Coronavírus: Bolsonaro só acredita na ‘ciência’ quando o resultado lhe interessa

Manifestantes pró-governo descumprem a ordem do governador Hélder Barbalho e promovem carreata em Belém no sábado, 28 de março. Polícia foi acionada para impedir a carreata e manifestantes foram conduzidos para a delegacia. Foto: Filipe Bispo/Fotoarena/Folhapress
EM UMA AULA de antropologia da saúde que ministrei há uns anos, para falar sobre a importância de conhecimento popular na adesão a tratamentos médicos, eu contava um caso de Joyce, uma menina de periferia que não acreditava na eficácia da pílula. Para ela, era impossível que um remédio tão pequenininho fosse dar conta da quantidade de esperma ou do tamanho do pênis do namorado. Ela acreditava no que seus olhos conseguiam enxergar e a conta não fechava.
Quando ouviu a história, Roberto, um ex-aluno de uma universidade de elite, caiu na gargalhada, chamando Joyce de ignorante. Ele usava uma linguagem humilhante ao se referir aos pobres. Uma década depois, com base nas postagens que ele reproduz no Facebook, é fácil concluir que ele é fascinado por um presidente que acredita que vidro blindado não passa um “resfriadinho”, que nada acontece com pessoas que mergulham no esgoto ou que não há floresta na Europa – uma sobrevoada provaria isso.
Em ambos os casos, existe uma relação com a ciência que é imediata aos olhos. A grande diferença entre Joyce e Roberto é o fato que a primeira logo mudou de opinião depois de rodas de conversas com uma equipe do SUS. Roberto seguiu em carreata, demonstrando que, mesmo com toda a educação formal que teve, continua sendo um ignorante que só acredita no que vê, no que quer ver e, principalmente, nos interesses econômicos de sua família abastada.
As duas histórias são tão estereotipadas que parecem fanfic. Mas não são. A própria realidade se tornou caricata nos últimos tempos. Acompanhando Roberto nas redes sociais nestes últimos dias, tenho refletido no que leva pessoas estudadas das melhores escolas a ignorar consensos da ciência para validar sua própria crença. Para além do inegável interesse econômico de muitos, há também uma questão de dogma, de fé e de desejo – como recentemente disse o antropólogo Orlando Calheiros.
Tenho especulado se essa relação dogmática com a auto-verdade não estaria ligada à questão da masculinidade e ao poder patriarcal. Me parece que estamos sendo governados pelos tiozões do churrasco que, enquanto “explicam o mundo”, a família toda escuta. Me parece que estamos no mundo em que homens querem impor suas verdades egoicas. Afinal, quando a ciência fala, é justamente essa certa autoridade baseada na tradição que se sente ameaçada. (Continua)