Temos, por exemplo, e pela primeira vez após a derrota da ditadura, três militares nos mais importantes cargos da República: o Presidente, o vice-presidente e o ministro da Casa Civil. Aliás, o próprio Presidente admitiu recentemente, e aparentemente muito satisfeito, que o seu governo “ficou completamente militarizado: quatro generais ministros lá.”[3]
Uma outra possível inferência da frase do general é o apoio da classe média burguesa brasileira a este estado (policial) de coisas; são exatamente os “setores moralistas da classe média“, desinformada, ressentida, conservadora, manipulada por “meia dúzia de endinheirados” e, sobretudo, “infantilizada que se autoidealiza.“[4]
Sociologicamente, isso talvez explique “o êxito relativo da burguesia brasileira que a levou, finalmente, a descobrir e a cumprir as tarefas e os papéis que lhe cabiam no contexto histórico global”, além da “forte identificação das forças armadas com os móveis econômicos, sociais e políticos das classes burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do padrão compósito de dominação burguesa.”[5]
É preciso não esquecer – nós, civis! – que muitos daqueles que participaram do golpe de 1964, mais tarde foram alcançados pelos próprios militares, antes irrestritamente apoiados. Mandatos foram cassados e muitos foram presos, inclusive. Eles não mediram exatamente as consequências do golpe de Estado que tinham ajudado a implantar. E os militares foram implacáveis, não somente com os que resistiram ao golpe desde o início, como também com aqueles que, antes convenientes e oportunistas aliados, não aceitaram depois todas as condições impostas por um regime de exceção.
Recordemos que em 1964, “o processo coercitivo de desmobilização política contra a esquerda transbordara primeiro contra uma parte da militância liberal, depois contra as próprias lideranças conservadoras que pretendiam sustentar projetos pessoais e políticos independentes. Em 1970, no apogeu, transformara-se num fenômeno de mutilação e desmoralização da elite nacional. Esse ciclo, percorrido em seis anos, não obedeceu a doutrinas, planos ou estratégias. Foi produto de uma anarquia institucional na qual a cada avanço da desmobilização correspondeu um vácuo de legitimidade e a cada vácuo sobreveio um novo espasmo desordeiro. Cada setor interessado na desmobilização saqueou um pedaço das instituições nacionais. Todos fizeram isso acreditando que no final sobrariam instrumentos suficientes para assegurar-lhes uma parcela de poder. Assim, políticos sem voto saquearam as eleições diretas. Parlamentares sem opinião tungaram a inviolabilidade dos mandatos. Guildas patronais surrupiaram a liberdade sindical. Grandes montadoras do ABC paulista submetiam ao DOPS nomes de funcionários que contratavam. Terminada a tosa, a elite brasileira aniquilara-se.” [6]
É preciso que se aprenda com as lições históricas, a fim de que os velhos erros não sejam novamente cometidos, pois a História tende a se repetir, ora como uma tragédia, ora como uma farsa (Marx). Afinal, “a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.” [7]
Concluo, com o extraordinário Eric Hobsbawm, que, definitivamente, “não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.” [8]
Enfim, como cantavam os espanhóis, “Y el cielo se encuentra nublado, no se ve reducir una estrella. Los motivos del trueño y del rayo, vaticinan segura tormenta”[9]
Notas:
[1] FREUD, Sigmund, Conferências Introdutórias à Psicanálise, Obras Completas, Volume 13, São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 31.
[2] Ouça aqui: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/general-heleno-diz-que-bolsonaro-e-alvo-de-parlamentarismo-branco-na-discussao-sobre-orcamento.shtml, acessado no dia 20 de fevereiro de 2020.
[3] Esta afirmação foi feita no Palácio da Alvorada, durante uma conversa do presidente com um grupo de estudantes de uma Faculdade de Direito da cidade de Limeira, em São Paulo; o encontro foi transmitido ao vivo em sua página nas redes sociais: https://oglobo.globo.com/brasil/nada-contra-os-civis-diz-bolsonaro-apos-planalto-ficar-so-com-ministros-militares-24247390, acessado em 21 de fevereiro de 2020.
[4] SOUZA, Jessé, A Tolice da Inteligência Brasileira, São Paulo: Editora LeYa, 2015, p. 257.
[5] FERNANDES, Florestan, A Revolução Burguesa no Brasil – Ensaio de Interpretação Sociológica, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2ª. edição, 1976, p. 310. Para este importante autor e pensador brasileiro, há alguns fatores que explicariam, do ponto de vista da sociologia, o relativo êxito da burguesia brasileira, além da influência das Forças Armadas: “as características demográficas, econômicas e sociais da sociedade brasileira; a assistência técnica, econômica e política intensiva das nações capitalistas hegemônicas e da ´comunidade internacional de negócios`; a ambiguidade dos movimentos reformistas e nacionalistas de cunho democrático-burguês e a fraqueza do movimento socialista revolucionário, com forte penetração pequena-burguesa e baixa participação popular ou operária.”
[6] GASPARI, Elio, A Ditadura Escancarada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 226.
[7] AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13.
[8] HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremos – O breve século XX – 1914-1991, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, 2ª. edição, p. 562.
[9] Uma das inúmeras canções da Guerra Civil Espanhola, referida no livro Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, Porto Alegre: L&PM Editores, 1977, p. 81