A Câmara dos Deputados homenageou o centenário do ex-deputado federal Djalma Marinho. A presidente da OAB/DF, Estefânia Viveiros, participou da sessão solene dedicada ao ex-parlamentar do Rio Grande do Norte.
“Acima de tudo, Djalma Marinho é um exemplo nacional pela sua luta por um Congresso independente, mesmo em tempos de regime militar”, disse Estefânia.
Durante a sessão, foi lançado um livro sobre a vida de Marinho: O Homem que Pintava Cavalos Azuis, de Diógenes da Cunha Lima.
A solenidade foi solicitada pelo deputado Rogério Marinho (PSB/RN), neto do homenageado. Também participaram do evento os senadores do Rio Grande do Norte, Garibaldi Alves (PMDB), José Agripino Maia (DEM) e Rosalba Ciarlini (DEM).
Honra
Djalma Aranha Marinho nasceu em 30 de junho de 1908, em Nova Cruz (RN). Foi eleito deputado federal por sete mandatos, presidente por quatro vezes e vice-presidente por mais três vezes da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara – que acabou recebendo o nome do potiguar.
Marinho se notabilizou, principalmente, ao renunciar a presidência da comissão por não concordar com uma determinação do governo militar. Em dezembro de 1968, sob as normas do Ato Institucional nº.5 – que cerceou o direito de livre expressão –, o governo solicitou que o deputado e jornalista Márcio Moreira Alves fosse processado no Supremo Tribunal Federal. O então presidente da CCJ, Djalma Marinho, negou-se a cumprir a ordem, renunciou ao cargo e proferiu um discurso, considerado um dos mais importantes da história do Parlamento. Inspirado no dramaturgo espanhol Calderon de La Barca, marcou a Casa com a célebre frase: “Ao rei tudo, menos a honra”. Djalma Marinho faleceu em 25 de dezembro de 1981. [Publicado OAB Distrito Federal, 8 de Julho de 2008]
Carlos Bolsonaro esteve em clube de tiro nos mesmos dias que Adélio
Os dois estiveram próximos duas vezes. Em Florianópolis, quando Adélio fez curso de tiro. E em Juiz de Fora, quando Carlos se tranca no carro ao ver Adélio
por Joaquim de Carvalho
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Uma das lacunas da investigação sobre a facada ou suposta facada em Juiz de Fora é a presença de Carlos Bolsonaro em Florianópolis no mesmo dia em que Adélio Bispo de Oliveira fazia o curso de tiro no .38, em 5 de julho de 2018.
O inquérito não faz referência se Carlos frequentou o .38 naquele dia, mas sua ida à cidade tinha o objetivo de ir ao local, de que era associado fazia três anos e ao qual prestou homenagem, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, conforme mostra o diploma afixado na parede da recepção.
Quando fiz o documentário "Bolsonaro e Adélio - Uma fakeada no coração do Brasil", perguntei ao .38 se Carlos Bolsonaro esteve no local naquele dia e se havia imagens das câmeras de segurança. Um relações públicas do clube me atendeu, pediu que formalizasse a solicitação por e-mail, o que fiz e não recebi resposta.
Dois representantes do .38 prestaram depoimento no inquérito, o instrutor de tiro e um proprietário, mas não foram questionados sobre a presença de Carlos Bolsonaro. Um deles disse que, nesse dia, Adélio, à certa altura, ficou sentado na poltrona, mexia no celular e olhava sempre para a porta de entrada.
Adélio estava fazendo o curso, pelo qual receberia certificado, e pelas aulas recebidas teria pago três vezes o valor do aluguel do quarto onde vivia. Adélio não tinha arma. Em 7 de setembro, um dia depois do evento em Juiz de Fora, o Jornal Nacional publicou reportagem com entrevista da porta-voz do clube.
“Ele chegou aqui, fez um cadastro, foi acompanhado, após fazer um cadastro e dar a identidade dele, como todo e qualquer cidadão que vem aqui, por um instrutor para a prática de tiro. Esse instrutor fica junto no momento em que a arma é escolhida. Fica junto a todo instante”, disse Júlia Zanata, que, mais tarde, seria nomeada por Jair Bolsonaro para um cargo regional da Embratur em Santa Catarina.
Nas redes sociais, Júlia Zanata se destacou como militante bolsonarista e recorreu à Justiça para tentar tirar o documentário do YouTube, mas não conseguiu. A censura viria por iniciativa do próprio YouTube, alguns meses antes da eleição no ano passado.
O delegado da Polícia Federal Rodrigo Morais, que investigou o caso, disse a membros de sua equipe que havia dificuldade para investigar o entorno de Bolsonaro, mas, em junho de 2021, quando apurávamos o evento de Juiz de Fora, considerava a hipótese do auto atentado "plausível".
Na época, o Tribunal Regional Federal da 1a. Região analisava a possibilidade de reabertura do inquérito para, em princípio, analisar o celular e o computador apreendido no escritório de Zanone Júnior, que foi o advogado de Adélio.
Ele dizia que, se o caso fosse reaberto, avançaria na investigação, não apenas analisar os arquivos de Zanone. O delegado cogitava pedir autorização do Supremo Tribunal Federal para uma perícia médica em Bolsonaro.
"Ninguém é obrigado a produzir prova contra si, mas eu pediria, para saber se o que provocou o ferimento", disse a dois agentes da Polícia Federal.
Quando o caso foi reaberto, Rodrigo Morais acabou promovido para um cargo nos Estados Unidos, e quem assumiu a investigação foi o delegado Martin Bottaro Purper, que tinha investigado a facção criminosa PCC.
Algumas semanas depois, o jornal Metrópoles publicou reportagem sobre a linha de investigação: Purper estaria buscando verificar se havia ligação de Adélio com a facção criminosa.
Nunca mais a Polícia Federal tocou no assunto publicamente, mas a notícia gerou barulho na internet. A militância bolsonarista tentava ligar Adélio ao PCC e o PCC a Lula. Puro delírio, mas em época de campanha o barulho poderia ter efeito junto aos eleitores.
Carlos Bolsonaro é chave para eliminar as lacunas do inquérito sobre o evento de Juiz de Fora. Um vídeo publicado no documentário "Bolsonaro e Adélio - Uma fakeada no coração do Brasil" mostra que Adélio tenta se aproximar de Carlos na tarde de 6 de setembro de 2018, logo após a chegada de Bolsonaro ao Parque Halfeld, início da caminhada pelo calçadão.
Ao vê-lo, Carlos Bolsonaro entrou no carro e se trancou. Em entrevista a Leda Nagle, Carlos falou sobre essa aproximação, que ele não poderia negar, já que as imagens tinham se tornado públicas.
"Tem um determinado momento da gravação do meu pai em Juiz de Fora em que eu saio do carro e o Adélio vem na minha direção, e eu, por um acaso, volto no carro e, quando eu entro no carro novamente, ele recua porque viu que não conseguiria chegar até mim. Tem essa gravação. É público, todo mundo consegue ver. Então, eu voltei para o carro e dez minutos depois aconteceu o que aconteceu", afirmou.
Se, ao se trancar no carro, desconfiou do homem que usava jaqueta preta apesar do calor na cidade, deveria ter alertado os seguranças.
Sobre a presença em Florianópolis no mesmo dia em que Adélio fazia o curso, contou que, naquele dia, não esteve no clube de tiro.
"Esse cidadão chamado Adélio esteve no clube de tiro .38 no mesmo dia em que eu estava em Florianópolis. Por um acaso, naquele dia, eu não fui ao clube de tiro. (...) Aloprei com um amigo meu que temos mais ou menos a mesma personalidade. 'Não vou praí, vou pro hotel e dane-se. Não fui'", disse, na mesma entrevista a Leda Nagle.
Se o clube de tiro tivesse atendido à minha solicitação para ver imagens daquele dia, seria eliminada a dúvida sobre o que diz Carlos Bolsonaro: se não esteve mesmo no clube de tiro naquele dia.
Se a Polícia Federal tivesse examinado o deslocamento de Carlos Bolsonaro a partir de seu celular, também se saberia por onde andou em Florianópolis.
Mas, como não investigava a hipótese de auto atentado, o delegado Morais não requisitou as imagens do clube nem examinou o celular de Carlos Bolsonaro.
A Leda Nagle, Carlos Bolsonaro sugere que poderia ser alvo de Adélio, o que não faz sentido. Examinando a rede social dele, é possível verificar que Adélio só começou a atacar Bolsonaro alguns dias depois do curso no .38.
Entrou na própria página de Jair Bolsonaro no Facebook e o ameaçou. Foi a partir daí que também passou a criticar as propostas de Bolsonaro, e reproduziu entrevista antiga, em que Bolsonaro defende guerra civil no Brasil, com a morte de 30 mil pessoas.
São postagens muito diferentes daquelas que vinha fazendo antes de realizar o curso de tiro, em que defende um projeto de lei apresentado por alguns deputados, entre eles Bolsonaro, para a redução da maioridade penal.
Também era favorável ao serviço de militares em projetos de lazer e educação para jovens. Atacou o projeto de lei que criminaliza a homofobia, apoiado por Jean Wyllys, então deputado pelo PSOL, que os bolsonaristas tentariam ligar a ele.
Esse comportamento, sobretudo as contradições, devem ser investigadas, se o que se busca, no caso de Juiz de Fora, é a verdade factual.
O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que seus poemas nasciam do espanto a que era acometido diante dos incidentes da vida, daí lhe viria a inspiração em que o inesperado deflagrava nele o impulso para fixar num poema a sua percepção do que sentia sobre a experiência vivida. Gullar nos deixou uma obra genial, mas o tamanho do espanto que sentimos com os fatos calamitosos desse inesquecível dia 8 de janeiro que não abandonam a nossa memória não nos têm conduzido às sendas da criação, e já se ouvem vozes que nos sugerem ir em frente, passar um pano e voltarmos ao regaço do cotidiano de sempre.
O dia 8 de janeiro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito umpogromnum bairro judeu destruindo suas lojas.
Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.
Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988. Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto Schartz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.
O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.
Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de janeiro ocorra mais uma vez.
De acordo com o documento, ocorreram furtos, lesões corporais, danos e até atos obscenos no acampamento no entorno do Quartel General do Exército (AP Photo/Bruna Prado)
por Paolla Serra
Desde a instalação até a desmobilização do acampamento montado em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, foram registrados 73 crimes na região. A informação consta no relatório de intervenção sobre os atos antidemocráticos apresentado por Ricardo Capelli ao ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, nesta sexta-feira. O documento mostra que, entre 10 de novembro de 2022 e 9 de janeiro de 2033, ocorreram furtos, lesões corporais, danos e até atos obscenos na região.
De acordo com o relatório, neste período, foram 19 furtos, 20 crimes contra a honra, 13 por lesão corporal e vias de fato, 11 por dano, um por ato obsceno, além de outros não especificados.
O relatório apresentado aponta as provas de que houve "falha operacional" na atuação das forças policiais no dia 8 de janeiro. Segundo Ricardo Capelli, o documento também revela a ação "programada" de "profissionais treinados" na invasão às sedes dos Três Poderes da República em 8 de janeiro.
O relatório, que tem mais de 60 páginas, 17 anexos e um arquivo com imagens das câmeras de segurança do entorno da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, foi divulgado pelo Ministério da Justiça. O documento aponta que houve alerta de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, relatando ponteciais riscos de invasão de prédios públicos pelos manifestantes golpistas. Os relatórios, no entanto, não ensejaram um "desdobramento adequado" das forças de segurança, segundo o inteventor.
O documento elenca ainda comunicações feitas pelos comandantes da Polícia Militar do DF nos dias 6, 7 e 8 de janeiro. O interventor afirma que protocolos não foram respeitados. Um desses exemplos seria que nenhuma "ordem de serviço" convocando um reforço no efetivo previsto para a data foi expedida. No dia dos atentados, os policiais estavam de sobreaviso e não de prontidão nos batalhões — no primeiro caso, eles ficam em casa e só começam a trabalhar caso sejam acionados.
A brava Procuradora da República Eugênia Gonzaga, uma mulher de quem ainda muito vai se ouvir falar, conseguiu uma histórica vitória em sua ação na Justiça contra delegados torturadores na ditadura. O feito veio na decisão da Juíza Diana Brunstein em 18/01/2023, que declarou: “esta ação ganha maior relevo no atual contexto político do Brasil, em que a polaridade observada na disputa das últimas eleições, sobretudo a presidencial, ganhou contornos de verdadeira subversão ao resultado proclamado, com a organização de manifestações”.
Essa é uma notícia que exige uma saudação coletiva para as duas autoridades, Eugênia Gonzaga e Diana Brunstein, que expressam o sonho de uma justiça no Brasil. E exigiria ainda uma contextualização e denúncia do horror espalhado por esses impunes senhores até os nossos dias. Mas do meu canto, prefiro divulgar trechos do meu romance “A mais longa duração da juventude”, onde me vi obrigado a pisar esse Brasil de terror de Estado:
“É preciso força para escrever esta página. Agora compreendo que o apelo* dos poetas às musas nada tinha de retórico. Agora mesmo eu me sinto abalado. Quero dizer, triste e mergulhado em reflexão. A realidade vista, que eu soube e sei, quanto mais reflito sobre ela, mais me sinto paralisado. Vontade que tenho é de parar tudo e sair sem rumo até a praia. Lá sozinho, em absoluto silêncio, quero ficar olhando o mar. Conhecer a última hora desses companheiros, desses irmãos da nossa mesma carne e espírito, me deixa desolado. E fico à semelhança de um menino que perdeu a sua mãe em 1958: ‘Por que Deus é tão sórdido?’, ele se perguntava. Por que o homem é tão miserável e brutal? me pergunto agora, enquanto caminho na mente até o terraço de um bar e fico olhando o oceano. As ondas resplandecem ao sol, atingem verdes e espumosas a calçada, jovens e crianças gritam de felicidade, é sábado, estão de férias. Mas a sua graça e alegria não me dizem respeito. Antes, a minha dor não é compreendida pelos jovens, mulheres, homens que passam a caminhar. Enquanto eu amargo aqui outro mar, o terror sofrido por irmãos que ninguém contou. Heróis com registros apenas burocráticos. De fotos pornográficas no necrotério, nos corpos e faces arrombados à bala. Essa é uma das razões pelas quais os ex-presos políticos às vezes se calam. Ou então contam o sofrido aos pulos, aos saltos na narrativa, para o limite extremo da dor e fronteira da morte que sofreram. Quem sofreu sabe melhor sua dor.
E nem tanto por essa razão. Eu me refiro a outra gravidade fundamental, ao horror puro que fez saltar os olhos das órbitas, em anéis que se apertavam em torno da cabeça como um garrote vil no crânio, a “coroa de cristo” como a chamavam. Me refiro a ossos quebrados, ferros socados no ânus. Fatos assim vistos e sofridos se calam. Com um sentimento de culpa, como se a vítima fosse a culpada, ou mesmo do terror não vencido, que continuaria num reflexo de Pavlov. Dessa vez, o condicionante é a memória, que não relata para não repetir a dor. Entendemos os saltos ou o silêncio, porque nesta página agora sinto a tentação. É paralisante refletir sobre o que soubemos e vimos. Uma paralisação que é uma inércia aparente, porque pensamos no que não pensamos, refletimos no que não refletimos, falamos cá dentro do que não falamos fora. E para dizer o mínimo em uma linha: é deprimente primeiro. Segundo, é de nos mergulhar em uma ira louca. É de dar uma revolta ainda sem expressão, por último.
Quero dizer. Eu vi nestes dias um homem em pânico. Foi rápido, mas me acompanha o que vi até agora, e penso que não me deixará mais. Eu estava no carro, por volta das oito da noite. Eu seguia para Olinda em uma rua de mão única. Súbito, um jovem surgiu como se viesse do nada, porque sem aviso, origem ou razão. Ele veio correndo por entre os carros, o corpo em fuga pela contramão. Alguns motoristas desviavam do seu vulto, outros, pelo contrário, da tribo e manada de justiceiros dirigiam o carro para cima do jovem. Ele estava sem camisa e corria, doido, daí a manobra dos senhores da ética para cima do mal. ‘Se corre, se está sem camisa, é ladrão. Vamos quebrá-lo’. Quando ele passou por entre duas filas de carros, os faróis iluminaram o seu rosto. Cabelos crespos, assanhados, pele clara, ou melhor, lembrei depois, pele pálida, de onde o sangue havia fugido. Porém o mais marcante eram os olhos, arregalados, graúdos, a boca aberta sem grito, e os olhos enormes que nada fitavam, a ninguém viam, apenas expressavam a sua última oportunidade. Passou por mim como um raio a lembrança do ‘terrorista’ caçado, na descrição da advogada Gardênia: ‘Ele estava na mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito. E com os olhos muito abertos e a língua fora da boca’. Então atrás do jovem em Olinda correu uma moto com dois indivíduos de capacete, ziguezagueando pela contramão. Em menos de um minuto houve o som de pancada no carro. Mas não, foi um estouro atrás de nós. E mais duas estrondos brutos, pá, pá. Então eu compreendi que o jovem perseguido fora alcançado com a justiça dos matadores: três tiros no ladrão safado. Mas como alcançar os seus olhos, esquecer o seu branco arregalado nas órbitas? O sofrimento do terror adivinhava e fugia do destino a menos de um metro adiante. O que pode um homem que corre contra a velocidade de uma moto? – Saltar no balé louco do corpo magro, arremeter-se na fuga do último intento, como se mais vida houvesse. Para mim, me perseguem antes dos três tiros. Para mim, são os olhos de Vargas no maldito janeiro de 1973. A simples evocação dá um gosto amargo de fel e bílis na boca. Terei, ou devo ter o refrigério de uma pausa?
Torturadores foram condenados por seus crimes na ditadura militar
Eu quero ter paz e refletir em paz. Tento, porque me vêm as palavras Terror e Desespero. Muito além dos seus sentidos no dicionário, eu sei por que elas me ocorrem. Tenho Vargas diante de mim. No limite da decência e da dignidade, sei que ele está apavorado. Nos pequenos olhos de índio misturado ao negro, sei que ele está próximo do limite. E pior, ele tem consciência do que está próximo. Diferente dos olhos do rapaz que vi correndo no seu último minuto, louco, tonto, o jovem e o tempo, sem ter para onde ir no estranho bailado entre os carros, Vargas agora na sala da advogada Gardênia enxerga o abismo seguinte, hoje à noite ou amanhã logo cedo. O jovem brutalizado, que deixou poças de sangue na praça vizinha ao Bar Marola, para onde poderia ir? Se entrasse para a esquerda, caía no beco do Marola, se entrasse para a direita, como entrou, no largo da praça encontrava pessoas, testemunhas, quem sabe?, a salvação. Mas isso é injusto admitir, porque talvez ele não possuísse tantas opções, o seu corpo apenas tomava o lugar mais perto, uma vez que corria pela direita, a sua mão na contramão. Entrou na praça e levou o primeiro baque. Levantou pra correr e pegou mais dois, nas costas e na cabeça. E perdeu a fuga.
Diferente de Vargas agora em 1973, neste contínuo mais próximo. Ele não tem o barulho da moto no encalço. Mas os claros sinais estão dados. Ele é o terrorista seguinte para o matadouro. Até o gado sabe quando chega o seu último instante. Que dirá um homem. O boi recalcitra, não quer ir para a frente, e por isso tem que ser puxado, enganado, até que receba o golpe traiçoeiro. Como é narrado nas linhas magistrais de Tolstói sobre um matadouro:
‘Cada vez que pegavam um novilho do cercado e o arrastavam para a frente com uma corda atada aos chifres, ele sentia o cheiro de sangue e resistia, às vezes mugindo e recuando. Arrastaram-no. Ele abaixou a cabeça e resistiu, decidido. Mas o açougueiro que ia por trás agarrou o rabo, retorceu-o, estalou a cartilagem e o boi saiu correndo para a frente, batendo nas pessoas que o puxavam pela corda, e de novo resistiu, olhando com o rabo do olho preto e a esclerótica injetada’.
Mas Vargas não é um boi. Ele sabe com a consciência mais desperta que vive as suas ultimas horas. Diferente do jovem em Olinda, ele pode fugir antes dos tiros, evadir-se, para assim impedir que o seu corpo inche, se alargue a tal ponto que não entre em um caixão. E por que não o faz? ‘Eu conversei com ele, disse que ele fugisse’, anotou a advogada Gardênia no diário. Mas Vargas lhe respondeu na sala do apartamento do Edifício Ouro: ‘Fugir não podia, ele me disse. Pela segurança da esposa e da filha’. E voltou a advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criança sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil e seria também assassinada. Aí seria pior, porque a menina ficava órfã’. A primeira observação é a consciência de que será morto, porque ele resiste a que Nelinha seja ‘também assassinada’. E assim o dano seria maior: a frágil Nelinha mais a orfandade da filha. E resolve ficar e se fincar. A segunda observação é a que dá o tamanho do terror nos olhos de Vargas: ele é um homem sozinho, está sem partido organizado naquela altura. Vargas segue na contramão: desvinculado, está só, sabe que vai cair, não tem apoio, isolado se encontra. Isso mostra a medida da infâmia, ele está sem organização clandestina, mas ainda assim será divulgado como um terrorista, que desejava o fim da democracia no Brasil. Daí vêm os seus olhos de índio crescidos, a pele morena sem cor, o rosto de varíola pálido”.
“Poésie intraitable” (Poesia intratável): este é o título da nova antologia da poesia contemporânea brasileira, que acaba de ser publicada na França pela editora Les Presses du Réel/Al Dante poesia, dirigida por Laurent Cauwet. A obra, bilingue, é organizada pela experiente Inês Oseki-Dépré, que também assina o prefácio e a tradução de todos os poemas que integram a seleção.
Aantologia de poesia contemporânea apresenta ao público francês 33 poetas brasileiros, de várias regiões do Brasil, dos mais emblemáticos aos mais jovens, de João Cabral de Melo Neto a Lorena Martins, passando pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Paulo Leminski ou Arnaldo Antunes. O título intrigante de “Poesia intratável” foi a alternativa encontrada para passar ao leitor francês a ideia de “Poesia/risco”, que também indica o rabisco, de Augusto de Campos. “Nós procuramos uma palavra que tivesse o sentido de arriscar e, ao mesmo tempo, um traço. (...) ‘Poésie intraitable’ porque tem também o traço (trait em francês), o rabisco”, explica a tradutora.
Inês Oseki-Dépré incluiu em sua seleção vários poetas que já morreram porque considera “que a poesia contemporânea não é necessariamente a poesia de poeta vivo”. Ela ressalta que esses autores, que já faleceram há muito tempo como João Cabral, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Paulo Leminski, “servem de referência, continuam sendo um modelo ou um antimodelo para os poetas que vêm a seguir”.
Grande presença de mulheres
A presença de poetas mulheres, principalmente mais jovens, é marcante na antologia, mas a paridade ainda não é total. A pouca visibilidade das mulheres na história da poesia influencia a produção das poetas atuais, acredita Inês Oseki-Dépré. “O poeta homem existe desde muito tempo, e eles constituíram uma espécie de memória, de reserva masculina, e, em geral, o poeta se refere a formas que foram trabalhadas por outros homens. As mulheres não têm essa memória”, analisa. A falta desse paradigma torna a escrita poética feminina “muito livre. Eu chamei de poesia performativa, quer dizer, uma poesia do real, uma poesia imediata”, descreve.
Uma característica comum a todos os poetas e poemas que integram a seleção seria a “poesia crítica, de resistência”. A tradutora lembra que começou a trabalhar nessa antologia em um momento crítico para o Brasil, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Eu achei que a gente podia identificar a atitude deles como uma espécie de resistência, que não se manifesta na temática ou nas escolhas. É uma poesia de vamos continuar. Eu achei que devia fazer aparecer essas pessoas que continuam escrevendo, que continuam acreditando na poesia e na arte. E esse é o traço comum dessa antologia”, aponta Inês Oseki-Dépré.
A organizadora tentou “dar um panorama diferente do que se faz no Brasil em matéria de resistência à letargia, à morosidade ou ao desânimo. E em matéria de voz. Há muito muitos poetas que são promissores. É uma tentativa de dar apoio a poetas menos conhecidos para que eles continuem”. Duas poetas que integram a antologia serão em breve publicadas na França:Patricia Lavellee Angélica Freitas que terão seus livros lançados em junho, pela mesma editora, Les Presse du Réel/Al Dante.
Como traduzir coisas intraduzíveis?
Inês Oseki-Dépré, nasceu em São Paulo e vive na França desde 1966. Ela foi professora da Universidade de Aix-en-Provence e, há anos, promove a literatura, e principalmente a poesia, brasileira e portuguesa. Ela assina várias traduções importantes de autores de referência como Fernando Pessoa, Lygia Fagundes Telles e Haroldo de Campos. Em 1999, ela recebeu o importante prêmio Roger Caillois pela tadução da obra “Galáxias” do poeta concretista. Mas fez várias traduções também do francês para o português, começando por “Escritos” de Jacques Lacan. “Quer dizer, eu comecei já com coisas difíceis”, salienta.
Ao ser questionada sobre seu método de tradução, ela responde com uma pergunta: “Como traduzir coisas intraduzíveis? Você tem que inventar o método, a maneira, tem de ficar muito próxima do texto. O Haroldo (de Campos) chama isso de isomórfico.” E quando não dá para traduzir, como na obra de Guimarães Rosa repleta de “brasileirismo, você tem que inventar”, explica. O objetivo é dar ao leitor, no caso francês, o mesmo prazer de leitura no texto original e para isso Inês Oseki-Dépré tenta entrar na cabeça do autor.
“A minha ideia era sempre querer tentar adivinhar o que o autor quis fazer, me colocar na cabeça dele, fazer uma espécie de imitação de como ele quis fazer. Assim, o método mimético que consiste a achar que eu estou na cabeça do autor, o que ele está querendo dizer, o que está querendo transmitir; se é inovador, se é cínico, se é brincadeira. É tentar me colocar no lugar da escrita original”, detalha
Manifestante segura placa com dizeres “cadeia para Bolsonaro e seus generais” durante protesto pela democracia na Avenida Paulista, em 9 de janeiro | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Human Rights Watch aponta em relatório que Bolsonaro, entusiasta de torturadores, promoveu ataques às instituições e incitou apoiadores a pedir golpe militar; pesquisadores recomendam revisão da Lei da Anistia
Os ataques às instituições e à imprensa e o descrédito do processo eleitoral promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) são a ponta do iceberg que ensejou atos golpistas com pedidos de intervenção militar, acampamentos em frente a quartéis e a violência perpetrada às sedes dos Três Poderes em Brasília, no domingo (8/1). Mas há também um capítulo da história do Brasil que não foi resolvido e que se reflete nesse cenário: a ditadura civil-militar de 1964, de acordo com a organização Human Rights Watch (HRW), que elencou uma série de retrocessos em políticas do governo brasileiro emrelatóriopublicado nesta quinta-feira (12/1), englobando uma análise da situação de direitos humanos em 100 países em 2022.
“A impunidade para crimes gravíssimos gera enormes problemas para a sociedade, é um fardo enorme para a população”, declara o diretor da entidade, César Muñoz. “No Brasil, não teve justiça pelos abusos que teve na ditadura, não teve julgamentos, não teve um ato público sobre o que aconteceu na ditadura e isso é muito grave porque agora você tem pessoas criando narrativas alternativas do que aconteceu e isso alimenta as pessoas a dizerem que não teve ditadura.”
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
A organização aponta que a Lei de Anistia protege abusadores e que deveria ser revista. “O Supremo Tribunal Federal, em contradição à decisão internacional, manteve essa lei válida”, declarou a diretora Maria Laura Canineu em referênciauma decisão do STF, de 2010, que sacramentou a lei de 1979que impede a punição de militares por crimes cometidos no período, embora a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que ela viola as obrigações legais internacionais do Brasil.
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
Entre os efeitos no campo da segurança pública, por exemplo, está o fato de que o Brasil tem um dos maiores índices de letalidade policial no mundo, com 6.145 mortes em 2021, das 84% das vítimas eram negras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
“Para se ter uma comparação, são 1.000 pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos por anom um país que tem maior população que o Brasil”, declarou Muñoz. “Existe uma vinculação clara da impunidade em casos de violência e a corrupção na polícia porque a possibilidade de matar com a impunidade faz com que a polícia tenha um enorme poder.”
Por isso, os pesquisadores indicaram, dentre diversas recomendações para a gestão do presidente Lula (PT), para que seja elaborado um plano nacional de redução de letalidade policial,indicador que foi excluído por Bolsonaro em 2021, e também a garantia de independência e fortalecimento de instituições, como o Ministério Público que tem previsão de constitucional de controle externo das polícias.
“A gente tem certeza que as instituições devem funcionar em conjunto, mas existe uma responsabilidade fundamental de um ente, que é muitas vezes deixado de lado da conversa, que é o Ministério Público para o controle da atividade, seja na ação, quando mata não em legítima defesa e comete excessos, seja na omissão, como no caso dos atos antidemocráticos no Brasil no domingo”, afirma Maria Laura Canineu.
"SEM ANISTA"
Ela faz alusão ao papel das forças de segurança pública que realizaram a proteção dos edifícios, sendo que algunspoliciais militares do Distrito Federal foram flagrados abandonando barreira e comprando água de coco enquanto bolsonaristas invadiam o prédio do STF. Outra figura que ela destaca é a da procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice fornecida pelo Ministério Público Federal e que se comportou de maneira omissa às condutas do ex-presidente, que envolvem desde a condução da pandemia de Covid-19 à investigação dos protestos golpistas e o enfraquecimento ao combate à corrupção. Não à toa, durante a posse de Lula, o público fez um coro das palavras de ordem “sem anistia” durante o discurso.
Entre as recomendações da HRW, Canineu destacou que o novo governo terá de reforçar os pilares da democracia “para recuperar a credibilidade das pessoas e a realização dos direitos fundamentais”, que envolvem o respeito à liberdade de expressão e de imprensa, tendo em vista os ataques a jornalistas feitos por Bolsonaro; a promoção da transparência e fortalecimento dos poderes, como “eleger um procurador-geral da República que seja independente”; “fazer uma política externa que não seja carregada de vieses ideológicos”, já que Bolsonaro criticou governos da Venezuela e Cuba, mas apoiou líderes autoritários como o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban; e promover os direitos humanos para todos, tendo em vista o recrudescimento de políticas voltadas ao meio ambiente, aos povos indígenas, às mulheres, às pessoas com deficiência, privadas de liberdade e comunidade LGBT+.
TRF-3 apontou que Aparecido Calandra, David Araújo e Dirceu Gravina causaram danos à sociedade ao pa
Talis Andrade
Delegado Aparecido Laertes Calandra em audiência da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, sobre imagens de Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
por Jeniffer Mendonça /Ponte Jornalismo
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) condenou, na quarta-feira (18/1), os delegados aposentados Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina a pagarem, cada um, R$ 1 milhão em indenização por danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira em razão das torturas e mortes cometidas por eles durante a ditadura civil-militar. O dinheiro deve ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
A partir de uma denúncia do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça reconhece que os três delegados, que atuavam no Destacamentos de Operação Interna e Centros de Operações e Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, participaram, direta ou indiretamente, da tortura e do assassinato de ao menos 25 pessoas. Dessas, 15 foram vítimas de Aparecido Calandra, conhecido como Capitão Ubirajara; seis, de David Araújo, que usava codinome de Capitão Lisboa; e outras seis, de Dirceu Gravina, que se identificava pelas letras JC, em alusão a Jesus Cristo. Dentre esses crimes, estão a execução do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e a tortura da ativistaAmelinha Teles, junto com seus filhos pequenos, em 1972.
Subordinado ao Exército, o DOI-Codi se dividia em unidades regionais e era responsável por sequestros e violências contra as pessoas detidas pelo regime militar, atuando fora das leis da própria ditadura. Na época, era comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi condenado por tortura, mas morreu em 2015 sem pagar pelos crimes.
Para a coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Gabrielle Abreu, a decisão mostra um “avanço tímido” da justiça. “Todas as condenações como essa, de pagamento de indenização, a gente tende a celebrar porque a gente tem um histórico de impunidade em relação aos crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura. Pode não ser a decisão ideal, mas a gente celebra porque sempre é um avanço, ainda que tímido, e é uma oportunidade de colocar esse tema de volta ao debate público, sobretudo agora que a gente tem discutido a questão da anistia para os eventuais crimes do Bolsonaro e sua horda”, afirma.
13 anos de idas e vindas
A decisão acontece após um imbróglio de quase 13 anos. O MPF entrou com a ação civil pública em 2010, mas o tribunal não aceitou os pedidos, alegando que alguns já teriam prescritos e que valia a aplicação da Lei de Anistia, de 1979, para afastar a responsabilidade civil e administrativa dos torturadores. Em 2020, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o TRF-3 processasse os delegadosdevido ao entendimento de que a Lei de Anistia não incide sobre causas de caráter civil e que “a reparação civil de atos de violação de direitos fundamentais cometidos no período militar não se sujeita à prescrição”.
Dirceu Gravina durante depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 7/4/2014 | Foto: Thiago Vilela/Ascom-CNV
A Procuradoria havia feito seis solicitações: que os delegados indenizassem o estado de São Paulo e a União pelos valores pagos com indenização às vítimas e familiares de vítimas; o cancelamento das aposentadorias; a perda da função pública e de qualquer cargo público que tivessem no estado de São Paulo; que o governo paulista disponibilizasse a relação de todos os servidores, com nomes e cargos, que atuaram no DOI-Codi; que a União e o governo paulista fizessem “pedido de desculpas formal a toda a população brasileira”, com a citação dos casos específicos da ação civil pública e divulgação em canais oficiais e em pelo menos dois jornais de grande circulação em São Paulo; que os delegados pagassem indenização de danos morais coletivos.
A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.
A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.
A magistrada estipulou o valor de R$ 1 milhão para cada acusado pelo “relevante interesse social lesado” e pelas condições financeiras deles. De acordo com oPortal da Transparência do estado de São Paulo, Aparecido Calandra e David Araújo receberam, respectivamente, R$ 19.753,68 e 19.787,61 em valores líquidos em dezembro de 2022. Já Dirceu Gravina, R$ 27.846,80.
Sobre os demais pedidos do MPF, Brunstein argumentou que as indenizações pagas pelo governo de São Paulo e pela União prescreveram e que os delegados não poderiam ter as aposentadorias canceladas nem perderem as funções públicas porque caberia a abertura de um procedimento administrativo, o que não estaria na alçada do Judiciário. A juíza também escreveu que, “mesmo que a instância administrativa pudesse ser suprimida em tais casos, as leis estatutárias preveem prazos prescricionais para a instauração de ações disciplinares, os quais, considerando a data dos ilícitos cometidos, já teriam se esgotado”.
Sobre o pedido público de desculpas, a juiza afirmou que não seria necessário porque, na sua visão, “o Estado brasileiro, há tempos, reconheceu oficialmente sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos ocorridos no período da ditadura e vem, ao longo dos anos, promovendo diversos atos que visam o resgate e memória da verdade dos fatos ocorridos em tal momento histórico”. E sobre a divulgação de servidores que atuaram no DOI-Codi, argumentou que a Lei de Acesso à Informação garante esses dados e que “não houve pretensão resistida na via administrativa” para isso.
ÀPonte, a assessoria disse que o MPF vai recorrer da decisão em vista dos outros pedidos negados.
David dos Santos Araújo, agora reconhecido pela Justiça como torturador e assassino
Nesta semana,o ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, publicou portariaque reformula a composição da Comissão de Anistia, criada em 2002 para avaliar pedidos de reparação de vítimas da ditadura, mas que havia sido descaracterizada, durante o governo Bolsonaro, com a inclusão de militares entre seus membros. Com a nova reformulação, os militares ficam de fora e no seu lugar entram perseguidos políticos. “A exclusão de militares da comissão foi fundamental. Não pode haver em um instrumento como esse representantes das Forças Armadas que foram perpetradoras de crimes de Estado durante a ditadura. Precisam ser civis sensibilizados com a causa e com prioridade, inclusive, em figuras que foram atravessadas de alguma maneira pelas violências da ditadura”, aponta Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog.
No ano passado, o Instituto Vladimir Herzoglevantouque, dos 50 acusados em mais de 70 ações judiciais propostas pelo MPF, 31 ainda estão vivos. Entre os algozes com maiores números de ações estão Dirceu Gravina, que aparece em quinto lugar, com seis ações, e Aparecido Calandra em sétimo lugar, com quatro denúncias.
Gabrielle sinaliza que esse histórico de impunidade se dá pela morosidade de responsabilização dos envolvidos. “Isso revela a demora do Brasil em encaminhar uma justiça de transição. A gente só foi ter um fórum de discussão dos crimes da ditadura décadas após o fim do regime, com a Comissão Nacional da Verdade em 2012, que fez um trabalho extremamente relevante e fundamental, mas tardio, porque os crimes identificados pela comissão. Muitos deles jamais serão apurados e investigados para além do âmbito das comissões [nacional e regionais], que não têm esse caráter punitivo, mas de fazer recomendações para aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito”, critica.
“A impunidade é uma constante na história do país, se dá pela período da escravidão, passa pela ditadura e acomete também os crimes do Estado no presente”, completa.
Veja as vítimas de tortura e morte pelos delegados, reconhecidas pela Justiça
Delegado Aparecido Laertes Calandra:
Hiroaki Torigoe (tortura e desaparecimento)
Carlos Nicolau Danielli (tortura e homicídio)
Maria Amélia de Almeida Teles (tortura)
César Augusto Teles (tortura)
Janaína Teles (tortura)
Edson Luís Teles (tortura)
Manoel Henrique Ferreira (tortura)
Artur Machado Scavone (tortura)
Paulo Vannuchi (tortura)
Nádia Lúcia Nascimento (tortura)
Nilmário Miranda (tortura)
Vladimir Herzog (tortura e homicídio)
Manoel Fiel Filho (tortura e homicído)
Pierino Gargano (tortura)
Companheira de Pierino Gargano (tortura)
Delegado David dos Santos Araújo:
Joaquim Alencar de Seixas (tortura e homicídio)
Ivan Akselrud Seixas (tortura)
Fanny Seixas (tortura)
Ieda Seixas (tortura)
Iara Seixas (tortura)
Milton Tavares Campos (tortura)
Delegado Dirceu Gravina:
Lenira Machado (tortura)
Aluizio Palhano Pedreira Ferreira (tortura e desaparecimento)
Dias atrás escrevi artigo sobre razões jurídicas(teoria do delito) para responsabilização dos autores dos atos golpistas do dia 8 de janeiro.
Dias depois Juarez Tavares me instigou a escrever sobre o "caso yanomami", a partir de um comentário do jornalista Demétrio Magnoli na Globo News.
Juarez se diz chocado — corretamente — com o que disse Demétrio, para quem o caso dos yanomamis não caracterizaria crime de genocídio por ausência da intenção de extermínio do grupo étnico. Veja-se o grau de responsabilidade de um comentarista político. Lembremos dos estragos causados pelos comentaristas (juristas e jornalistas) acerca do sentido do artigo 142 da CF. Deu no que deu. Sobre isso, escrevi aqui tratando da Hermenêutica de Curupira.
Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão "intenção" em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto. Disputar uma cadeira na Câmara não quer dizer "disputar um pedaço de um móvel do parlamento"! A polifonia das palavras a gente aprende quando, saindo para a rua pela primeira vez, ouvimos alguém dizendo "mamãe, mamãe"... Damo-nos conta, então, de que a nossa mãe não é a única. E que manga pode ser fruta, peça de roupa e goleiro do Botafogo.
E aqui entra a ciência penal, da qual Juarez é expert, seguramente o maior dos experts que conhecemos.
Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. Isso é velho. O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.
Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final.
Assim, com Juarez, é possível dizer, contrariando Demétrio, que a atuação do governo, sob o comando de Bolsonaro, com suas ações, embora não se dirigisse à matança direta dos indígenas, materializou-se na realização de condições de risco que, certamente, conduziriam ao resultado de extermínio do grupo étnico. E foi o que aconteceu.
Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção.
Por isso Demétrio não tem razão. Juarez Tavares é quem tem razão. O enquadramento é bem possível. E nem se trata de invocar dolo eventual. O que houve foi uma ação ilegal consciente e com consciência de que certamente produziria um resultado como a morte e doenças de uma etnia. O resto todos sabem.
Em tempos de ode ao golpismo — poxa, só se fala disso, com anúncio para 7 de setembro (já está até ficando chato!) — em que, em nome da democracia, prega-se a sua extinção,fiz uma pesquisa para saber o que os filósofos e literatos poderiam dizer sobre os golpistas brasileiros,que vão de cantores sertanejos à motoristas e fazendeiros, passando por policiais militares dos Estados.
Origem e "natureza jurídica" do golpismo
Os golpistas já estavam listados para embarcarem na Nau dos Insensatos, o best seller pré-moderno de Sebastian Brant, que foi traduzido para 40 línguas. No entremeio de toda aquela gente, lá estavam eles: os golpistas.
No Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, havia, ao que consta, lugares reservados a eles, os golpistas. Um capítulo secreto, descoberto há pouco em escavações — ainda inédito —, mostra que Cervantes se irritava com duas coisas: néscios e golpistas, o que dá no mesmo, ele dizia.
Atravessaram os séculos e, com o advento da computação e das redes sociais, finalmente saíram da toca. Umberto Eco dizia — e aqui o parafraseio — "os golpistas perderam a vergonha".
Os golpistas fazem lives propondo golpe de Estado. E tem muitos apoiadores. Muitos. Há uma paixão pela farda. Uma questão psicanalítica mal resolvida. Nota: nem todo néscio é golpista. Mas todo golpista é néscio. Mas ser néscio não tem cor ideológica. Podem estar em todos os lugares. Conheço vários néscios do campo da não-direita (para ser eufemístico).
Os golpistas residem em neocavernas. Platão foi o primeiro a denunciar os golpistas e os néscios. Faça o teste: entre em um grupo de golpistas e tente dizer que golpe é antidemocrático e você será expulso, como aconteceu no Mito da caverna.
Golpistas adoram tuitar. Golpistas odeiam literatura. Para eles, o mundo é como as Ideias de Canário, de Machado de Assis: uma gaiola pendurada em um brechó. "O resto tudo é mentira e ilusão", como diz o falante canário ao Senhor Macedo, que o descobriu.
"Natureza filosófica" do golpismos e dos golpistas
O que os filósofos diriam d'eles? Eis as respostas, colhidas a partir do método palimpsesto (os golpistas não sabem o que é, claro).
Parmênides: tudo permanece (inclusive os golpistas).
Heráclito: o fogo é a origem de tudo. E os golpistas gostam de fogos de artifício.
Protágoras: o golpista é a medida de todos os golpes e da estultice.
Platão: os golpistas fazem parte do mundo sensível. Jamais alcançarão o suprassensível. Por isso, para eles, as sombras são a realidade. Não sairão jamais da caverna.
Górgias de Leôncio, o sofista mais famoso: um golpista é incognoscível e, se for cognoscível, é impossível contar para o vizinho.
Guilherme de Ockham: não há golpismo universal; apenas golpismo singular.
Hobbes: o golpista é o lobo do próprio golpista. Cuidado!
Locke: a mente do golpista é como uma folha de papel em branco.
Rousseau: O homem nasce livre, até que o golpista vem para implantar uma ditadura.
Edmund Burke: Desconfio de revoluções. Desconfio mais ainda de golpistas!
Maquiavel: atrás de um golpista sempre surge outro. Não deixe nenhum perto de você.
Heidegger: faz parte do modo próprio de ser no mundo o golpista ser assim.
Descartes: golpistas não possuem cogito; golpeio, logo sou. Golpistas não possuemcogito; mas há aos montes!
Kant: não existe um golpista em si.
Leibniz: vivemos no melhor dos mundos possíveis. Até vir um golpista encher o saco.
Wittgenstein (do Tractatus): se os limites da linguagem são os limites do mundo, golpistas possuem apenas um "mundinho". Ele estava pensando em uma determinada filósofa brasileira que não o leu. Mas parece que Wittgenstein simplificou a proposição 7 para "em boca fechada não entra mosca".
Nietzsche: Deus está morto. Um golpista matou e tomou conta.
Camus: é preciso imaginar Sísifo feliz — melhor carregar uma pedra nas costas do que aguentar o golpismo barato deterrae brasilis!
Beauvoir: um golpista não nasce golpista; torna-se, após uma overdose de mensagens com notícias falsas no WhatsApp.
Marx: golpistas são o lúmpem.
Dworkin: a raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa, mas o golpista não sabe nenhuma coisa.
E há uma frase famosa atribuída a Martin Luther King: não me preocupa o barulho feito pelos golpistas; o que me inquieta é o silêncio dos não-golpistas. Opa, essa é no fígado, hein?
Este é, pois, o meu tributo ao anti-golpismo. Afinal, como dizia o Barão do Itararé:
"diga-me se andas com um golpista e verei se posso sair contigo." [ Publicado em Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2021]