa voltar em 2026 por estar inelegível, vai fazer escola na política brasileira. 

A obra faz comparação internacional entre Bolsonaro e casos de Índia, Hungria, Turquia e Polônia. "Ao jogar luz em padrões que têm ocorrido em outros países, este livro apresenta um panorama comparado para chamar a atenção para processos que afetaram a realidade política do Brasil", afirmam os autores.

Agora, essa situação de vulnerabilidade do país diante do populismo de extrema-direita ganha um contorno mais sombrio com a avalanche de dinheiro que inundou as contas de Bolsonaro com quase vinte milhões de reais, doados por um exército de quase 800 mil brasileiros. 

Todos sabemos que a maioria esmagadora da classe política só quer saber de se eleger, custe o que custar. Ao menos no Brasil. Assim, se é mediocridade, burrice, má-fé, desonestidade, truculência, machismo, homofobia, racismo etc. que o povo quer, não faltará político para atender a esse setor tão amplo e doentio da sociedade. 

Bolsonaro não só precisa ser punido, mas precisa ser punido rapidamente para que os selvagens da extrema-direita não engolfem o país com um tsunâmi fascista que, se vier, irá erodir rapidamente a nossa ainda frágil democracia. 

Ora, ganhar todos esses milhões de reais após dilapidar o patrimônio público, abusar do cargo de todas as formas, incitar crimes, atentar contra a democracia são "feitos" que mostrarão à classe política que o crime compensa. 

Então, reflitamos: quem vai querer governar pautado pelo interesse da população se contrariar tal interesse é tão compensador?

Pode ter certeza de que, se Bolsonaro não for punido, surgirão milhões e milhões de Bolsonaros nos quatro cantos desta pátria mãe tão distraída, que ainda não se percebe subtraída nessas tenebrosas transações

Jair Bolsonaro (PL) recebeu R$ 17,1 milhões em suas contas por meio de transferências bancárias realizadas por Pix entre os dias 1º de janeiro e 4 de julho deste ano. A informação foi registrada em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que também apontou que esse valor foi movimentado através de 769 mil transações feitas para a conta do ex-presidente. No UOL News, o colunista Ricardo Kotscho comenta o assunto.

 

31
Jul23

Chacina policial deixa pelo menos dez mortos no Guarujá e polícia ameaça matar 60 pessoas

Talis Andrade

assassinato chacina .jpg

 

Houve relatos de moradores sobre tortura e execução. Governador Tarcísio bolsonarista defendeu a chacina

 

247 – Desde o início da megaoperação das forças de segurança na Baixada Santista, na última sexta-feira (28), a cidade de Guarujá, no litoral paulista, registrou ao menos dez mortes em decorrência de intervenção policial, de acordo com informações da Ouvidoria das Polícias, segundo informa o jornalista Tulio Kruse, da Folha de S. Paulo. Essa ação foi uma resposta ao assassinato de um soldado da Rota, ocorrido na mesma cidade na última quinta-feira (27), o qual gerou comoção entre os policiais. O responsável pelo disparo que resultou na morte do soldado foi detido no domingo, em São Paulo, conforme anunciado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em seu perfil no Twitter, que defendeu a operação.

As vítimas fatais ainda não tiveram seus nomes oficialmente divulgados, mas o ouvidor Cláudio Aparecido da Silva ressaltou que o número de mortos pode chegar a 12. Além das mortes, houve relatos de moradores sobre tortura e execução de, pelo menos, um homem pelas mãos de policiais militares, bem como uma ameaça de que 60 pessoas seriam mortas em comunidades da cidade. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que todas as denúncias serão investigadas, mas até o momento não foram constatados abusos policiais.

A megaoperação, denominada Operação Escudo, tem duração prevista de um mês e mobiliza agentes de todos os 15 batalhões de operações especiais do estado, totalizando cerca de 3.000 policiais militares, além de pelotões do Choque e efetivo local. Entre as vítimas está um vendedor ambulante, Felipe Vieira Nunes, de 30 anos, morto com nove tiros na última sexta-feira. Relatos de moradores apontaram indícios de tortura antes de sua morte. A família de Nunes informou que ele tinha sido alertado pela polícia sobre a possibilidade de ser morto devido a passagens criminais anteriores.

Órgãos de direitos humanos, como a Ouvidoria das Polícias, a Defensoria Pública estadual, a comissão de direitos humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa e o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, estão investigando as denúncias de abusos cometidos pela PM em Guarujá. Denúncias incluem relatos de moradores aterrorizados, favelas sitiadas pela polícia e invasões de casas com o uso de máscaras por parte dos policiais. A SSP ressaltou que a operação segue os protocolos da corporação e destacou que quatro suspeitos envolvidos no assassinato de um policial já foram detidos.

 

Dez mortos na chacina em Guarujá "é a barbárie patrocinada por Tarcísio"

 

O jornalista Fernando Barros e Silva, da revista Piauí, condenou duramente a chacina policial em Guarujá (SP), assim como o tratamento concedido pelas elites brasileiras ao governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas. "Pelo menos dez pessoas, nenhuma delas identificada oficialmente, foram assassinadas pela polícia no Guarujá desde sexta-feira. É, dizem as reportagens, uma 'resposta' da Rota ao policial da corporação assassinado na quinta. Há relatos de torturas, moradores pobres aterrorizados em casa. Mas a secretaria de Segurança Pública diz que 'até o momento não foram constatados abusos por parte da polícia'", postou Barros e Silva no Twitter. "É a barbárie patrocinada por Tarcísio de Freitas, o 'quadro técnico' do bolsonarismo que vem sendo apresentado como opção à presidência da República", conclui.

Desde o início da megaoperação das forças de segurança na Baixada Santista, na última sexta-feira (28), a cidade de Guarujá, no litoral paulista, registrou ao menos dez mortes em decorrência de intervenção policial, de acordo com informações da Ouvidoria das Polícias, segundo informa o jornalista Tulio Kruse, da Folha de S. Paulo. Essa ação foi uma resposta ao assassinato de um soldado da Rota, ocorrido na mesma cidade na última quinta-feira (27), o qual gerou comoção entre os policiais. O responsável pelo disparo que resultou na morte do soldado foi detido no domingo, em São Paulo, conforme anunciado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em seu perfil no Twitter, que defendeu a operação.

As vítimas fatais ainda não tiveram seus nomes oficialmente divulgados, mas o ouvidor Cláudio Aparecido da Silva ressaltou que o número de mortos pode chegar a 12. Além das mortes, houve relatos de moradores sobre tortura e execução de, pelo menos, um homem pelas mãos de policiais militares, bem como uma ameaça de que 60 pessoas seriam mortas em comunidades da cidade. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que todas as denúncias serão investigadas, mas até o momento não foram constatados abusos policiais.

A megaoperação, denominada Operação Escudo, tem duração prevista de um mês e mobiliza agentes de todos os 15 batalhões de operações especiais do estado, totalizando cerca de 3.000 policiais militares, além de pelotões do Choque e efetivo local. Entre as vítimas está um vendedor ambulante, Felipe Vieira Nunes, de 30 anos, morto com nove tiros na última sexta-feira. Relatos de moradores apontaram indícios de tortura antes de sua morte. A família de Nunes informou que ele tinha sido alertado pela polícia sobre a possibilidade de ser morto devido a passagens criminais anteriores.

Órgãos de direitos humanos, como a Ouvidoria das Polícias, a Defensoria Pública estadual, a comissão de direitos humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa e o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, estão investigando as denúncias de abusos cometidos pela PM em Guarujá. Denúncias incluem relatos de moradores aterrorizados, favelas sitiadas pela polícia e invasões de casas com o uso de máscaras por parte dos policiais. A SSP ressaltou que a operação segue os protocolos da corporação e destacou que quatro suspeitos envolvidos no assassinato de um policial já foram detidos.

Suspeito de matar o soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) no Guarujá, litoral sul de São Paulo, foi preso neste domingo. Erickson David da Silva, conhecido como Deivinho, se entregou à polícia na zona sul de São Paulo.
 

O soldado Patrick Bastos Reis estava em patrulhamento quando criminosos atiraram contra a viatura. Como fazia a Gestapo, para cada soldado morto, dez civis fuzilados. 

31
Jul23

Por que apostar na política da impureza

Vida-mercadoria alastrou a sensação de impotência, reduzindo democracia a uma zona cinzenta

Talis Andrade
Imagem: Julio deDiego

 

Por Amador Fernandez-Savater e Ernesto Garcia Lopez, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

Has cerrado la puerta de nuevo
para huir de la oscuridad
pero en tu armario espera la noche.
Gloria Anzaldúa

O fato fundamental para entender nosso tempo, a partir do qual necessariamente temos que começar a pensar qualquer coisa politicamente, é a coincidência entre a vida e o mercado. O que significa isto?

Muito simples: a vida, tal como surge espontaneamente, tal como é vivida diariamente, tal como é imediatamente percebida e desejada, é experimentada como mercado.

O mercado, em sua aliança (ou melhor, liga) com a tecnologia, aparece hoje como a principal força configuradora da experiência. Nos locomovemos de Uber, viajamos com o Airbnb, flertamos no Tinder, provemos nossa alimentação na Mercadona [rede espanhola de supermercados], nos informamos graças ao Google, buscamos entretenimento na Netflix.

E cada um de nós reproduz o mercado simplesmente vivendo, tomando a si mesmo como um capital a ser gerido: capital humano, capital-imagem, capital-saúde, capital-afeto, capital-capacidades, capital-erótico, capital-projeto, capital-contato.

O que essa adequação à vida-mercado significa politicamente? Que a ideologia está nas coisas, está no ar. É inerente à própria vida, ao próprio fato de viver. A noção de “luta ideológica” deve então ser completamente redefinida.

Não se trata de ideias: as pessoas de esquerda se diferenciam das pessoas de direita em suas construções mentais, mas suas vidas são atravessadas pela mesma realidade de mercado. Hoje, as vidas, como alguém disse, são todas de direita.

Não se trata de crítica: enquanto a realidade material tornou-se um mercado, a crítica tornou-se puramente ideal. Uma opinião sobre o mundo, uma preferência, uma avaliação subjetiva. Facilmente descartáveis pelos realistas de mercado como “utopias” ou “quimeras” apartadas da realidade.

Não se trata de comunicação: a vida-mercado é o meio de comunicação mais poderoso. Ela é emitida constantemente, de qualquer lugar e de qualquer um dos nossos menores gestos. A presidente [da Comunidade de Madrid] Ayuso sabe disso perfeitamente: enquanto os outros candidatos bombardeavam nossas caixas de correio com cartas e programas, ela se limitava a imprimir a palavra “liberdade” nas fotos em que veste agasalho. A própria realidade (em cada bar e varanda) era a sua melhor publicidade.

Pode-se argumentar que a liberdade da vida-mercado é cada vez mais cara e não está ao alcance de todos. Certamente, mas desejá-la é grátis e hoje domina o imaginário das expectativas de vida. É a promessa de felicidade mais forte e mais fecunda.

 

Zona cinzenta e políticas de contenção

 

Essa vida-mercado produz uma sombra, um avesso feito de desconfortos tanto “objetivos” (precariedade e desigualdade) quanto “subjetivos” (sofrimento psíquico).

Durante os últimos quinze anos as desigualdades e as brechas sociais vem, cada vez mais, aumentando. Corpos e territórios vulneráveis mantidos ao longo do tempo, cercados por uma incerteza crescente: a Grande Recessão, a pandemia, a crise de preços como resultado da guerra na Ucrânia, as ameaças climáticas…

Os dados são reveladores. A Espanha é uma fábrica de desigualdade em momentos de dificuldade econômica e, paradoxalmente, em períodos de prosperidade, mostra-se incapaz de reverter essa tendência com a mesma intensidade. Soma-se a isso o fato de que o fantástico elevador social (chamado por alguns de “represa da meritocracia”), tão típico dos Estados de bem-estar social europeus, há muito tempo mostra sinais óbvios de fraqueza.

São muita as razões que explicam essa sombra na Espanha, mas se tivéssemos que resumir de uma forma um tanto grosseira, diríamos que a própria estrutura produtiva do país, um mercado de trabalho repleto de precariedade e baixos salários, um sistema fiscal pouco progressivo e esburacado na tributação da riqueza, um sistema de proteção social anacrônico, um conflito habitacional endêmico que sufoca grande parte da população que vive de aluguel ou tem hipotecas, bem como um corte generalizado na educação e saúde públicas, têm vindo a cristalizar em alguns segmentos sociais um sentimento da vida eternamente em crise. Uma “somateca” (como diria Paul B. Preciado) caracterizada pelo contínuo sufocamento existencial. E como qualquer experiência objetiva, tem seu correlato subjetivo no aumento dos mal-estares psíquicos. Basta conhecer os dados da saúde mental para perceber a magnitude do problema.

Poderíamos chamar essa sombra da vida-mercado de zona cinzenta. Uma experiência do mundo cheia de medo, desconfiança e inquietação, que vai além do relato, além do efeito hipnótico atribuível ao aparato ideológico dos meios de comunicação.

O que a esquerda pode fazer? No melhor dos casos, quando não se limita a gerir a vida-mercado, a esquerda que trabalha nas instituições, no governo, na sempre difícil gestão da esfera pública, procura coibir os excessos neoliberais, redistribuir riquezas e “conter” as infinitas e dolorosas feridas que se abrem no corpo social. Conter, ou seja, desacelerar os impactos e externalidades mais agressivos da agenda neoliberal por meio da implantação de políticas públicas neokeynesianas (“bens pequenos”, chama Santiago Alba Rico).

Nos últimos anos esta “contenção” tomou forma através do chamado “Escudo Social”. Há a Regulação Temporária de Emprego (ERTE), o Rendimento Vital Mínimo (IMV), a subida do SMI [salário mínimo espanhol], o reajuste das pensões, controle do preço do gás, o combate à pobreza energética, o controle dos preços dos aluguéis, as medidas fiscais temporárias em matéria de tributação da riqueza (como os impostos sobre os lucros extraordinários das empresas de energia, bancos e grandes fortunas), a extensão de subsídios ao consumo e à produção, a defesa dos direitos das mulheres e das pessoas LGTBQ+, etc.

Não é pouca coisa, claro. Não escapa a ninguém que o Estado, como dispositivo de gestão, é uma ferramenta de primeira ordem e, justamente por isso, as direitas luta com afinco por ele. Assistimos à mobilização do maior pacote de gastos sociais desde a consolidação da democracia. Uma “contenção” que permitiu, entre outros méritos, não lançar boa parte da população espanhola ao abismo (como aconteceu em 2010-2014).

Não é que dizer que antes das próximas eleições de 23 de junho, o 23J [o texto foi escrito antes desta data], salvar este “poder de contenção” é uma obrigação ética e cívica, e os que subscrevem este artigo não hesitará em apoiar as candidaturas progressistas que o façam.

Mas há vida além do 23J. Precisamos ampliar nosso olhar porque o dilema é muito mais profundo. Está no fato de que a contenção acaba por não conter, não modifica as estruturas latentes da desigualdade. Não reverte a insatisfação subjetiva de amplos setores da população, seus desconfortos psíquicos, a extensão da medo, a guerra dos penúltimos contra os últimos, a sensação de uma permanente “vida na precariedade”.

A contenção não acaba com a reconexão com a política, a democracia e as instituições, aquelas geografias sociais mais atingidas pelas crises (basta dar uma olhada nos dados de participação eleitoral nos bairros com maior pobreza para perceber). A contenção não é capaz, por si só, de retomar a iniciativa na produção do mundo, hoje nas mãos da vida-mercado.

 

Direitizaçãodesafeto e deserção

 

A esquerda, na medida em que se apresenta como uma mera barragem de contenção, está, portanto, fadada à decepção, à decepcionar. É hoje, fundamentalmente, uma experiência de impotência. Tsipras decepciona, Boric decepciona, a Nova Política em Espanha decepciona… A moderação, como gestão do quadro autorizado do possível, desilude e costuma ser derrotada eleitoralmente.

A decepção é a principal característica da zona cinzenta. Decepção diante da democracia, da política e da esquerda. Decepção diante de retóricas e gestos que não se traduzem em fatos e políticas efetivas. Decepção diante da superioridade moral (diante do sexismo, racismo ou classismo) que finalmente se revela como hipocrisia de classe média. Decepção com a falta de audácia ou coragem política.

Podemos discernir pelo menos três tendências nesta zona cinzenta de decepção: direitização, a desafetos e deserção.

A direitização é a decepção elaborada como ressentimento vitimista. É o mal-estar que busca culpados na lógica do bode expiatório: as trans, ecologistas, feministas, migrantes, etc.

A promessa do paraíso na terra por meio do consumo da vida-mercado quebrou consideravelmente desde 2008: crise econômica, pandemia, guerra, emergência climática. A decepção diante da promessa quebrada (sustentada pelos governos de esquerda e direita) se converte em ressentimento e agressão redirecionada contra os “inimigos internos” culpados pela situação. O mal-estar é delegado a fortes poderes que prometem a restauração das ilusões quebradas, o retorno à normalidade.

O desafeto é a decepção elaborada como abstenção passiva. A decepção é o gesto de quem não consegue fazer algo criativo com o seu mal-estar, mas não o entrega aos poderes fortes que prometem restaurar a ordem. E que simplesmente se distancia: retira-se, sai, desfilia-se.

São, por exemplo, os milhões de pessoas que, eleição após eleição, face a todos os apelos à participação e responsabilidade, não votam e assim manifestam o seu radical descompromisso com um sistema político-eleitoral em que não sentem que qualquer diferença significativa está em jogo para suas vidas. Um verdadeiro buraco negro no ideal de democracia do cidadão do qual quase nunca se fala, a não ser para detratá-lo.

A deserção é a decepção elaborada como um gesto ativo. São todas as formas de habitar criativamente ou politizar os mal-estares, de converter a interrupção da vida-mercado em grau de maior autonomia.

O fenômeno da Grande Demissão, os movimentos de decrescimento, os novos comunalismos, o desengajamento (mais ou menos coletivo, mais ou menos político) dos desejos e das expectativas que nos mantêm presos a um sistema gerador de ansiedade e precariedade, etc.

A zona cinzenta, em qualquer uma de suas três expressões, é um objeto voador não identificado para os radares à esquerda. A direitização é julgada moralmente, independentemente de ser um fenômeno dos corpos; o desafeto é considerado como deficit de participação, responsabilidade ou envolvimento; e a deserção não pode ser lida ou compreendida na grade da mobilização clássica.

 

Uma política de impureza

 

A vida coincide com o mercado. A esquerda recua para políticas de contenção vindas de cima que mal conseguem conter os efeitos mais devastadores: a precariedade e o sofrimento psíquico. Abre-se uma zona cinzenta, um avesso da política, um espaço ambivalente de desilusão face às promessas da democracia. Neste magma pulsam pulsos de direitização, desafeto e deserção.

A zona cinzenta pode ser julgada simplesmente como uma ameaça à democracia, ou interpretada como contendo indicações úteis sobre o que não está funcionando, sobre seus limites, sobre seus tetos de vidro. Chamamos essa segunda opção de “política da impureza” e envolve colocar as mãos na lama da zona cinzenta, em busca de pistas e forças de transformação social. Disputar o mal-estar social.

Uma política de impureza passaria pelo desafio de inventar pautas e estratégias para além dos circuitos fechados de contenção e comunicação.

A contenção limita-se a remendar sem propor outra lógica, outro fazer, outro horizonte. Mas a vida-mercado finalmente atravessa todas as paradas e limites, explodindo todos os remendos. A política de contenção nem sequer é reformista, porque o reformismo em seu sentido sólido é o projeto de substituir, ao longo do tempo, um sistema por outro, um modelo por outro.

A comunicação se limita a falar a linguagem da vida-mercado, da sedução e do marketing. A divisão entre um emissor que propõe e um receptor que “identifica” ou “adere”, entre os sujeitos de enunciação e objetos do enunciado. A comunicação não é o campo neutro da batalha, mas a própria linguagem do inimigo.

Você pode experimentar outras políticas e outras linguagens, outros fazeres e outros dizeres? Sem dúvida não sem colocar as mãos na lama impura da zona cinzenta, onde mora a decepção com relação à democracia e à política, em meio a vidas dilaceradas pela precariedade e o sofrimento psíquico. Não tanto “abordar”, “seduzir” ou “convencer”, mas “estar impregnado de”, “dialogar com”, “pensar junto com”, em pé de igualdade.

Estamos envolvidos nesse círculo diabólico: a vida-mercado produz um mal-estar que a onda reacionária canaliza… para consolidar a própria vida-mercado! Somente interrogando a zona cinzenta da democracia podemos encontrar pistas para escapar dessa armadilha. A saída do inferno é onde as chamas são mais altas.

29
Jul23

Quase 800 indígenas foram assassinados durante governo Bolsonaro

Talis Andrade

genocidio amazonia morte índio.jpeg

 

Documento do Conselho Indigenista Missionário quer Comissão da Verdade para investigar mortes e conflitos armados


Bruna Bronoski

Agëncia Pública


* Maioria das mortes foi no Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima
* No Mato Grosso do Sul, documento registra indígenas comendo lixo

 

Ao sair para buscar lenha numa fazenda vizinha à reserva de Taquaperi, no Mato Grosso do Sul, um jovem indígena Guarani-Kaiowá de 18 anos foi morto por cinco disparos de arma de fogo. No Amazonas, a cacique do povo Kulina denunciou o assassinato de ao menos sete indígenas das aldeias da região, entre eles o de um adolescente de 15 anos, decapitado. Em Roraima, a tentativa de assassinato de um grupo de cinco indígenas Xirixana por garimpeiros resultou na morte de uma liderança. Para fugir dos disparos, as vítimas se jogaram no rio Uraricoera. Todos os crimes ocorreram em 2022. Ao todo, quase 800 indígenas foram assassinados entre 2019 e 2022.

Os três estados citados acima — Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima — são os mais letais para indígenas no Brasil, conforme o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), divulgado nesta quarta-feira (26) ao qual a Agência Pública teve acesso. Os dados do período de 2019 a 2022, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), são da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e das secretarias estaduais de saúde.

Nos estados de Roraima e Amazonas, onde está a Terra Indígena Yanomami (TIY), houve 208 e 163 assassinatos de indígenas no período, respectivamente. Em terceiro lugar no ranking de mortes violentas contra indígenas aparece o Mato Grosso do Sul, com 146 casos. Juntas, as três unidades federativas foram responsáveis por 65% dos assassinatos no período. Em todo o país, foram registrados 795 homicídios nos quatro anos.

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Christian Braga/Greenpeace. No Amazonas e Roraima, onde está a Terra Yanomami, foram registrados 371 assassinatos de indígenas

 

As mortes por assassinato não são a única causa de extermínio indígena. Invasão de terras, negligência ou negativa de assistência médica, redução de verba pública para órgãos de proteção, racismo, ameaças e violência física e sexual são causas apontadas para o extermínio de indígenas. Outro ponto levantado pelo relatório é a falta de políticas públicas contra o suicídio.

O documento também pontua a necessidade de criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), a exemplo da comissão instalada para investigar crimes da ditadura civil-militar brasileira.

 

Governo negligencia fome, doenças e mortes evitáveis

 

O governo Bolsonaro não demarcou nenhum centímetro de Terra Indígena no Brasil, como prometido antes da posse. Sua política indigenista é considerada “genocida” e promotora da “naturalização da morte indígena”. O governo Bolsonaro foi o primeiro desde a redemocratização a não homologar nenhuma TI, o que, para o CIMI, contribuiu para a desassistência à saúde e à morte indígena.

O relatório indica que, sem a demarcação de suas áreas, há grupos que não possuem terras ou águas suficientes para produzir os próprios alimentos. Eles ficam assim dependentes de políticas de assistência social.

O cerco, segundo o relatório, ocorreu dos dois lados sob o governo Bolsonaro. De um lado, não houve andamento dos estudos de Grupos Técnicos (GTs) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nem daqueles criados por determinação judicial, para que qualquer território indígena reivindicado fosse reconhecido no Brasil. De outro, o governo federal interrompeu o fornecimento de cestas básicas entre agosto e dezembro de 2022, antes e depois do período eleitoral, entre outras desassistências.

Segundo o documento, ao menos 800 indígenas das etnias Avá-Guarani, do oeste do Paraná, e Mbya Guarani, do Rio Grande Sul, vivenciaram situações de fome, principalmente entre crianças. Segundo o CIMI, os “espaços diminutos” em que vivem impedem qualquer forma de sobrevivência pela terra. 

Em Dourados (MS), houve registros de indígenas se alimentando de lixo para comer. O relatório traz o depoimento da liderança indígena Erileide Domingos, da aldeia Guyraroka, que denunciou o caso à Organização das Nações Unidas em agosto de 2022. “A fome é resultado da desorientação do Estado brasileiro. É muita falta de piedade com o outro, de olhar os pobres, sem condições, sem emprego, sem possibilidade de plantar, não conseguimos produzir nada, não conseguimos ser ninguém”, relata Erileide no documento.

 

Omissão na saúde matou mais de três mil crianças indígenas, diz relatório

 

A omissão na área da saúde é outro ponto que levou à morte centenas de indígenas em todo o país.

Mais de 3.550 crianças de até 4 anos de idade morreram entre 2019 e 2022 em territórios indígenas. Os estados de Roraima e Amazonas carregam a maior quantidade de casos, desta vez seguidos pelo Mato Grosso. 

Uma em cada três mortes infantis registradas pela Sesai eram evitáveis, conforme análise de dados do CIMI a partir da Nota Técnica do Ministério da Saúde. Falta de acompanhamento da gestação, casos de gripe e pneumonia, desnutrição, diarreias e doenças infecciosas tratáveis estão entre os motivos que evitaram que 1.504 crianças pudessem chegar à fase adulta.

Para o CIMI, a desassistência médica é fator diretamente ligado à política indigenista empregada pelo governo federal nos últimos quatro anos. O caso de maior repercussão foi a falta de acesso às políticas públicas de saúde por parte dos indígenas Yanomami, denunciado pela Pública em diversas reportagens. O Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (Dsei-YY) registrou, só em 2022, 134 mortes de crianças entre 0 a 4 anos.

Na TI Yanomami, a invasão do garimpo estrangula serviços públicos indigenistas, entre eles os de saúde, denuncia a Hutukara Associação Yanomami (HAY) no relatório. “A captura da estrutura de saúde por garimpeiros gerou uma situação de desassistência generalizada no território”, afirma o documento sobre os postos de saúde que fecharam no território pela sensação de insegurança com a presença da atividade ilegal e armada.

 

Governo atrasou vacina e não reforçou políticas para prevenir o suicídio

 

Entre os adultos, a maior quantidade de mortes foi no Mato Grosso, com 136 casos. Entre as causas estão o atraso da chegada da vacina aos territórios, estadias em más condições quando grupos de indígenas se dirigem aos centros urbanos em busca de serviços, infecções gastrointestinais causadas por poluição da água, consumo de agrotóxicos pela água, entre outros.

Se crianças e adultos indígenas morrem por desassistência médica, a omissão estatal entre os jovens indígenas ocorre pela falta de outra política pública: a de prevenção ao suicídio. Novamente, estados já citados em outras estatísticas negativas lideram a causa da morte por suicídio entre indígenas. A cada cinco registros no quadriênio 2019-2022, dois ocorreram no estado do Amazonas e um no Mato Grosso do Sul. Ao todo, 535 indígenas tiraram a própria vida no período. Destes, 35% eram jovens menores de 19 anos.

 

Destruição de bens indígenas

 

O Conselho das Aldeias Wajãpi-Apina denunciou, em fevereiro de 2022, a poluição dos rios pela invasão garimpeira na Terra Indígena (TI) Waiãpi, no Amapá: “Fotos e vídeos de várias aldeias mostram as águas com muita lama e como dependemos dos rios para beber água e tomar banho, isto gerou muita preocupação para os nossos chefes e famílias.”

O registro afirma que os garimpeiros provocam danos aos bens naturais essenciais que afetam o modo de vida indígena no entorno e dentro da TI.

Mais ao oeste, outro caso de invasão ao maior patrimônio indígena, a floresta. A autorização para abrir um ramal dentro da TI Jaminawá/Iguarapé Preto, ligando dois municípios, partiu do Instituto de Meio Ambiente do Acre. Por se tratar de Terra Indígena, o licenciamento ambiental da obra deveria passar pelo órgão federal competente, o Ibama, e não pelos órgãos estaduais.

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Hellen Loures/CimiHellen Loures/Cimi. Relatório denuncia impactos de desmatamento, criação de gado, agrotóxicos e obras de infraestruturas nas terras indígenas

 

A lista de danos aos territórios, demarcados ou não, é grande. Construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), criação de gado, arrendamento de terras, uso de agrotóxicos, construção de presídios estaduais e federais, desmatamento de área sagrada, contaminação das águas e animais por mercúrio, loteamento e outras formas de invasão e destruição ao patrimônio indígena ocupam algumas páginas do relatório.

As maiores estatísticas ocorreram com casos de desmatamento, registrados em 74 TIs, segundo dados do Prodes. Em seguida, aparece a extração ilegal de madeira, areia, castanha e outros recursos naturais, com 65 ocorrências. Já as atividades ilegais de garimpo e mineração, assim como a de caça e pesca ilegais, atingiram, cada uma, ao menos 45 TIs, segundo o relatório. Uma TI pode constar em um, dois ou mais tipos de ocorrência.

De acordo com o CIMI, os danos ao patrimônio indígena têm como consequência o aumento de conflitos por direitos territoriais. O assassinato do jovem Guarani-Kaiowá com cinco disparos de arma de fogo que abre esta reportagem foi seguido de conflitos por território. 

O documento relembra que o crime incitou ações de retomada indígena, como são chamadas as manifestações e acampamentos para reivindicar uma área ancestral. Conforme documenta o CIMI, as manifestações no município de Coronel Sapucaia (MS) foram “reprimidas com violentas e ilegais operações policiais e emboscadas contra lideranças, que deixaram mortos e feridos”.

 

Sinal “verde” para violar direitos

 

Nomeado em julho de 2019 para presidir a Funai e exonerado só no penúltimo dia do governo Bolsonaro, em 29 de dezembro de 2022, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier defendeu um ex-coordenador regional da fundação em Mato Grosso do Sul, preso por operação da PF pelo envolvimento no esquema de arrendamento de Terras Indígenas e cobrança de propina para aluguel de pastos. O ex-presidente da Funai disse, em ligação interceptada pela PF, que estava tentando intervir nas investigações que incriminavam o ex-servidor.

“As ações e discursos do governo federal e da Funai, sob a presidência de Marcelo Xavier, serviram como sinalizações que criaram nos invasores a expectativa de que suas posses ilegais dentro de terras indígenas seriam legalizadas em breve”, destaca o CIMI sobre as tentativas de Xavier, via normativas da Funai, de legalizar o garimpo e a extração de madeira em TIs.

O governo agiu em diversas frentes contra os direitos indígenas, aponta o CIMI. Na pasta da Justiça sob Bolsonaro, o então ministro Sérgio Moro definiu, com base da tese do marco temporal, uma relação de áreas indígenas que poderiam ser demarcadas. Proposta pela bancada ruralista, a tese retiraria amplamente os direitos indígenas, afirmam os povos originários e especialistas.

29
Jul23

A morte lançada do céu

Talis Andrade
 

NO ATAQUE À ALDEIA DE BARÉ, NA DÉCADA DE 1970, O BANHO DE VENENO FOI SOBRE UMA MALOCA, ONDE OS INDÍGENAS SE REUNIAM EM DIA DE CELEBRAÇÃO. FOTO: RAPHAEL ALVES (01/12/2017)

 

Laudo obtido com exclusividade por SUMAÚMA mostra oito aldeias dizimadas por armas químicas nos anos 1970 para a construção da BR-174 (segunda parte)

 

 

(continuação) Diante do microfone e dos olhares dos militares, o indígena Baré Bornaldo relatou o ataque à aldeia So’o Mydy, que ocorreu entre o final de 1974 e o início de 1975. “Era dia de Maryba, a festa de iniciação do menino-guerreiro. Gente de outras aldeias foi participar”, contou. De repente e do alto, veio o ataque: “Era veneno. Jogaram em cima da maloca”. Bornaldo disse ainda que, ferido, viu um parente ter o pescoço cortado.

BARÉ BORNALDO (À ESQ.) AOS 11 ANOS, EM 1969. QUANDO A ALDEIA EM QUE VIVIA FOI ATACADA, ELE TINHA 14. FOTO: FUNAI. À DIREITA, O REGISTRO DE 1912 MOSTRA A REGIÃO ONDE HOJE FICA A TI WAIMIRI ATROARI. FOTO: ARQUIVO BRASILIANA FOTOGRÁFICA DIGITAL

 

No relato do indígena, o Exército espalhou o terror pela floresta. Eram tantas as vítimas e era tão grande o medo de novos ataques que os mortos não tiveram rituais fúnebres – para os Kinja, isso representa um severo risco de feitiço e outros infortúnios cosmológicos. Baré Bornaldo testemunhou que os parentes conseguiram cremar alguns corpos, mas a maioria foi deixada para trás. “Não tinha ninguém para cuidar dos corpos”, lamentou. Outro sobrevivente, Temehe Tomas, acrescentou que o medo de que os ataques fossem retomados era mais forte: “Abandonaram os corpos dos parentes – ficaram por lá mesmo”.

Manoel Paulino, que foi chefe de campo da Funai no período mais violento dos ataques, afirmou ter presenciado o próprio Exército cavar uma vala comum, com uma retroescavadeira, e enterrar as vítimas perto de um antigo posto da fundação, local onde hoje há uma aldeia. Os sobreviventes dos ataques não presenciaram os enterros porque foram obrigados a fugir. Paulino é uma testemunha-chave no processo.

Outra testemunha, essa ouvida pela perícia antropológica, relembrou, de outro ponto de vista, o que aconteceu na aldeia de Baré Bornaldo. Wamé Viana descreveu o voo de um avião jogando o que parecia ser água. Ele estava indo com outros parentes a uma festa na aldeia So’o Mydy, e quando chegaram já estavam todos mortos – todos, menos Bornaldo, então um adolescente. “Nós salvamos ele, no meio do povo morto. Chegamos dias depois. [Os corpos] Já estavam apodrecendo, urubu comendo. Quando chegamos, o tio pegou ele e levou pra salvar. Ele tinha uma febre forte”, disse Wamé. Bornaldo jamais esquecerá aqueles dias: “Quando a aldeia ficou bem quente, fiquei com febre muito alta. A maloca ficou aquecida. As folhas das árvores não caíram. Matou só as pessoas que estavam lá”. Então diz: “Morreu uma maloca inteira”.

 

‘Queimava tudo por dentro’

 

Os sintomas que os Kinja relataram após os ataques com armas químicas – calor, febre, enjoo, dor de cabeça e paralisia nos membros – são, “à primeira vista”, segundo o perito Dal Poz Neto, compatíveis com a patologia dos nerve agents, produtos que afetam o sistema nervoso central. O Exército é acusado de ter lançado sobre as aldeias uma ou mais armas químicas desse tipo. Os efeitos nas vítimas são quase imediatos: corrimento nasal, visão turva, sudorese excessiva, tosse, respiração rápida, confusão mental, dor de cabeça, perda de consciência, paralisia e insuficiência respiratória. E podem ser fatais. Entre os químicos desse tipo está o chamado gás VX. Desenvolvida na Inglaterra em 1952, essa substância, normalmente mantida em estado líquido, possui baixa volatilidade, propriedades adesivas e é inodora, afirma o laudo.

Um dos sobreviventes, não identificado, detalhou ao perito o que acontecia com as vítimas dos ataques aéreos do Exército: “Deixava a gente confuso. Atacava na aldeia, esquentava rápido. Poucos minutos, morria. Nós não conseguimos entender até agora que arma foi usada naquela época. Era assim: um índio ia caçar, ele sentia tipo uma flechada no corpo. Gritava e corria pra aldeia, já sentindo sintoma, aquecendo o corpo dele. Parecia que queimava tudo por dentro. Demorava um pouco, morria. Sentia calor muito intenso. Ficava deitado, gritando, molhando o corpo com água. Em pouco tempo, morria. Pra nós é difícil entender qual arma foi usada”.

Para os Kinja tratou-se de maxi, uma palavra de sua língua que originalmente quer dizer feitiço ou veneno. Por causa dos massacres da ditadura, ela ganhou novos significados. A substância malévola que os atacantes manipulavam, diz o laudo, “vem desde então adquirindo significados mais precisos, à medida que se ampliam os conhecimentos a respeito do aparato industrial e tecnológico à disposição da sociedade não-indígena”. Hoje, os indígenas usam o termo maxi também para designar agrotóxicos e poluentes, além de armas químicas e biológicas.

Há evidências de pelo menos oito operações coordenadas do Exército, com despejo de armas químicas seguido de invasão por terra. Após examinar a dinâmica desses ataques às aldeias, o perito judicial concluiu que tudo parece indicar uma “guerra de ocupação”, com a finalidade de expulsar os Kinja de seu território.

 

Assistente técnico da AGU trata indígenas como ‘testemunhas inidôneas’

 

Na audiência judicial na TI Waimiri Atroari, enquanto Baré Bornaldo narrava como todos ao seu redor foram mortos pelo que veio do céu, um homem branco, vestido com trajes civis e sentado na plateia, balançava a cabeça, demonstrando contrariedade. Tratava-se do coronel reformado Hiram Reis e Silva, um militar alinhado à ideologia anti-indígena das Forças Armadas. Estava ali porque havia sido indicado pelo Exército à Advocacia-Geral da União como “assistente técnico” da defesa no processo. Designado em janeiro de 2019, o primeiro ano do governo do extremista de direita e capitão reformado Jair Bolsonaro, ele tinha como papel acompanhar a elaboração da perícia antropológica.

Apesar de Lula ter tomado posse em janeiro deste ano como presidente, até o fechamento desta reportagem o coronel reformado Reis e Silva seguia como representante do governo federal no processo. Após questionamentos de SUMAÚMA, a AGU passou a buscar um acordo com o MPF. Mas não pediu formalmente a retirada de Reis e Silva do caso.

O coronel reformado serviu no Batalhão de Engenharia de Construção do Exército na Amazônia, responsável por parte da obra da BR-174. Não durante o período dos ataques, contudo, mas mais de cinco anos depois, entre 1982 e 1983 . O militar de 72 anos também foi professor de matemática no Colégio Militar de Porto Alegre e diz ser presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (Sambras), uma ONG cujo CNPJ está registrado em nome da ambientalista gaúcha Hilda Wrasse Zimmermann, morta em 2012. Desde 2018, a Sambras é considerada inapta pela Receita Federal, por falta de documentação. O site da organização já não está no ar.

 

O MILITAR REFORMADO HIRAM REIS E SILVA, QUE FOI INDICADO PARA SER ASSISTENTE TÉCNICO DA DEFESA NO PROCESSO JUDICIAL, TEM ASSUMIDA POSTURA ANTI-INDÍGENA E DE OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA. FOTO: OMAR FREITAS/AGÊNCIA RBS (29/05/2015)

 

Foi graças a uma parceria entre o Colégio Militar e a Sambras que Reis e Silva diz ter percorrido, num caiaque, rios da bacia amazônica entre as cidades de Tabatinga, no Amazonas, e Belém, no Pará, durante os anos de 2008 e 2009. A partir de suas viagens pela Amazônia, o coronel escreveu vários livros, publicados por ele mesmo na internet. Em um deles, intitulado Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Branco Tomo III, afirma, a respeito da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ratificada pelo Supremo Tribunal Federal em março de 2009: “A decisão [da demarcação] tem apenas um triste e melancólico significado – colocar a soberania brasileira em cheque (sic). O território pertence agora a uma ‘nação indígena’ e nela não poderão viver ou sequer transitar os chamados ‘não índios’, porque os facínoras do Conselho Indigenista de Roraima não os reconhecem como irmãos brasileiros”.

A julgar pelo que publica no Facebook, Reis e Silva é um bolsonarista típico. Espalha memes que sugerem o desejo de atropelar Lula e os ministros do Supremo Tribunal Federal, vídeos com mensagens para “caso algum petista filho da puta alienado vier falar merda” e notícias tendenciosas segundo as quais “se o marco temporal [para a demarcação de terras indígenas, pauta cara aos ruralistas] cair, será o fim da propriedade privada”.

Se, na audiência na Terra Indígena Waimiri Atroari, o coronel reformado demonstrou sua contrariedade com o testemunho dos Kinja sobreviventes, dias depois tornou sua posição ainda mais explícita. Em documento disponível na internet, datado de março de 2019 e intitulado “Circo de Horrores”, ele afirma que a ação movida pelo MPF é “carregada de um viés puramente ideológico, baseado no testemunho de indivíduos inidôneos sem que sejam apresentadas quaisquer tipos de provas contundentes”. Além dos relatos dos anciões Kinja, a ação do MPF se baseia em testemunhos de indigenistas e antropólogos respeitados, entre eles Stephen Baines, atualmente professor da Universidade de Brasília, e Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A atitude de Reis e Silva na audiência levou os Waimiri Atroari a pedirem – com sucesso – que ele fosse proibido de entrar em seu território para acompanhar o perito judicial. “As lideranças e demais membros da etnia presentes ao ato, muito observadores que são, perceberam o comportamento de expressão negativa do coronel Reis e Silva, fato que lhes deixou muito insatisfeitos”, afirma a petição dos advogados da Associação Comunidade Waimiri Atroari (ACWA), apresentada à Justiça Federal do Amazonas em julho de 2022. “Os Kinja se sentiram tachados de mentirosos, o que para eles é muito grave, pois na cultura Kinja a mentira é algo impensável e rechaçada veementemente!”, prossegue a petição.

E então conclui: “[Os indígenas] não admitem que adentre em sua terra uma pessoa que se postou corporalmente de forma negativa quando um Guerreiro Kinja, ancião, prestava seu depoimento sob compromisso de verdade e que depois, ao falar com a imprensa, deu a entender que todos os depoimentos dados pelos Kinja não seriam verdadeiros”. O documento se refere a uma entrevista que Reis e Silva deu à agência de notícias Associated Press logo após a audiência, em que afirmava que teria “outra versão dos fatos”.

Diante do inconformismo dos Kinja, AGU e MPF cederam e, num acordo referendado por Raffaela Cássia de Souza, juíza substituta da 3a Vara Federal do Amazonas em julho de 2022, as duas instituições abriram mão de ter seus assistentes técnicos acompanhando a perícia.

Ao longo de mais de 40 dias, SUMAÚMA tentou de várias formas entrevistar Reis e Silva. Ele não respondeu ao e-mail enviado a um endereço disponível na internet nem às mensagens a seus perfis no Facebook. O Colégio Militar de Porto Alegre, onde o coronel aposentado deu aulas, se recusou a fornecer seu telefone. A pedido do setor de Comunicação Social, SUMAÚMA enviou então um e-mail à instituição, explicando do que tratava a reportagem e solicitando um contato com o coronel. O colégio disse não ter os contatos do ex-professor. Também foi enviado um e-mail a um endereço publicado na internet e mensagens a um telefone celular, ambos identificados como sendo da esposa de Reis e Silva. Não houve resposta.

Segundo a AGU, a indicação do coronel para acompanhar o caso — feita pelo Exército e aceita pela agência — “levou em consideração a dificuldade verificada para encontrar outros profissionais com conhecimento acerca do caso e capacidade de apresentar esclarecimentos úteis à solução da controvérsia, em especial em virtude do tempo transcorrido desde os fatos discutidos nos autos”.

O Exército, por sua vez, afirmou, em nota a SUMAÚMA, que havia indicado Reis e Silva “em função de sua capacitação técnica e experiência profissional, como engenheiro militar e conhecedor da região”, que desconhece “qualquer fato ou conduta do assistente técnico no sentido de desrespeitar indígenas durante audiência realizada em 2019” e que “o respeito aos povos originários está incorporado na cultura institucional do Exército desde sua gênese”.

SUMAÚMA solicitou ao Exército, usando a Lei de Acesso à Informação, cópia da documentação em que a nomeação de Reis e Silva foi definida. A resposta foi negativa: “Tais documentações dizem respeito ao sigilo profissional cliente-advogado, referem-se à estratégia processual e não poderão ser divulgadas” (continua)

29
Jul23

‘Kit covid’ de Bolsonaro eleva risco de morte, alerta médico

Talis Andrade

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Diretores de UTIs apontam que uso de cloroquina e ivermectina está associado ao aumento de óbitos de pacientes em estado grave

 

A utilização do chamado ‘kit covid’, propagandeado por mais de um ano por Jair Bolsonaro como tratamento para pacientes infectados pelo vírus da Covid-19, está associado ao aumento do risco de mortes de doentes em estado grave.

Apelidado de modo irresponsável por Bolsonaro e pelo ministro da Saúde Eduardo Pazuello de ‘tratamento precoce’, o kit é composto de hidroxicloroquina e ivermectina, dois medicamentos de uso não recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Para anular a propaganda genocida de Bolsonaro, a Agência de Medicamentos Europeia (EMA) emitiu, em 2021, um comunicado desaconselhando o uso de ivermectina na prevenção e tratamento da doença.

Segundo reportagem da BBC , diretores de UTIs de hospitais constataram que o coquetel tem contribuído, por motivos diferentes, para aumentar os óbitos. “A preocupação maior é com os 15% que desenvolvem a forma grave da doença e acabam vindo para a UTI”, adverte o coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, Ederlon Rezende. “É nesses pacientes que os efeitos adversos dessas drogas ocorrem com mais frequência e esses efeitos podem, sim, ter impacto na sobrevida”.

E não é só: o tratamento precoce pode levar o paciente ao óbito também pela demora na internação, resultado da espera do doente pelos efeitos de drogas. Além disso, sustentam médicos intensivistas ouvido pela reportagem, o ‘kit covid’ suga dinheiro público que poderia ir para a compra de medicamentos para intubação e confunde a população com uma mensagem dominante prejudicial ao combate à pandemia.

“Alguns prefeitos distribuíram saquinho com o ‘kit covid’. As pessoas mais crédulas achavam que tomando aquilo não iam pegar covid nunca e demoravam para procurar assistência quando ficavam doentes”, relata Carlos Carvalho, diretor da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo, à BBC News.

“Muitos têm sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato”, mentiu Bolsonaro no início do mês. E continuou a girar sua roleta russa da morte: ”Neste prédio mesmo (Palácio do Planalto), mais de 200 pessoas contraíram a Covid e quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscaram esse tratamento imediato com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Azitromicina”.

 

 

Transplante de fígado

 

De acordo com reportagem do Estado de S. Paulo, cinco pacientes que utilizaram os medicamentos em São Paulo foram parar na fila de transplante de fígado. Destes, três morreram por causa de um quadro de hepatite. Entre os efeitos observados por profissionais de saúde estão hemorragias, insuficiência renal e arritmias.

Ainda de acordo com o jornal, dados do Conselho Federal de Farmácia (CFF) apontam que a venda das duas drogas cresceu até 557% em 2021, comparada às vendas do ano anterior.

 

 

29
Jul23

Humberto pede ao MP que investigue nova denúncia contra crimes de Bolsonaro na pandemia

Talis Andrade

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Senador pediu a abertura de investigação contra o ex-presidente após reportagem da Folha de S. Paulo mostrar que Bolsonaro manteve postura negacionista mesmo com alertas de seu governo para a gravidade da Covid-19

 

O senador Humberto Costa (PT-PE) acionou nesta sexta-feira (28/7) o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) e o Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) solicitando, de ambos, a abertura de investigação do ex-presidente Jair Bolsonaro com base em revelações trazidas pelo jornal Folha de S. Paulo.

De acordo com a reportagem, Bolsonaro ignorou mais de mil relatórios produzidos pela área de inteligência com alertas sobre a seriedade da crise sanitária promovida pelo avanço da Covid-19.

Os elementos apresentados pela reportagem, aponta o senador Humberto Costa, consolidam os indícios da prática de atos de improbidade administrativa que geraram prejuízo ao erário público, além das possíveis infrações criminais dolosas praticadas por ex-presidente e assessores que ignoraram os alertas e orientações recebidos.

“Inadmissível que mesmo tendo Jair Bolsonaro recebido de órgãos de Estado alertas e orientações sobre a preocupante e mortífera pandemia da Covid-19, simplesmente as ignorou solenemente, com ações e omissões deliberadas, gerando sem dúvida alguns milhares de mortes e agravos à saúde dos brasileiros”, destaca Humberto Costa em trecho das ações.

29
Jul23

Relatórios comprovam atuação criminosa de Bolsonaro em plena pandemia

Talis Andrade
Jair Bolsonaro fazendo propaganda da cloroquina (Foto: reprodução)

 

Documentos que estavam sob sigilo na Abin e GSI confirmam que Jair Bolsonaro escondeu alertas de especialistas em plena pandemia de Covid-19 que matou mais de 700 mil pessoas no país

 

29
Jul23

AGU de Lula busca ‘solução conciliatória’ para o genocídio dos Waimiri Atroari na ditadura

Talis Andrade

INDÍGENAS DA TI WAIMIRI ATROARI SE REUNIRAM EM 2022 PARA REMEMORAR O GENOCÍDIO OCORRIDO QUASE 50 ANOS ANTES, QUANDO O EXÉRCITO DIZIMOU ALDEIAS COM PULVERIZAÇÃO DE ARMAS QUÍMICAS. ‘QUEIMAVA TUDO POR DENTRO’, DIZEM OS SOBREVIVENTES. PROCESSO MOVIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PEDE QUE GOVERNO PAGUE 50 MILHÕES DE REAIS EM INDENIZAÇÃO PELO ATAQUE ÀS ALDEIAS DURANTE A DITADURA. NA IMAGEM DE 26 DE FEVEREIRO DE 2018 INDÍGENAS RECEBEM COMITIVA DA JUSTIÇA ITINERANTE. FOTO: RAPHAEL ALVES

 

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